ABRUPTO

31.7.03


LUZES DO NORTE



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PEDIDO DE AJUDA RESPONDIDO, PROBLEMA RESOLVIDO

Muito obrigada a Carlos F., Carlos Campos, Blog Notas, João Miranda, Paulo Carmo, Jiminy Cricket, Smaug, Nuno Mendonça, José Carlos Santos e ao Hipatia pela resposta ao meu pedido de ajuda que me permitiu resolver o problema e abriu caminho a outras melhorias gráficas.

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30.7.03


UMA QUESTÃO TABU DO JORNALISMO E DA POLÍTICA

Um jornalista que tem fontes altamente colocadas na vida política, que lhe fornecem informações confidenciais que implicam quebra de segredo ou lealdade ou com o governo ou com o partido de que fazem parte, acaba por ter um ascendente sobre essas fontes. Por muito que exista uma troca de favores entre o político que assim fornece informações com intencionalidade (contra os seu adversários políticos, contra quem lhe faz sombra na carreira) e o jornalista que vê o seu jornal aumentar as tiragens pelos “escândalos” que publica e a própria carreira de jornalista subir de cotação , a verdade é que dada a natureza das suas funções e a distinção entre a penalização social dos dois comportamentos, é o jornalista que “manda”.

O que é que acontece quando o jornalista inicia uma carreira política e vai ter que partilhar o mesmo mundo com os políticos que o informavam? Como é que ele pode iludir que sabe, no mesmo gabinete, no mesmo partido, quem informa os jornais? Como é que as “fontes”, que sabem que ele sabe que foram eles que denunciaram X, ou forneceram o documento que incriminou Y, o tratam? Podem ter liberdade para criticar o homem a quem passavam informações? Podem deixar de sentir uma potencial chantagem sobre eles? Mesmo na melhor das hipóteses é uma relação particularmente doentia e ambígua.


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AGRADECIMENTO E PEDIDO DE AJUDA

Como é que controlo a largura da página do blogue , de modo a que os seus leitores não tenham que estar a deslocar o cursor para ver a parte de uma linha de texto que sai do ecrã?
Isto deve ser do ABC do HTML, mas queria resolver o problema com urgência e não tenho muito tempo para o estudar como devia.
Obrigado antecipado.

Aproveito também esta oportunidade para agradecer a todos os leitores do Abrupto que me têm corrigido os erros de ortografia, as gralhas, e outros lapsos do texto, com uma dedicação e uma gentileza inexcedíveis. Se não fossem eles a minha vergonha pública seria maior do que o que já é.

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DE NOVO SOBRE O RENDIMENTO MÍNIMO GARANTIDO

A nota que publiquei ontem sobre o RMG suscitou muito correio e muitos comentários em vários blogues. Tratava-se de uma nota que fiz a partir de uma realidade que conheço directamente, com um inevitável elemento “impressionista”, mas que não tenho nenhuma razão para pensar que não seja significativa. Apesar de circunscrita a uma parte da composição social da população abrangida, (admito que em Setúbal, por exemplo, haja realidades distintas que tenham que ser descritas doutro modo) , nem por isso deixa de existir e ter peso na avaliação do RMG.

Por isso, mantenho-me firme na afirmação da relevância dos casos que referi. Os exemplos que dei e que conheço bem estão longe de parecer excepcionais. Nem as pessoas, nem a terra, nem o contexto, têm qualquer excepcionalidade para eu poder concluir que o mesmo não aconteça em outras comunidades semelhantes. No fundo, é tudo tão normal, e esse é que é o problema.

Nunca utilizei a palavra “fraude”, porque acho que descrever estes efeitos do RMG está longe de poder ser assim classificado. As pessoas que se comportam como descrevi são condicionadas a fazê-lo não porque queiram enganar o estado, mas por que a lógica do RMG as empurra a actuar assim, lhes “sugere” que actuem assim. Um sistema de subsídios gera como efeito a adaptação criativa dos putativos recipientes à lógica desses subsídios, tentando maximizar o que se recebe e minimizar o esforço. É uma estratégia de adaptação inevitável.

Aqueles que vêem o RMG de um ponto de vista ideológico de “esquerda” é que acham que a esmagadora maioria o usa “correctamente” e só uma pequena minoria desviante é que comete “fraudes”. Ora esta distinção não tem sentido, dado que os comportamentos que descrevi são os comportamentos racionais, induzidos pelo sistema de subsídios, e não uma perversão do RMG. O mal não está nas pessoas, mas nas oportunidades que se lhes dá para se adaptarem a um limiar de apatia, que reproduz eficazmente a mesma exclusão que se pretende combater.

O que se passa, e isso é patente em muitas das críticas que vi sobre o meu texto, é que se fala do RMG a partir das suas boas intenções – dar um “mínimo” a todos de sobrevivência, de dignidade – e não a partir da realidade económica e social que a existência de um “rendimento garantido” gera. A isto soma-se a permanente ocultação da conflitualidade social que o RMG gera “em baixo”, o que também tem razões ideológicas – que haja “pobres” contra os “ricos” , muito bem, que haja “pobres” contra “pobres” não é aceitável.

Nota: estou a preparar uma síntese das opiniões recebidas pelo correio.

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EARLY MORNING BLOGS 21

Detalhe de um quadro de Stefan Lochner que está na Alte Pinakothek de Munique

Não, a pintura não está aqui por engano. São mesmo os anjos a cantar – é música o papel que têm nas mãos – numa nuvem de madeira qualquer do paraíso ou do topo de uma igreja. A voz dos anjos chega certamente a Deus e, como é música que cantam, só pode ser também para os homens porque a música é uma dádiva.

Não, a pintura não está aqui por engano. Olhando para a lista nocturna das vozes electrónicas que às duas, três, quatro, cinco, seis horas da noite se erguem do silêncio das casas, onde tudo dorme menos um, vozes amáveis ou zangadas, com esperança ou sem esperança, desejei-lhes uma qualquer virtual similitude com este coro, de uma inocência que já não conseguimos ter.
Não havia blogues se houvesse inocência, não é?


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29.7.03


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 18

A Ana escreve que “procuramos os objectos em extinção à procura do tempo perdido..“ Seguem-se mais alguns resultados dessa “procura”, enviados pelos leitores do Abrupto:

Uma imagem portuense, o Preto da Casa Africana, lembrado pelo Artur Carvalho:

Lembra-se de descer a Rua Passos Manuel e quase lá no fundo erguer a cabeça para um piscar de olhos ao Preto da Casa Africana? Lembra-se dele, pintado lá no alto das traseiras do prédio onde está instalada a loja? Pois saiba que a próxima vez que lá passar dará pela falta dele. Pintaram a casa e pintaram o Preto.E apagaram assim uma imagem que já fazia parte da história da Baixa. Algum esteta esclarecido deve ter achado, provavelmente com razão, que o edifício precisava de trincha e....zás! foi tudo a eito, Preto incluído.
É mais um sinal da suburbanidade que assalta a Baixa do Porto, vai tudo na varridela da ditadura ZARA e afins. Apaga-se a memória, e uma certa cidade não há-de demorar a torna-se num "objecto" de saudade. Em desuso já ela está há muito
.”

Outro portuense, o Paulo Pereira, lembra “O fiscal dos "troleis" que picava as senhas(aquilo fazia um barulho engraçado), e ia eu, no 9 ou 29 para o marquês e para o bolhão.

Da cidade para o campo, a Isabel do Monologo lembra “sem ser um "objecto", está em extinção por ter perdido a função social que desempenhava: o burro doméstico. Já não vai pertencer à "paisagem rural" do mundo meus filhos. Tenho pena.”

O Miguel Leal envia uma memória dos “testemunhos recolhidos das vozes e dos rostos de Arlindo , Maria e Manuela Rosa , habitantes da Cabanas de Torres -Alenquer.

A planta do milho é um objecto em extinção do ponto de vista do seu aproveitamento integral .Em tempos de penúria no vale da Serra de Montejunto, o fim do ciclo do milho denominava-se o TEMPO DA EIRA .Longe de se resumir à desfolhada ou descamisamento , esta actividade desenrolava-se em registos variados àparte a dimensão do trabalho e subsistência .Nele participavam todos os elementos da comunidade , com funções diferenciadas de acordo com género e escalão etário .
A maçaroca do milho é envolvida por umas folhas que se chamam capelos .Depois da secagem nas eiras , onde eram dispostas em círculos concentricos ou espiralados , as maçarocas eram "descamisadas", nome localmente atribuído ao processo de separar os capelos da maçaroca . Estes tinham várias camadas diferentemente aproveitadas conforme a sua textura . A camada externa , grosseira , servia como ração para os animais.A camada intermédia , mais fina , destinava-se depois de "escarapelada" , a encher colchões de pano onde as pessoas dormiam . Estes colchões tinham uma abertura central unida por três fitas , que era aberta todas as manhãs para compôr e alisar a camada de capelos revoltos por acção dos corpos na noite de descanso. A camada interior , frágil , aproveitava àqueles cujas posses eram insuficientes para o tabaco , servindo como mortalhas depois de desfiadas. O conteúdo da mortalha era resultante do aproveitamento da "barba do milho" que sai do topo das maçarocas maduras.Este expediente dos viciados era imitado como actividade lúdica pelas crianças que colaboravam no "descamisamento ".À barba do milho eram também atribuídas propriedades curativas , pelo que servia para fazer chá "para a bexiga".O milho era então malhado pelos homens no sentido de o separar da camada a que estavam unidos chamada o carolo . A malhagem não era suficiente e as mulheres jovens "escarolavam" , isto é , retiravam manualmente o milho que restava nos carolos . Num registo iniciático e conforme a cor do milho que lhes competia escarolar, assim teriam de beliscar ou beijar um rapaz à escolha do grupo . Ficava então o carolo que era igualmente aproveitado de duas maneiras : ou como combustível para aquecer os fogões ou , numa alquimia fumegante , juntamente com água e vinagre , transformado em pasta de sapateiro , fundamental para a aderência da sola ao cabedal.O pé do milho não era desaproveitado e juntava-se às camadas exteriores dos capelos como feixes para os animais.Aos jovens casadoiros , sedentos de aventura e afirmação cabia a guarda da eira durante a noite. Construiam palhotas com vime e aí permaneciam o tempo que necessário fosse.
São memórias de um tempo em que o oposto do desperdício era sinónimo de engenho , espírito inventivo e convívio solidário
.”

Francisco Delgado lembra a "licença de porte de isqueiro”, de que envia uma reprodução (será colocada no blogue que em Setembro se fará só para os objectos) chamando a atenção para “as regras de utilização, autuação e, sobretudo, delação “. Acrescento eu: quando queria explicar a um estrangeiro como era viver no Portugal de Salazar, a licença de isqueiro era o meu exemplo de espantar.

O nosso médicopara comemorar a recente façanha do Bloco de Esquerda que conseguiu institucionalizar a magia e o esoterismo (tão na moda!)” envia “uma lista de pequenos objectos médicos já extintos ou em vias de extinção”:

"1) três tipos de ventosas de vidro (extintas);
2) uma caixa de alumínio porta agulhas (extinta);
3) uma seringa de vidro (extinta);
4) um termómetro de mercúrio (em vias de extinção) e o respectivo utensílio para repor abaixo de 37º (extinto);
5) uma "garrafa" de soro em vidro de soro fisiológico (substituído por plástico);
6) uma ampola de clorofórmio e o seu invólucro em papelão (em desuso);
7) frascos de vidro para transporte de urina e sangue com rolhas de cortiça (substituído por plástico e tubos de ensaio especiais);
8) caixa de alumínio com uma ligadura engessada (invólucro extinto)”


(Manda também uma foto que acompanhará estes objectos no blogue que em Setembro se fará só para esta série.)


No Blogal há também uma lista suplementar de objectos em extinção.

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PARA A HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA EM PORTUGAL

Veja-se um excerto do trabalho de J. M. Leal da Silva sobre as fotografias da greve de 1943 nos Estudos sobre Comunismo. O autor, num trabalho dedicado de "detective fotográfico", identifica pela primeira vez com correcção o local onde foi tirada uma raríssima fotografia de um conflito social no Portugal da ditadura. O fotografo que a tirou é desconhecido, mas a fotografia é um retrato único dos tempos da repressão.


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NA PROVENÇA


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RENDIMENTO MÍNIMO GARANTIDO

O Rendimento Mínimo Garantido (RMG) foi (é, mesmo revisto) uma das maiores pragas sociais que o governo PS deixou e que o governo PSD-PP não alterou como devia e não pôde alterar como queria, dado o modo como funcionam os mecanismos dos “direito adquiridos” para manter o stato quo. O RMG tinha este efeito de não retorno, de deixar um rastro de efeitos que muito dificilmente podiam ser corrigidos pela natureza de facto consumado que estas leis têm.

O RMG é um mecanismo que agrava as desigualdades sociais, favorece a exclusão, consolidando-a, e gera um clima de conflitualidade social, ou seja, tudo ao contrário do que as boas intenções retóricas dos seus autores. Visto “por baixo” , numa pequena aldeia deprimida, sem actividade económica, o RMG traçou um risco de separação entre os pobres, separando os mais “espertos” e que não trabalham e vivem do subsídio, dos que, tão ou mais pobres, procuram ter um emprego e se vêm com muito mais dificuldades e com uma vida mais pesada, por terem optado pela via de não viverem do RMG.

O ódio social, as trocas de insultos, as apreciações pejorativas, a hostilidade entre pessoas que têm a mesma condição e que se dividem entre o grupo do subsídio e o grupo do trabalho (ou à procura do trabalho), é muito nítida, mas não chega aos gabinetes. O primeiro grupo é mais numeroso e organiza a sua vida de modo a maximizar o subsídio, o “rendimento”. Uma estratégia comum é a constituição de famílias que em condições normais teriam como base o casamento, mas que são uniões de facto para que as jovens mães tenham o estatuto de “mães solteiras” e assim possam receber o RMG. É uma estratégia comum, deliberada, construída numa base familiar estável, mulher, “marido”, filhos, apoiada por famílias onde muitas vezes já há outros recebedores do RMG. Grupos familiares inteiros criam-se assim à volta do RMG , com condições sociais que acabam por se tornarem melhores do que as dos que procuram trabalho , mesmo precário. Numa pequena aldeia isto divide muito, mesmo muito.



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EARLY MORNING BLOGS 20

Dizia-se de Kant que era tão regular no seu passeio Koenisberguiano que os burgueses da cidade acertavam o relógio por ele. Parece que só se atrasou no dia em que recebeu as Confissões (ou o Emílio?) de Rousseau.

O meu relógio na blogosfera é o Almocreve das Petas, regular como um relógio, o verdadeiro “early morning blog”, que chega com a sua carga de livros e outras antigualhas, víveres do espírito, dinamite cerebral, como diziam os anarquistas, alta madrugada quando já raia a bela aurora. Altura para fechar a loja das palavras e ir dormir.


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28.7.03


LUGARES DA DECADÊNCIA: ALEXANDRIA TROAS (TURQUIA)

Entre Assos e Tróia, fica Alexandria Troas, um desses sítios que nunca se esquecem. Alexandria Troas não existe, existiu.
Alexandria Troas, uma das “Alexandrias”, foi um importante porto de mar, e vem citada na Bíblia cinco vezes. As suas ruínas estão perdidas no meio de um campo, tendo sido apenas muito parcialmente escavadas. Esta parte da Anatólia não tem turistas, que ficam das estâncias à volta de Izmir para baixo, até Antalya. As ruínas estão longe de tudo, menos de umas aldeias de pescadores junto ao mar, bastante mais abaixo.

Paulo esteve aqui, junto com outros apóstolos, e fez milagres. Num deles, numa ironia pouco vulgar nos Actos dos Apóstolos, ressuscitou um rapaz que se chamava “com sorte” (Eutychos) e que caiu de uma casa abaixo. A Bíblia explica porque é que ele caiu:

"7 (…) Paulo, que havia de partir no dia seguinte, falava com eles; e prolongou a prática até à meia-noite.
(…)
9 E, estando um certo jovem, por nome Éutico, assentado numa janela, caiu do terceiro andar, tomado de um sono profundo que lhe sobreveio durante o extenso discurso de Paulo; e foi levantado morto. "

(Actos dos Apóstolos, 20).

Em Alexandria Troas, Paulo teve a visão que o levou da Ásia para a Europa, quando lhe apareceu “um homem da Macedónia” que lhe pediu:

"9 (…) Passa à Macedónia, e ajuda-nos.

10 E, logo depois desta visão, procuramos partir para a Macedónia, concluindo que o Senhor nos chamava para lhes anunciarmos o evangelho."

(Actos dos Apóstolos, 16).

Hoje só se percebe que existiu Alexandria Troas por um arco e meia dúzia de paredes. Quando a visitei só se chegava lá por um caminho de terra batida fora da estrada secundária que bordeja o Mediterrâneo. Como aconteceu a muitos portos antigos, Alexandria de Troas está hoje bem dentro de terra, com o mar ao longe. O que impressiona é ver este arco erguer-se no meio de uma vastidão de erva alta e seca, de urze, das mil e uma flores, arbustos, e árvores que cobrem os campos da “Grécia”, com o cheiro intenso, irreproduzível dos lugares mediterrânicos. Há abelhas e o ruído das abelhas, mais o vento do mar e o calor que faz crepitar o campo. Está lá tudo, parece um estereotipo de um poema de Teócrito.

O trabalho do tempo é feito ali de acumulações visíveis. O porto foi-se afastando do mar, perdendo as suas funções e abandonado. A terra movida pelas chuvas, foi sepultando colunas, casas, muros e deixando apenas ver a parte de cima das construções. Com a terra vieram as plantas, e com a morte das plantas, mais húmus, mais terra. O chão em que passamos hoje é o tecto dos alexandrinos. Sentei-me num dos muros, talvez o lintel de uma casa, e não pude escapar à sensação do “espírito de lugar”, do heimatgeist. . O que está debaixo dos meus pés? Estátuas, moedas, cacos, mortos? É natural que tenha havido pilhagens durante todos estes séculos, mas nem uma multidão gigantesca pode ter pilhado tudo, nestas terras onde a Jónia está sepultada.

Como seria Alexandria Troas à noite? Se houver fantasmas é aqui que estão. O “homem da Macedónia”, que chamou Paulo à Europa, ainda estará lá? Não sei. Não paguei para ver.


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TARDE


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EARLY MORNING BLOGS 19

Matérias que não entram nos blogues: pobreza, desemprego, levar os filhos à escola às oito da manhã, cozinhar (sem ser por prazer), trabalhos domésticos, trabalho de um modo geral com excepção de algum trabalho intelectual, doenças, quase todas as formas de escassez. Lugares que não entram: locais de trabalho fora de universidades, escolas, firmas de informática, telecomunicações, e jornais, nove décimos de Portugal e muito mais ainda.

Pelo contrário, os caminhos do Magnólia à FNAC do Chiado, do Lux ao Algarve ou ao Alentejo, estão tão trilhados nos Moleskines que até deixam um sulco como os carros de bois nas pedras antigas.Nesta matéria não há distinções nem políticas, nem ideológicas, nem esquerda , nem direita.

Não é um julgamento de valor, porque também não entram no Abrupto, é uma constatação, chamemos-lhe assim, social. Para que não percamos a nossa (a minha) medida.


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VER A NOITE

O Marte que está hoje no céu nunca o vimos assim e nunca mais o vamos ver assim, a não ser que se acredite na metempsicose ou na reencarnação. Carpe diem.

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MARGEM SUL

Dia na Margem Sul, assim mesmo, com maiúsculas. Porque não é a margem sul do Tejo, mas a Margem Sul da história social e política portuguesa, uma combinação sem paralelo do único projecto industrial português do século XX com dimensão europeia, de uma cultura operária que não existe em mais lado nenhum, de uma população que forjou a sua identidade contra o salazarismo tendo sido primeiro anarquista e sindicalista e depois comunista.

No meio de uma vista de Lisboa de tirar a respiração, estão os restos de tudo isto em 300 hectares de terreno, uma vastidão enorme. Está um cemitério de fábricas, linhas-férreas, oleodutos, cais, barcaças, guindastes, tubagens, depósitos, escórias, cinzas, sucata, está um mausoléu (de Alfredo da Silva) que podia estar na RDA ou na Alemanha nazi, está a casa humilde do patrão mesmo no meio das fábricas, estão os restos dos bairros operários, está um quartel da GNR. E depois há os velhos, os homens e, em particular, as mulheres, duros, face cerrada, com muita vida difícil atrás, trabalhadores de profissões quase desaparecidas: corticeiros, caldeireiros, operárias têxteis, ensacadores, serralheiros.

Para perceber o seu talhe, experimentem pensar no que é passar horas e horas numa grande sala a encher sacos de adubo, quando muito com uma máscara rudimentar. Adubo no ar, adubo nas mãos, adubo na boca, adubo no corpo. Ou viver numa terra que tinha uma Rua do Ácido Sulfúrico e onde se respirava uma emulsão que picava nos olhos. Onde se “via” o ar.

Muitos destes homens e mulheres tiveram e têm ideias terríveis e, se alguma vez chegassem ao poder, era daqui que viria a “muralha de aço” e essa “muralha” triturava-nos sem hesitação. Muitos deles encarnavam o pior daquilo que Simone Weil chamava a “arrogância operária”. Mas hoje, perdida a história com H grande, atirados para um anacronismo que lhes deve ser cruel, porque é a derrocada da esperança da sua vida toda, sobra a história que eles próprios fizeram, e não a que desejaram fazer. E essa história é a do seu sofrimento, da sua coragem e tenacidade em dias em que o exercício destas qualidades se pagava muito caro.


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27.7.03



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EARLY MORNING BLOGS 18

Os blogues de ciência “organizam-se”, (contrariando o “hiato da complexidade” da formiga de langton, que espero que volte rapidamente ao “enxame”), no Ciência na blogosfera portuguesa por iniciativa do Follow the White Rabbit. A julgar pelos nomes, entre mochos, coelhinhos e formigas, isto está animado nos laboratórios!

Esta noite deverá ser a grande noite marciana. Só que duvido que com os céus portugueses se veja muita coisa. No Em Expansão Vertiginosa estão elementos interessantes para se olhar para Marte com olhos de ver.

Hoje desço à terra do aço, do ácido, do adubo. A não ser nos Estudos, o meu blogue hard, não encontro traços daquela parte de Portugal e dos portugueses, que tão importante foi na nossa história real e mítica, nesta atmosfera electrónica. E , no entanto, parte de todos nós foi mais feita ali do que na Academia das Ciências. É um mundo póstumo e hoje vou visitar os mortos.

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26.7.03


VER A NOITE

Hoje não há noite para ver. Na cidade não se vê a noite, nem Marte sequer. Só aviões.

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CRÍTICAS QUE ME LEVAM A PENSAR DUAS VEZES

É uma nova série no Abrupto que regista aquelas críticas que me levam a questionar: “será que é assim, será que ele tem razão?”. Posso até achar que não, mas tenho que pensar duas vezes e, às vezes, acho que sim. Para não poluir as críticas na sua fonte serão sempre reproduzidas sem comentário.

Ver no Mata-Mouros “ A prova na política e no direito (JPP e a Justiça)”

e numa carta de Rui Queirós:

Porque é que antes de começar a ler o seu Comentário ao caso Berlusconi eu já sabia que o senhor o ia defender!? É isto que me mete impressão! Não me leve a mal, mas caso o Sr.Berlusconi fosse de esquerda, será que o seu comentário seria idêntico? Ou seja, porque é que mesmo as pessoas mais inteligentes e que pensam pela sua cabeça, se sentem obrigadas a defender 'os seus', mesmo que sejam pessoas como o Sr.Berlusconi (não falo de casos perdidos como o Dr.Louçã e etc. Falo de pessoas não fanáticas, mas que se entricheiraram num campo, e que ficam inibidas de pensar, ou de se expressar com total liberdade).”

Ainda há mais.


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EARLY MORNING BLOGS 17

A ameaça de execução escrita nesta parede foi fotografada por mim em Gernika numa viagem de solidariedade que fiz com a luta dos bascos contra o terrorismo. Numa das primeiras notas do Abrupto, escrita num momento politicamente importante dessa luta para os bascos, reproduzi um apelo internacional de intelectuais a acções de solidariedade, que tinha subscrito, convencido que haveria resposta pelo menos neste meio. A blogosfera, que não tinha falta de causas entusiastas em tudo que era página, permaneceu indiferente. Foi, se quiserem, a minha primeira desilusão.



Não era que não houvesse repúdio do terrorismo basco, era que, quando não há bombas, o aspecto político da luta contra o medo e pela liberdade no País Basco interessa pouco os portugueses, a começar pelos órgãos de comunicação social. Vem tudo isto a propósito do artigo de Helena Matos no Público “Nacionalismo Basco: o Medo Aqui Tão Perto” que analisa este mesmo tipo de silêncio e cujas conclusões subscrevo inteiramente:

Habituados como fomos a associar a luta pelas independências à luta pela liberdade, esquecemos que à visão romântica dos nacionalismos do século XIX há que juntar a experiência dos totalitarismos do século XX: estes usaram o nacionalismo e não raramente a Igreja para reforçarem o ódio ao estrangeiro e o desprezo pelas instituições democráticas. É esta última face do nacionalismo que, dia a dia, se impõe no País Basco. É essa face que viram Savater, Gotzone Mora e López de Lacalle. É essa face que às vezes, em Portugal, fazemos de conta que não existe. Talvez porque seja demasiado perto.”

*

Leio os Estudos sobre a Ordem dos Pregadores, um blogue discretíssimo, sobre “pregadores” , frades, freiras, ordens religiosas. É um mundo bem longe do nosso olhar e que conheci na minha infância e adolescência por causa de uma minha tia-avó que era freira Doroteia, “madre Pacheco”, e que era uma força da natureza. Começara a sua vida religiosa como enfermeira na I Guerra Mundial na frente belga, e depois, como tinha jeito para o desenho, ensinava nos colégios das Doroteias e pintava “santinhos”. Dela resta a memória e os “santinhos”, delicados e ingénuos, com tons de ouro nas vestes como nos quadros de Fra Angélico.
Milhares e milhares de homens viveram assim, numa forma tão estranha para a nossa contemporaneidade que parecem não ter biografia. Fizeram-se frades e freiras e desapareceram do “século”. O que se retrata aqui é que eles têm biografia, não são apenas “enxame”.

A segunda observação, lendo a SERIES MAGISTRORUM ORDINIS PRAEDICATORUM, é a confirmação pela longa lista de nomes, do século XIII aos dias de hoje, franceses, italianos, irlandeses, espanhóis, de como qualquer história da Europa sem uma referência ao cristianismo como elemento formador da identidade europeia, não tem qualquer sentido.


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25.7.03


TRATADO DOS TELEMÓVEIS – algum correio

Paulo Alves sugere que se substitua devices por "dispositivos".

Mário Chainho fornece elementos suplementares e é mais prudente quanto a algumas previsões:

"As evoluções que preconizou para os telemóveis (prefiro chamar-lhes de terminais móveis) são mais do domínio da ficção científica que do razoavelmente expectável nas próximas décadas. O actual sistema utilizado em toda Europa e um pouco por todo o mundo (GSM) é das obras mais complexas feitas pelo homem, só possível devido a avanços espontâneos e provocados em vários domínios, não sou na tecnologia mas também ao nível da investigação científica feita em empresas e universidades de todo o mundo. No entanto, tudo parece ainda muito tosco. E tudo isto porque a tarefa de colocar uma rede de comunicações móveis a funcionar nos moldes actuais não é nada fácil, parecendo mesmo uma tarefa impossível de realizar. Ao contrário dos telefones fixos, em que tudo é estável e basta ligar um fio de um lado ao outro (não é bem assim porque a rede central pode ser muito complexa), nas comunicações móveis o suporte é o ar e tudo atrapalha: O nível de sinal pode cair de um instante para o outro cerca de 100 000 vezes, mas essa é apenas uma das milhares de dificuldades encontradas, e todas foram sendo resolvidas. As primeiras normas sobre o sistema GSM, há mais de 10 anos, tinham mais de 5000 páginas, e apenas faziam referência aos interfaces entre os vários dispositivos da rede e suas funções. P.e., nenhuma das normas referia como se fazia um telemóvel mas apenas as suas funcionalidade e formas de interacção com a rede - e a partir daí cada fabricante poderia fazer os terminais como queria. Parece-me que os devices integrados no corpo estão tão longe dos actuais terminais como um F-16 de um papagaio de papel - mas são bem conhecidas previsões sobre o futuro feitas por grandes figuras que saíram completamente erradas, e de grande figura eu nada tenho.

Talvez os avanços na tecnologia atinjam uma saturação mais rápida do que se julga. Fico por vezes com essa ideia porque para haver progressos lineares na tecnologia a quantidade de problemas a resolver aumenta geometricamente - assim me parece.

Em relação à "Sociologia do Telemóvel", trabalhando numa empresa de comunicações móveis tenho o privilégio de ver algumas das melhores e piores utilizações do aparelho. Entre as melhores acho que se podem nomear: reforçar dinâmicas de trabalho, criando novas oportunidades de negócio nas mais diversas áreas; Aproximar o país, já que uma ligação Açores - Lisboa é semelhante e custa o mesmo que uma ligação Lisboa - Lisboa.
As desvantagens são também bem conhecidas. Muitas já aqui foram apontadas. Existem mesmo casos doentios de utilização dos telemóveis e são inegáveis os condicionamentos sociais que eles podem provocar, melhor, o telemóvel é mais uma das variáveis na luta pelo estatuto e pela felicidade - por si nada faz. O que prende as pessoas são os seus desejos e ansiedades e não um qualquer aparelho exterior a si - só quem se deixa dominar fica dominado. "


Smaug comenta no Incongruências as notas sobre telemóveis:

O nome que sempre dei aos telemóveis, e aos seus antecessores bips/telebips [estes já podem ser acrescentados à lista de objectos em extinção], foi “A Trela”. Estes malogrados objectos funcionam como uma trela sem fio, mas que se pode sempre, ou quase sempre, puxar.

“Onde estás?!” – tornou-se pergunta inicial que quase todas as conversas telefónicas, só depois se pergunta “Como estás?” (se se perguntar...). Uma coisa muito útil é a personalização dos toques do telemóvel dependendo de quem nos está a ligar, o meu só toca para meia dúzia de números, para o resto faz um discreto “bip” e deixa-se ficar caladinho.

Faço uma pequena correcção ao texto de JPP, na parte do “2. Diálogos de um futuro muito imediato – cedências de liberdade”. As redes de telemóveis, por motivos intrínsecos ao seu funcionamento técnico, sabem sempre a localização dos aparelhos com uma margem de erro relativamente pequena, a Optimus e a Vodafone comercializam serviços que fazem uso dessa capacidade.




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UMA CIDADE QUE SE CHAMA “INVICTA”

... não pode ser igual às outras. E não é . Tem uma força interior enorme, escondida, tantas vezes desbaratada em querelas ridículas quando à sua frente tem os que fazem do Porto província.

O que há de melhor no Porto é a liberdade, uma liberdade que não veio de comboio de Paris, uma liberdade que não era a dos carbonários, mas a profunda liberdade dos burgueses , a liberdade do trabalho, a liberdade do comércio, a liberdade das associações mútuas dos operários, a liberdade mais copiada dos ingleses do que dos franceses. É uma cidade onde podiam ter vivido os Buddenbrook e onde Thomas Mann poderia ter sido cônsul. Mann gostaria do Porto.

A gente que lá nasceu sabe onde está essa liberdade sólida, presa ao granito, na Rua Mouzinho da Silveira, na rua das Flores, no Largo dos Poveiros, em S. Lázaro, nas fiadas de casas de granito e azulejo vidrado da rua D. João IV, na rua da Alegria, em Fernandes Tomás, em Passos Manuel.

E depois naquelas ruas que já não tem a função que tinham desde a rica S. Catarina, até à humilde e desconhecida Travessa da Póvoa, nas ruas operárias onde se morria de cólera e de tifo nas ilhas. É o Porto que foi a terra dos operários e não Lisboa. Lisboa tinha Alcântara, mas o Porto tinha as grandes fábricas , dos tabacos no Campo 24 de Agosto, de Salgueiros , no Graham, na Boavista , no Freixo, em Lordelo, nas conservas de Matosinhos.

Já disse isto vezes sem conta, inclusive em comícios, quando se grita para que não nos ouçam o sentido, mas não consigo começar a falar do Porto sem estas primeiras palavras.

*

O Porto fez-me gostar de uma qualidade sem grandes elogios nos dias de hoje e também sem grande reconhecimento social, por muita retórica que à sua volta se ouça, a integridade. Muita da vida pública portuguesa não seria o que é, se houvesse um pouco mais de reconhecimento social da integridade. Se os íntegros não parecessem personalidades obstinadas, com mau feitio, “pouco maleáveis”, como agora se diz.

O Porto fez-me gostar das pessoas simples, íntegras, ainda não tocadas pela usura das palavras, ainda não ecléticas, ainda não dominadas pelo amor-próprio destrutivo, ainda não obcecadas pelas suas virtudes e pela sua facilidade, ainda não acumulando superfícies como quem acha que a vida é um longo espelho, ainda não distraídas, ainda não impacientes, ainda querendo mais alguma coisa com uma tenacidade de absoluta dedicação. Como o Porto é feito de granito em vez de calcário, selecciona a dureza, a persistência, o trabalho, as boas contas, as “contas à moda do Porto”, e já revelou na sua história que pega em armas quando é preciso.

Nunca mostrei a minha cidade, mostrar de mostrar, a quem eu não ache íntegro. Sei de quem nunca lá irá pelas minhas mãos.


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O PORTO

É a minha maior injustiça no Abrupto. Ainda não ter falado da minha cidade, da qual me sinto sempre em estado de heimatlos, esteja onde estiver, mesmo nos sítios onde estou totalmente bem, entre as torres ou na terra onde “a l'istà piove a contrà.”



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EARLY MORNING BLOGS 16

And Now For Something Completely Different”, (grita o Hipatia, pela voz dos Monthy Python, metendo um susto aos desprevenidos) …

… a blogosfera está a começar a assentar depois das turbulências dos últimos dois meses. Está muito diferente, muito melhor, muito mais plural, com muitas vozes falando de coisas distintas, com blogues novos com temas novos. Está menos literária, sem deixar de estar literária, mais problemática, menos afirmativa e mais curiosa e, até , mais engraçada porque menos engraçadinha.

Blogues como a formiga de langton , o Sócio[B]logue, Companhia de Moçambique , o projecto do Metablogue, o Retórica e Persuasão, Reflexos de Azul Eléctrico, Avatares de Desejo, Médico Explica Medicina a Intelectuais e vários outros, fizeram a diferença. Para sermos justos vieram na sequência dos bons blogue políticos à volta da dupla Coluna Infame – Blog de Esquerda e dos excelentes blogues sobre jornalismo que foram pioneiros como o Ponto Media e o Jornalismo e Comunicação

Uma das melhores descrições da blogosfera está numa citação da Utopia Art Biennial, LX, 2001, feita pela formiga de langton , sobre o "enxame"

"Take any swarm. Take any collective natural system, where many parts are present. Study it. Identify which rules are prominent at local neighbours. The simpler the better. Understand if they are similar in any other natural system. You will probably be astonished. Now, collect them together in any computer. Mix them. Play it and let them evolve by their own. Soon, you will perceive organization. Any type of organization. What you will see is nothing more than the decay of entropy. But, don't stop it and feed the system with diversity. Re-inject knowledge if you think they will take profit of it. Memory among the whole is emerging. Even better than that: parts of the system at different locations can perceive the whole. Now, from time to time, allow the system to become slightly chaotic. Evaporation is one way. Oh, yes! Solutions found so far become more robust and flexible. Now, take this whole as a unit. And take any other whole. And another one. Take a lot of wholes and collect them in a computer, or in any other type of information structure. Put them in another layer of complexity. Mix them. Play it and let them evolve..., are you pleased?"


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JÁ DO OUTRO LADO


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META-LIVRISMO / OBJECTOS EM EXTINÇÃO 17

Para os amadores do meta-livrismo, livros sobre livros, parente próximo do meta-bloguismo, a Bloomsbury publicou Lost Classics. Writers on Books Loved and Lost, editado por Michael Ondaatje / Michael Redhill / Esta Splading / Linda Spalding. É a reedição, acrescentada de novos textos, de um número especial da revista Brick sobre os livros que gostamos muito de ler numa altura da vida e depois desapareceram. Desapareceram da nossa casa, das livrarias , estão esgotados , ninguém se lembra deles, foram para o gigantesco limbo dos livros. E , no entanto, o fantasma continua connosco:

A book that we love haunts us forever, it will haunt us, even when we can no longer find it on the shelf or beside the bed where we must have left it.".

A razão porque esta nota é dupla, como as estradas que se perdem nos mapas uma na outra, sendo uma, mas duas, é porque, num certo sentido, estamos a falar de “objectos em extinção”, livros perdidos de que sobram “memories of reading

The dialogue with the mind of an absent other, that conversation both silent and shared, that moment when a reader seems to have found the perfect mate”.

Logo a abrir, Margaret Atwood fala do Doctor Glas de Soderberg e depois há Lafcadio Hearn, e Kipling e Bulgakov, em títulos quase desconhecidos e muitos outros de que nunca tinha ouvido falar, “perfect mates".

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VER A NOITE, de novo

Noite de mistura, nem negra, nem azul. Não se vê nada de jeito, mas é a primeira em que ouço os grilos. Talvez só um, esforçado, enchendo a noite de sons. O barulho de tão pequeno bicho é enorme, é preciso ouvi-lo para perceber como enche o espaço, a noite toda. Hoje, em vez das estrelas, olho para a terra.

“Não faz mal nenhum um pouco de gravitas”, diz o grilo.


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24.7.03


VER A NOITE

A primeira “estrela” da noite foi um Airbus.

Volto mais tarde.

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SCRITTI VENETI

Ele escreveu, a esta mesma precisa hora, diante do palladino Redentore: “Foge de mim. Eu sou insalubre como a água destes canais miasmáticos. Já corro para outro lado, contra natura, terra dentro, levando a peste. Cuidado com o cão, cuidado com os cães. Está uma guerra em curso.” (Phobos)



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A MÃO QUE PINTA

Algumas leitoras do Abrupto (e digo leitoras porque foram só leitoras) tem perguntado sobre a origem dos fragmentos dos quadros , quase só horizontes, aqui esporadicamente colocados. A origem é muito diversa, a maioria são de pintores do Norte da Europa, paisagistas do século XIX, pintores relativamente pouco conhecidos e de colecções pouco acessíveis. Por exemplo J. C. Dahl ( a maioria), William Bell Scott, etc.
As razões porque não identifiquei até agora a sua autoria, são em primeiro lugar “narrativas”, não queria acrescentar qualquer referência que “distraísse” quem os vê para um outro mundo que não fosse a sua presença e o que eles “dizem”. O seu uso não é o de uma citação, mas o de um símbolo. Na verdade, não são os quadros que cá estão, porque eles não são assim, mas o meu olhar sobre eles que muitas vezes fica assim perdido num pequeníssimo fragmento ignorado num canto da pintura.

Talvez, quando o tempo os tornar “narrativamente” inúteis, eu coloque um nome junto do horizonte.


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CADA VEZ MAIS LONGE


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OBJECTOS EM EXTINÇÃO 16

Pedro Robalo no Complot fala da memória das casas :

"Na casa de praia dos meus avós, onde me encontro, foram feitas, recentemente, algumas obras. São muitas as modificações que umas obras imprimem numa casa. Escolhas estéticas aparte, existem pormenores técnicos que uma intervenção não pode deixar intactos.


Um dos que mais se faz notar é a colocação dos interruptores eléctricos. Se se fizerem alterações à instalação eléctrica principal, é muito provável que os interruptores mudem de sítio, sendo colocados a uma altura de menos de um metro do chão. Nas casas mais antigas, que é o caso, os arcaicos e barulhentos exemplares eram colocados muito mais acima: um metro e meio pelo menos. Desconheço as razões de ordem técnica que justifiquem um e outro caso.


O curioso nesta mudança é a sua interferência nos actos mais banais - o que nos faz reflectir acerca da profundas raízes dos hábitos adquiridos. Trocando por miúdos: agora, de cada vez que entro numa divisão escura, levo pelo menos 20 segundos tacteando a parede em busca do interruptor. Só depois, chamando a razão a este acto irreflectido, realizo que ele se encontra noutro local. E, de cada vez que isto acontece, a casa que era e já não é aflora-se à memória, despoletando um misto de nostalgia e desconforto. Por muito boas que sejam as mudanças, há sempre nuances de saudade que só o tempo consegue apagar. Por mais insignificantes que sejam."



Eduarda Maria da “ bata da escola. Além dos uniformes nos colégios (que ainda se mantém), havia a bata, nas escolas públicas. Embora há 30 anos pensasse o contrário, hoje em dia não consigo encontrar uma única desvantagem para o uso da bata. (Acho que já chegámos todos à conclusão que a liberdade não passa nada por aí).

Miguel Marujo do Cibertertulia lembra “os sinos das igrejas - ou as suas badaladas! - hoje em dia substituídos por ensurdecedores altifalantes a debitarem versões duvidosas do "Avé" de Fátima!”

Miguel Leal dos “eléctricos”:

Os "Eléctricos " 25 e 26 , referência fundamental da minha infância . O bilhete , pequeno , frágil e cor-de-rosa - retirado de uma resma de bilhetes da mesma cor- obliterado por pressão manual com um instrumento também ele extinto , custava 13 tostões. Os eléctricos 25 e 26 , dizia , faziam o mesmo percurso mas em sentidos diferentes. O percurso era denominado "circulação" e a carreira era indicada à frente e à rectaguarda dos eléctricos com a designação de "Estrela - Gomes Freire " , através de um mostrador envidraçado que era preenchido por uma espécie de papiro que se desenrolava e que ia indicando os diversos destinos que se praticavam na Carris desse tempo.
A minha avó e eu , "apanhávamos " o Eléctrico na segunda paragem da Rua Ferreira Borges ", em Campo de Ourique .Seguíamos então na direcção da baixa pombalina - atravessada generosamente em toda a sua extensão - através da "panificação " , Amoreiras , Rato e Conde Redondo , onde era feita por vezes a mudança de guarda-freio. Avançávamos, junto ao rio, torneando o Cais do Sodré em direcção ao bairro chique da Lapa , com início da subida em Santos. A rua Buenos Aires antecedia a descida para a "Estrela " que por sua vez antecedia a subida para a Rua Ferreira Borges onde nos apeávamos na mesmíssima segunda paragem.
Uma Lisboa abrangente , por 13 tostões , em 45 minutos e com partida e chegada no mesmo local.”


Tito no Entre Pedras, Palavras colocou a seguinte nota:

"O pente religiosamente guadado no bolso de trás das calças".
Os homens já não guardam, junto das cautelas, o pente. Já não fazem aquele gesto firme de colocar em ordem o cabelo, acompanhado pela suavidade da mão, que suada conferia aquele estrutura una e circunspecta.
Os homens já não param à porta das repartições públicas, dos consultórios, dos cafés, a olhar para um vidro e a desenhar a regra e esquadro a risca ao lado.

O pente, naquele plástico matizado de castanho, morreu.
Eu próprio já não me penteio vai para uma vintena de anos. A última vez que penteei foi no dia da comunhão solene. Hoje junto à Estação de S. Bento já não se vendem pentes, hoje à porta da "Adega do olho" já ninguém se penteia, amanhã entre uma e outra sande de presunto, no "Louro", ninguém tirará o seu pente e será mais homem. Hoje quando saio à noite e vejo os rapazinhos que habitam o estado novo, com a melena cuidadosamente despenteada à frente dos olhos, juro que rezo para que entre um qualquer paquistanês e que em vez de rosas traga na mão um bouquet de pentes para guardar no bolso de trás das calças
."



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LIMITES (Actualizado)

Ontem referi a fusão entre os devices cada vez mais bio e o nosso corpo, acentuando a “hierarquia e fragilidades” dos sentidos. Encontrei em A Pedra e a Espada um exemplo dessas limitações:

O compositor Eric Satie tem uma obra para piano que demora 24h a ser executada na totalidade.
Isto implica que sejam necessários vários pianistas que se vão revezando, por forma a que a peça possa começar e terminar sem interrupções.
Conta-se que numa das raras execuções dessa peça em Nova Iorque, quando esta terminou um dos elementos da audiência se colocou de pé batendo palmas frenéticamente e gritando: "Bravo! Bis ! BIS!".


Uma música, Vexations, não pode ser tocada senão por vários pianistas, a não ser que alguém queira entrar para o Guiness. Seria difícil, porque uma das coisas que Cage verificou quando se interessou pela peça, é que ela é também muito difícil de memorizar, mesmo quando fragmentada em partes a serem tocadas por diferentes pianistas. Satie revelou limites.

*

José Carlos Santos acrescenta algumas precisões sobre Vexations:

"Da primeira vez que esta obra foi interpretada, no Pocket Theatre de Nova Yorque, foram precisas apenas 18 horas e não 24. Um dos doze pianistas que participaram na estreia foi John Cage, que tinha tido conhecimento daquela obra em 1949 através de Henri Sauguet, amigo de Satie nos últimos anos da vida deste. Mais importante do que isto é o facto de as Vexations consistirem numa sequência de apenas 180 notas tocada 840 vezes (na estreia, Cage tocou-a 75 vezes)."


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VER A NOITE

Noite sem brilho, baça. Nuvens, humidade. Vê-se Marte, e meia dúzia de estrelas, soltas das constelações pelos fios das nuvens.

Lá longe, por cima das camadas inferiores da atmosfera, muito acima de nós, os mesmos astros caminham perfeitos nas mil cores em que não os vemos. De novo me faz falta o par invernal de Orion , Alpha e Beta Orionis, Betelgeuse vermelha e Rigel azul.

Betelgeuse , a "yad al jauza," , a mão da Mulher, a gigantesca estrela vermelha em que cabemos todos.


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ABRAÇO

Um grande abraço mais que público para o Carlos Andrade que é um homem bom, primeiro, e um bom jornalista, depois.

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23.7.03


NÚMEROS

O Abrupto ultrapassou há uma semana as 100000 “pageviews” pelo seu contador mais antigo, o do Bstats. Ultrapassou hoje as mesmas 100000 pelo contador do Sitemeter, que se pode consultar abaixo. No entanto, ainda não o fez pelo contador mais recente, o do Bravenet que vai na casa dos 90000. Esperarei pelos 100000 neste último que é aquele que é mais visível oara quem lê a página. Seria um pouco estranho estar a festejar – sim festejar, porque na concepção deste blogue é gratificante para o seu autor que seja lido – um número que não é aquele que aparece diante dos olhos de quem lê. Nessa altura falarei um pouco mais da solitária orientação editorial deste blogue.

Gostaria que, quem tivesse mais experiência destas coisas, me ajudasse a escolher o melhor contador, para, terminado este período experimental, eliminar os outros.


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TRATADO DOS TELEMÓVEIS – a “biologização dos devices” e notas dispersas (Actualizado)

O efeito dos telemóveis, que tenderão a perder este nome com o cada vez maior afastamento em relação quer aos telefones, quer aos nossos conceitos de mobilidade, será cada vez mais poderoso quanto o device se incrustar no nosso corpo. Passará da nossa mão, onde existe ainda como objecto autónomo, para a nossa roupa e daí para a nossa pele. Colar-se-á ao corpo, como a televisão se colará às paredes da nossa casa ou aos nossos olhos.

Esta evolução, a que tenho chamado a “biologização dos devices”, potenciará um novo mundo de relações humanas e sociais. O provável é que, quanto mais os aparelhos se aproximarem das fontes dos nossos sentidos, mais se moldarão à sua hierarquia e às suas fragilidades. Ficaremos cada vez mais presos à visão, o nosso mais enganador sentido, e à janela sobre o mundo que ele nos dá. Cada vez mais quem controlar o que vemos, controla o que somos.

Haverá um esplendor de imagens pobres – jogos, pornografia, superfícies – no lugar da vida vivida, com o crescimento de uma virtualidade que funciona como ersatz dos prazeres reais caros, e o pensamento recuará empurrado pelo automatismo dos gestos programados (permitidos). O tempo e o espaço mudarão significativamente a uma maior velocidade do que aquela em que já estão a mudar e que já é muita.

As imagens sem símbolos serão o “ópio do povo”. Não excluo que, para cada vez mais pessoas, a felicidade aumente porque a felicidade é a impressão de estar feliz. À medida que a diferença entre a virtualidade e a realidade seja cada vez menor, e dependa de literacias hard e de posses (posse) no mundo hard, os pobres terão eficazes técnicas de felicidade virtual à sua disposição.

Este texto é experimental, explora apenas alguns caminhos, pela via do exagero como método.

*

Uma nota: um pouco por todo o lado nos textos dos blogues o acto de ir para férias está directamente associado ao abandono no não-férias dos mecanismos de comunicação - televisão, telefones, jornais.
Interessante esta percepção de um afastamento do mundo pela recusa dos seus canais de comunicação como sendo "férias". Como se o trabalho fosse hoje apenas receber, estar imerso em comunicações, informações.

*

A Ana escreve :

Não concordo que o telemóvel ponha em causa o direito de ignorar um telefonema. Esse é precisamente um dos direitos que apenas têm as pessoas com telefone. O gozo bestial/ às vezes o sofrimento de o ignorar.
Por isso, sugiro a eliminação deste direito no projecto de Tratado dos Telemóveis. Ou então a sua inclusão num artigo autónomo com a epígrafe Boa Utilização do Telemóvel - Liberdades.
Podíamos fazer uma Convenção Preparatória do Tratado dos Telemóveis
.”

JPT escreve:

"há três meses que desliguei de vez o telemóvel, perdi direito a numero até. Todos me olham algo estranhos como se alguma coisa meio-grave me tivesse acontecido. Ou entao reforçando a ideia (talvez ja algo formada) de que tenho a mania que sou um bocado diferente, "a modos que quer parecer intelectual" ou quejando."


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LONGE


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TRATADO DOS TELEMÓVEIS – primeiros fragmentos

Nota prévia - Os telemóveis são a guarda avançada (ou a revelação) de toda uma série de mudanças sociais em curso associadas a novas tecnologias. Como todas as mudanças elas não emanam directamente das tecnologias mas sim das suas relações com o modo como socialmente são moldadas pelo mundo “exterior”. Não é haver telemóveis, é o uso que as pessoas dão aos telemóveis. O que se está assistir é só o princípio.

1. Carta dos direitos que o telemóvel ameaça (carta dos estilos de vida ameaçados) :

O direito de não ter telemóvel e não passar por mentiroso quando se diz que não tem.

O direito de não ter que andar com o telemóvel 24 horas por dia.

O direito de não ter o telemóvel sempre ligado.

O direito de não ter que fazer dezenas de telefonemas inúteis apenas porque se criou o hábito de falar de cinco em cinco minutos.

O direito de ignorar um telefonema.

O direito de não responder a um telefonema. Telemóveis e atendedores de chamadas tornaram alguém sempre presente, e obrigatoriamente informado de que outrem telefonou pelo que é socialmente inaceitável que não responda.

Deixou de se poder dizer – “desliguei os telefones” - porque o atendedor de chamadas regista tudo como se o telefone estivesse ligado. “Não podes dizer que não sabias, deixei-te mensagem. Porque é que não respondes?”


2. Diálogos de um futuro muito imediato – cedências de liberdade

“- O meu presente de aniversário é este telemóvel moderno que tem GPS e pode-se saber onde uma pessoa está a qualquer momento.

- Pode-se saber?

- Pode

- Não sei se quero…

- Tens medo que eu saiba onde estás?

- Não, não tenho medo…Dá lá o telemóvel.


Outro:

“ - Onde estás?

- Estou aqui.

- Aqui aonde? Liga o vídeo do telemóvel.

- Para quê? A chamada vai ficar cara…

- Para eu ver onde tu estás.”


3. Monólogos do presente – matar alguém no telemóvel

“Ele tinha quatrocentos e vinte e oito mensagens gravadas. Recados, gritos, murmúrios, desejos, fúrias, calmas. Resolveu apaga-las a todas e, como era homem de memórias, o acto era importante. Ao apagar matava alguém. Carregou no botão porque há actos que nem o direito à memória têm. Pouco a pouco, começava a memória a encher-se outra vez. De pessoas vivas.”

Outro:

“Ela dizia – o telemóvel é minha liberdade.

Enganas-te. É a tua servidão.”



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EARLY MORNING BLOGS 15

Tanto azedume à solta por aí. Olhem que são só blogues, não são buldogues.

A Conversa da teta regista um aspecto interessante dos blogues: vivem sem subsídios e não pagam impostos.

Não há assim tantas actividades em Portugal que se possam gabar de viver sem subsídios. Mas sendo o país como é, e as artes e as “culturas” como são, lá virá o dia em que alguém peça um subsídio para fazer um blogue, “cultural” obviamente, e depois virá outro e outro. E virá um dia em que um governante “inovador” alargará as bolsas para escritores a “novas formas de escritas”, ou seja aos blogues. E depois começará o ciclo que é bem conhecido na “cultura”: fazer um blogue significa o direito natural a ter subsídio, e os blogues grátis vão sendo cada vez menos. E haverá declarações zangadas que este blogue não pode continuar porque não sabe se vai receber o subsídio, e haverá júris para julgar as propostas dos subsídios e manifestações e abaixo-assinados e declarações parlamentares sobre a mentalidade contabilística do governo da altura que corta o dinheiro para os blogues. Assim por assim já houve um tempo que a ideia de subsidiar o teatro parecia bizarra, já houve um tempo em que a maioria do teatro não era subsidiado. Há muito, muito tempo.

No Monologo a razão porque o MyLifeBits vai ser um sucesso : "queria ter-me fotografado todos os dias da minha vida. só assim tinha a certeza que vivi cada um deles".


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VER A NOITE

On the road . Um planalto elevado, horizonte sem limites, nenhuma luz, e hoje brilha, como nunca nos últimos dias, o campo das estrelas. Meia esfera celeste move-se, como sempre, com as grandes constelações do Norte visíveis. Ainda não é uma noite perfeita, a Ursa grande, virada para o lado do mar, está um pouco apagada pelas nuvens. Falta-lhe uma estrela.


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22.7.03


TRIVIA

Agora quando se quer um jornal em linha, Público ou Diário de Notícias, o computador toca como o mais odiado dos telemóveis para fazer um reclame de uma coisa chamada sms. Deus sabe, como diria o homem das feiras e mercados, como deles fujo.
Fazer um tratado sobre os efeitos sociais da omnipresença dos telemóveis e seu toque que manda, ordena, lembra sem perdão.


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CONVERSA

Numa conversa com o senhor C.: “O meu avô morreu uma semana depois de minha mãe. Abismou com a morte dela”.

“Abismou”, caiu num abismo, caiu num abismo com ela, por causa dela. “Abismo” é uma daquelas palavras em que não se repara, até um dia. É uma palavra com medo dentro.


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SUDOESTE


Já me referi aqui a uma série de edições da Sudoeste que me tinham surpreendido pela qualidade. Acrescento duas que ainda mais reforçam essa verificação. E que duas! Uma é uma tradução de Sete Odes de Píndaro, de Maria Helena Rocha Pereira; outra, uma edição da Experiência de Ler de C.S. Lewis.

Nos poemas de Píndaro cada linha é imensa. Escritos para heróis que só estão longe de Michael Schumacher, pelo que faziam fora da arena olímpica, não pelo que faziam dentro da pista das corridas, como este Hierão de Siracusa , vencedor da corrida de cavalos:

Um grande risco não arrasta
Um homem cobarde. Para quem tem de morrer,
Porque há-de consumir em vão, sentado à sombra,
Uma velhice apagada,
Sem provar quanto há de belo?


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VER A NOITE

Está escuro, muito escuro, mas uma noite péssima para ver estrelas. Deve haver humidade, nuvens no alto.
Este escuro já não se vê nas cidades em nenhuma altura, a não ser quando falta a luz.
Marte voltou para trás, nesse movimento dos planetas que mostra que não fazem parte da esfera superior e são matéria perecível. Mesmo Marte.

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21.7.03


PERTO


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20.7.03


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 15

1) A campainha na sala de jantar, no meio do chão, para chamar a criada. A primeira vez que os meus pais mudaram de casa, na nova casa lá estava no meio, brilhante de metal, a campainha. Embora houvesse criada, a campainha nunca foi utilizada.

2) RIP do blog-notas sugere o tira-linhas:

Esse pequeno artefacto, indispensável á elaboração de desenho geométrico, podia ser montado num suporte vertical ou adaptado ao compasso, vivia em alegre concubinato com o tubo de tinta-da- china e constituía, quando manejado por mãos inábeis, o maior dos pesadelos para a alva pureza da folha de papel.

Foi substituído pela Rotring (marca que simbolizou os diversos sucedâneos) e, o epitáfio que assinala a sua passagem à galeria da história, recorda-nos que

Aqui jaz o tira-linhas,
instrumento de terror,
que borrava as mãozinhas
ao aluno e ao s’tor!

Mas o seu maior valor,
(pese embora o seu aspecto),
era p’ro desenhador
que elaborava o projecto!

Viveu em paz e alegria,
com a tinta, que da china,
tinha o nome, e se vendia,
em tubos de forma fina!

Deixou-nos como legado,
esta triste nostalgia,
que recordo, com agrado!
Mas num blog??? Que ironia!!”


3) Ricardo Ruano Pinto (RRP) do Hipatia lembra a "Mariconera"

essa malinha masculina, com pega ou pegas, de couro (embora tenha visto algumas em tecido), que se transportava debaixo do braço, que a par de outros equivocos da moda seventies, ainda hoje deixa muitos envergonhados e outros comprometidos.”

4) José Carlos Santos lembra “os documentários que passavam nos cinemas antes do início dos filmes. Creio que desapareceram ainda antes do 25 de Abril, vítimas da televisão.”

Também lembro, com alguma nostalgia, os momentos em que a sessão do cinema tinha documentários, "actualidades", desenhos animados, filmes anúncios, reclames da Belarte, dois intervalos e o filme. A voz brasileira dos documentários sobre a natureza – “voando sobre as altas montanhas dos Andes , o condor passa” …- ainda a ouço e as montanhas e o condor cabiam na enorme tela.



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EARLY MORNING BLOGS 14


À procura de textos pré-blogue ando pelos diários de Tolstoy e pelo diário de Kafka. Na edição francesa de Pierre Klossovski, de Kafka, que agrupa debaixo do título “diário íntimo”, textos de diário e grupos de aforismos com temas comuns são estes últimos que são mais parecidos com este tipo de escrita. Por exemplo, as “Considerações sobre o Pecado, o Sofrimento, a Esperança e o Verdadeiro Caminho”, falando da “impaciência” adaptam-se bem a este meio:

Todas as faltas humanas têm origem na impaciência, uma ruptura prematura do esforço metódico: fixamos sobre um suporte aparente, o objecto aparente”

“Há dois pecados mortais humanos donde decorrem todos os outros: a impaciência e a preguiça. Por causa da sua impaciência, foram expulsos do Paraíso, Por causa da sua preguiça não voltam para lá. “


O carácter fragmentário da escrita “cabe” na página e favorece a citação. Retorno a uma nota minha, já arquivada, de Lukacs sobre Nietzsche e as características do texto facilmente citável.
Incluir os aforismos.

*

Para a Montanha Mágica e os seus leitores uma sugestão, caso não conheçam. Num magnifico livro , de meta-livrismo neste caso , editado por Dale Salwak intitulado A Passion for Books, Nova Iorque, St. Martins Press. 1999, agrupando uma série de textos sobre o amor pelos livros , está um ensaio de Jeffrey Meyers intitulado “Obsessed by Thomas Mann”. Meyers escreve como, desde os 16 anos, se foi enleando em Thomas Mann e, livro a livro, foi ficando “obcecado”. Conta como leu os livros, como foi modificando essa leitura à medida que sabia mais sobre Mann, as visitas aos lugares da vida de Mann, a Veneza, a Davos. Meyers critica os filmes feitos sobre obras de Mann, e a representação de Aschenbach na Morte em Veneza de Visconti.
Obrigatório para os “mannianos”. Se o autor da Montanha em blogue quiser posso mandar-lhe o texto.



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VER A NOITE


Não se vê a Lua. Marte lá está, o príncipe dos céus por estes dias.
Olhando para Marte, virando 90º para a esquerda, a Cassiopeia. Faz-me falta Orion, a constelação que enche o céu, que lembra as noites mais brilhantes do Inverno.

Está um vento fresco, ligeiro, leve, como para lembrar que há ar.
Não se ouve nada. Para onde foi o ruído?


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19.7.03


UM NINHO




Um ninho de “verdinhogo” , em cima de um livro, Feito com musgo e com “cabelos”, parece algodão no meio. Resistiu a ventos muito fortes. Caiu intacto depois de três pássaros terem seguido à vida, quando já era inútil. No chão parece fragilíssimo. Sei que não é.

Segundo V., o “verdinhogo” é um pássaro cinzento “esverdinhado”. “Canta melhor do que o “mandarim” que tem bico vermelho, cinzentinho, mas com riscas encarniçadas. Como o bico tem é como o corpo”.









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"COM O TURISMO NÃO SE BRINCA"

O que é exactamente o que está a fazer quem encomendou os anúncios com os bonecos da Contra–Informação que passam na televisão? É difícil fazer uma coisa tão feia, tão repulsiva, tão ineficaz como esses anúncios. O que é que passa pela cabeça de quem os encomendou, pensou e comprou? Qual é o “alvo”, como eles dizem? Qualquer pessoa que veja aquilo foge a sete pés do país que assim se representa, certamente porque é assim que é.

*

E os do Expresso, que não sabem absolutamente nada se estou em férias e onde as passo, se estou cá ou nos antípodas, com a imaginação de uma betoneira estacionada junto de um estádio de futebol, colocam-me na praia junto da fauna, de toalhinha e computador …


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DE LONGE PARA LONGE


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OBJECTOS EM EXTINÇÃO 14 (Actualizado)

1. As vozes que não se ouvem mais.
São “objectos”? Como é que ficam na nossa memória?
Como uma coisa?

A voz de Nemésio, a voz de Villaret, a voz de David Mourão Ferreira, a voz de Beatriz Costa, a voz de Salazar, a voz de Vasco Santana, a voz de João César Monteiro, as vozes dos nossos, pouco a pouco desaparecendo.

As vozes que já não se ouvem há muito tempo, as vozes que deixaram de se ouvir. As que falam baixo à noite, as que se estão a esquecer, as que gritam quando as queremos calar, as do silêncio.

Devia haver um catálogo de vozes.

(A rádio, catálogo de vozes).

*

Miguel : "A voz da minha mãe é a única memória dela que me não resta mais . Foi-se rápida num vento sem retorno. Desfez-se. Num entanto acho que prescindiria de catalogar a sua voz , mesmo que tivesse tido oportunidade. O registo da voz é-me demasiado brutal face à irreversibilidade da perda."



2. Acabou a telescola. Portugal mudou.

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EARLY MORNING BLOGS 13


Eu sou um adepto do meta-bloguismo, embora pense que o excesso do dito levaria a uma esterilidade completa. O meu meta-bloguismo vem de não conseguir usar um meio sem me esforçar por o perceber. Num primeiro tempo, este olhar “tira” liberdade, condiciona, “prende” e por isso o meta-bloguismo gera sempre um certo mal-estar. Mas há um segundo olhar, que se calhar também vem com o primeiro, que acaba por nos dar uma ainda maior liberdade. Eu sou da escola de quem pensa que conhecer liberta. Não há provavelmente maior ilusão nos últimos duzentos anos, do que achar que as “luzes” alumiam, mas eu prefiro um mundo em que se proceda (eu disse proceda e não acredite) segundo essa ilusão.


Leitura de outra espécie de blogue: os diários de Tolstoy (numa edição de textos escolhidos – o conjunto dos diários é gigantesco e nunca foi traduzido integralmente para inglês - muito boa de R. E. Christian, Tolstoy Diaries , Londres, Flamingo, 1994).

Depois dos Cadernos de Camus fiquei com curiosidade de ver em que medida a mecânica diarística, narcisística, seja lá como for, dos blogues aparecia noutros textos semelhantes. Os mais semelhantes são obviamente os diários, e os cadernos de observações e notas, que funcionam como instrumentos de trabalho para futuros livros, ou como textos para serem publicados.

Não me interessava saber se os blogues prolongam os diários, mas se determinados mecanismos formais – a datação cronológica, a fragmentação do texto pelo tamanho da página, o esquecimento rápido, a interactividade, o papel da citação e contra-citação, o diálogo dentro de uma comunidade e para fora dela – estavam também presentes, num outro contexto tecnológico, em textos semelhantes pela sua natureza aos dos blogues.

Dos que vi nenhum texto é tão próximo dos blogues como os Cadernos de Camus. Se as suas entradas tivessem sido colocadas, dia a dia, por alguém que, como o Pierre Menard do Borges, o quisesse de novo escrever de forma mais perfeita “bloguisando-o”, ninguém distinguiria a diferença a não ser pela qualidade. Os diários de Tolstoy já são um pouco diferentes, mas também não tanto.

Tolstoy escreveu vários diários, durante praticamente toda a vida. Atribuía-lhes grande importância e chegou a dizer “o meu diário sou eu”. Disse “vários” porque, nalguns momentos, escrevia dois ao mesmo tempo, um dos quais intitulava de “secreto”. Esta classificação de per si coloca o outro diário como quase “público” – Tolstoy falava dele aos seus próximos e é provável que estes conhecessem algumas entradas.

Quando alguém escreve um diário para ser lido, o facto de as tecnologias de então implicarem um tempo de espera e maturação para as suas palavras virem a público, não introduz uma diferença qualitativa com os blogues quanto ao dilema público - privado. No entanto, a imediaticidade total da escrita dos blogues gera outras diferenças sem precedente, talvez a mais importante das quais seja o efeito do texto ser público e escapar ao seu autor mal ele o escreva, entrando numa rede que, ao mesmo tempo, o transporta para outros lados e o prende num presente circunstancial. Uma parte dessa rede é a citação e o comentário, o fio das palavras dos outros prendendo as nossas num efeito sem retorno. A etiqueta não escrita dos blogues, que “condena” a retirada de uma nota uma vez publicada ou a sua mudança significativa, tem a ver com a integridade dessa teia. Apagar uma nota, apagar um blogue rompe a teia.

Sem essa teia, sem essa escrita que implica sempre um hiper texto mesmo que virtual, daí os efeitos narcísicos, não havia blogosfera. (É por isso que tenho que reavaliar em relação a textos que anteriormente escrevi, a relação entre o interior e o exterior da esfera). O diário ideal , escrito para ninguém ler, não existe na blogosfera, nunca seria um blogue porque não era para ser publicado. A publicação, mal é feita, faz pertencer o texto aos outros. Tolstoy não defrontava estes efeitos.

(Continua.
O “continua” dos blogues, onde não “cabem” textos longos, é parecido com o dos seriados, histórias aos quadradinhos, e filmes em episódios, só que sem o suspense final).



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18.7.03


VER A NOITE

Antes da Lua aparecer, o Escorpião domina a noite. Pouca luz, está uma noite profunda, com três dimensões, todas negras.
A Lua mudará a noite, mas ainda é cedo nesta parte do mundo.



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DE LONGE PARA LONGE


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NOTAS CAMUSIANAS 6

Um leitor pergunta, sobre o Dom Juan de Camus (neste caso sobre todos) :

“porque é que Dom Juan é feliz?"

Porque não espera.

*

Outro leitor, Salvador Santos, escreve esta outra interpretação das primeiras “notas camusianas” sobre Dom Juan e a traição – Dom Juan “el burlador” :

"Chamo, por agora, à colação, a multiplicidade de D. Juans que existe na figura mítica do grande traidor. Assim, parece-me mais importante saber quem é D. Juan que divagar sobre a qualidade da sua traição ou até, como o faz, como não traidor.

Comecemos por afirmar que D. Juan seria arrogante, cruel e traidor por convicção ou natureza. Em última instância não seria este D. Juan o próprio representante da decadência social que tanto contestava? É ele quem o afirma em El Burlador de Sevilla:

Sevilla a voces me llama
el Burlador, y el mayor
gusto que en mi puede haber
es burlar una mujer
y dejalla sin honor.
Viva Dios, que le he de abrir,
pues salí de la plazuela!
Mas, ¿si hubiese otra cautela?...
Gana me da de reír (Tirso, I, 1448-57).

Ei-lo, o Übermensch.

(…) recordo e cito de memória Nietzsche cuja ideia matriz se aplica a D. Juan. Dizia o pensador que ao indivíduo nunca o elogio o sacia, uma vez atingido o seu objectivo, a paz significa para ele uma nova guerra e a vida deve ser um nunca mais acabar de aventuras cada vez mais perigosas. Ele não procura a felicidade mas apenas o gozo que o jogo lhe proporciona.

Não será por aqui que D. Juan, o traidor, tem ou não esperança. Ou sequer que se consiga avaliar do grau de traição em valor menor ou valor maior, no caso dele ou de outrem. Trata-se, outrossim, de verificar que até os traidores têm esperança depositado a juros num futuro em que nunca o jogo pare, nunca a guerra acabe."

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EARLY MORNING BLOGS 12

Nos blogues …

… as pessoas zangam-se muito, são muito piegas, são malcriadas, são gentis, são espertas, são espertinhas, são parvas, copiam, fazem de conta que não copiam, irritam-se, reconciliam-se, cuidam muito da sua identidade, dão-se todas aos estranhos, representam, representam-se, são azedas, são poucas vezes alegres, são tristes, são tristonhas, são fúteis, são totalmente fúteis, têm interesse, têm interesses, têm egos gigantescos, têm egos pequeninos, têm que “dizer-qualquer-coisismo” , deixam cair muitos nomes, deixam cair muitos livros, parece que lêem muito, lêem muito, não lêem quase nada, nunca vêem televisão, tem graça, são engraçadinhas, têm tribos, têm fúrias, têm territórios, estão sozinhas, estão tanto mais sozinhas quanto mais acompanhadas, têm alguns pais, começam a ter filhos, têm maridos, não têm amantes, têm “o que escrevo é para ti”, têm “o que escrevo é só para ti”, têm “o que escrevo é só para ti”, mas é só para mim , ou para o outro(a), não têm muita paciência, têm pressa de chegar a algum lado, têm a esperança de chegar a qualquer lado, estão convictos que não vão chegar a lado nenhum, têm quereres, têm birras, são meli-melo, são assim …

… porque se calhar é assim na vida toda.

Como os blogues não têm editor, a vida aparece sem ser editada.
Engano, puro engano. Funciona aqui um gigantesco editor, o monstro que está dentro.

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LUA DIMINUINDO, MARTE AUMENTANDO

Ver a noite.
Marte adianta-se e passa para a frente da Lua. Soltou-se.

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TÃO, INFELIZMENTE, PORTUGUÊS (Actualizado)

No ptBloggers, o seu autor escreve “vi-me ontem forçado a suspender as votações e os comentários” . e explica porquê:

além das manipulações das votações (que por serem de conhecimento público, não eram relevantes), começava a observar-se outro fenómeno, consequência dos referidos abusos. O facto da esmagadora maioria das pessoas dar “1 estrela” aos weblogs que achava sobre-avaliados e “5 estrelas” aos weblogs que julgava sub-avaliados, teve como resultado uma aproximação aos valores médios em todos os weblogs. Ou seja, em mais de 500 weblogs avaliados, a quase totalidade tinha 3 estrelas. A tendência aparentava ser a continuação deste sistema. Quando um weblog conseguia subir para 4 ou 5 estrelas, aparecia alguém que lhe dava “1″, para o fazer descer, acontecendo também o mesmo no sentido inverso ."

A descrição é eufemística. Não é bem o "julgamento" que está em causa, mas a niveladora inveja, a pecha nacional de que vale mais serem todos medíocres e quem sobe acima da mediocridade, solta uma multidão invejosa que faz tudo para o colocar no lugar.

*

José Carlos Santos conta esta história verdadeira:

"O texto do autor do ptBloggers, (…) fez-me lembrar um acontecimento que teve lugar quando eu fui aluno universitário. A Associação de Estudantes da minha faculdade organizou um inquérito à qualidade do ensino. Para cada cadeira na qual um estudante estivesse inscrito, havia um conjunto de características («facilidade de acesso à bibliografia», «preparação pedagógica do docente», etc) que ele deveria classificar numa escala de 1 a 5. Uma determinada cadeira era particularmente detestada e os alunos não estiveram com subtilezas; todos, sem excepção, classificaram com 1 valor cada uma dessas características da cadeira. Deveriam ter pensado um pouco mais no que estavam a fazer, pois um dos tópicos a classificar era «grau de dificuldade da cadeira»..."

Aviso: qualquer comentário que apareça assinado “Abrupto” ou JPP ou qualquer variante (com excepção de um colocado a dizer isto mesmo no ptBloggers, ) é falso. Não uso as caixas de comentários para escrever sobre seja o que for.



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17.7.03


DE LONGE PARA LONGE



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OS ESPIÕES DE CAMBRIDGE

Li referências elogiosas à série Cambridge Spies de que vi um ou dois episódios, o suficiente para perceber como é idealizado o que aconteceu. É verdade que, mais do que o costume, a série mostra o “estilo de vida” do grupo dos “apóstolos” transformados em espiões soviéticos. Mas a idealização, neste caso, é particularmente mistificadora porque prolonga a mesma complacência snobe que permitiu a longa sobrevivência do grupo. Esta gente matou – a lista dos agentes albaneses entregue aos soviéticos matou-os um a um, ou mandou alguns e as suas famílias para campos de concentração toda a vida.

Fossem eles nazis e a complacência seria nula. Mas a verdade é que se os “apóstolos” eram genuínos comunistas na sua juventude, em breve se tornaram cínicos que prezavam acima de tudo a snobeira de serem contra o establishment de uma forma irresponsavelmente perigosa. Entre as bebedeiras, o “catalogue raisonné” de Poussin, as gravatas certas, o tom upper class da má língua e os encontros clandestinos com o KGB, tudo parece fácil e exerce nos espectadores o mesmo efeito de atracção das fotografias do jet set em férias ou das casas dos ricos e poderosos. Olha-se para cima , quando se devia olhar para baixo.

É um traço sinistro do “comunismo” das classes altas inglesas, que se encontra também nas manas Mitford, levarem o ar blasé das conversas dos clubes de Oxford e Cambridge a um elevado grau de imaturidade social e politica. A idealização dos Cambridge Spies é isso mesmo: o elogio da irresponsabilidade.

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EARLY MORNING BLOGS 11


Guerra e Pas tem uma delicadeza humana que eu aprecio. Nem piegas, nem cínico, uma combinação muito difícil e nada dessa irritação tão à flor da pele que se encontra em muito blogues disfarçada de convicções. Não concordo com muita coisa que lá se escreve, mas ontem há duas notas, a 108 e 109, que mostram esses méritos.

Sobre a “Vergonha” vale a pena ler uma nota do Icosaedro com o mesmo título , e dois apontamentos em sentido diferente do Sócio[B]logue e do Terras do Nunca. Eu não quero acrescentar mais comentários ao que já disse porque penso que a partir de agora é contraproducente. Mas a nota do Sócio[B]logue intitulada “Os Anormais, o Humor e os Estados-de-Espírito: Apontamentos Breves “ mostra um risco que, há dias, o Pedro Mexia levantava de passagem sobre o papel dos meta-discursos. Eu penso que há ainda outro aspecto mais complicado que é a inerente justificação do real a partir da sua explicação, que é um problema muito próprio do discurso sociológico. Presos na explicação do real, que já explica também como a ele reagimos, que valor ético tem o que fazemos? O Terras do Nunca apercebeu-se disso e diz:

"Eu sei que talvez esteja a problematizar em demasia. E que o momento talvez exija o contrário, o da simplificação. Só ela conduz à acção."

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LUA

Subiu agora, vinda do lado direito (esquerdo), ainda lua de haikai. Antes estava noite escura, Escorpião à frente.

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OBJECTOS EM EXTINÇÃO 13

Alguns leitores desta série (o Paulo Querido do uuh o vento lá fora e o Mário Filipe Pires da Retorta ) sugeriram que ela se torne autónoma e colocada num outro blogue, incluindo fotografias dos objectos referidos, e ofereceram gentilmente a sua ajuda. De novo, insisto, é bem vinda. O material que recebo é tanto, que , a continuar assim , afogaria o Abrupto só de extinções, ( não deixem de mandar sugestões lá porque eu disse isto…) e por isso justificaria um tratamento próprio . Se estivessem de acordo poderíamos tentar fazê-lo em Setembro.

Vamos aos “objectos” em risco de se irem embora na memória:

1) “aquelas capas de pele que há uns anos serviam para levar livros ou blocos dentro. Não sei se tinham um nome específico. Recordo-me que, por foram tinham relevos com bustos do Eça, Herculano, Camões, etc. As melhores eram de pele, em cor natural, ou tintadas. Depois surgiram umas imitações em cartão a imitar pele. A última que vi, há uns cinco anos, era dessas. Não sei se o objecto está em extinção ou extinto. Sei que gostava imenso de reencontrar essas capas para lhes meter livros dentro.” (Terras do Nunca )

(acho que tenho uma , quando a encontrar envio-lhe)


2) o amplificador a válvulas ( e José Victor Henriques acrescentava “sábado, 13 de Julho, no DNA, vai perceber porquê.” Já percebi.)


3) "Coisas que se perderam
- as visitas ao zimbório da Basílica da Estrela;
- o sossego do litoral alentejano;
- as lagoas de Albufeira e Óbidos sem poluição

Coisas que ainda resistem
- as viagens de eléctrico (carreira 28) dos Prazeres à Graça;
- alguns jardins (ditos públicos) de Lisboa;
- o “encher dos olhos” em alguns miradouros de Lisboa
"

(M. Ribeiro Santos)

4) “a proposito de objectos desaparecidos:-o "ring" de borracha tão em uso nas praias! ; ainda joguei com um fabricado com "cabo" e forrado a lona no convez do "royal mail" "arlanza" numa viagem, no início dos anos 60, de de Londres para Lisboa.. tambem já passou à história,e. até era a opção mais barata.”

Mas o oposto, ideia que parece ter abandonado o Abrupto, que objectos continuam a ser usados numa mesma forma, parece um tema muito mais interessante para uma hipótese museologica. A referencia ao livro The Libraries of..lembrou-me The book on the bookshelf do Henry Petroski onde se faz a história das estantes...- aquele tão desejado acessório dos bibliófilos" (Abel Roldão)

5) a "Plateia"

"revista de cinema, ou antes de artistas, femininas, é claro. Que pobreza, dirá... mas que riqueza, naquele tempo! “ (Jose)

6) “O "rio Tejo como fonte de sustento"
.
Imortalizados por Alves Redol no seu livro Avieiros, estes nómadas do rio, como lhe chamou na época, deixaram de existir, por volta dos anos setenta, com a chegada da poluição industrial.
Desde o início do século XX que grupos de pescadores oriundos da Praia de Vieira de Leiria se deslocavam no Inverno para a borda d'água para a apanha do sável e da enguia. A minha família fê-lo durante quase meio século, garantindo assim o sustento dela. Hoje, mais de uma dezena de aldeias "palafitadas" de extraordinária beleza (antropológica se se quiser) permanecem desde Salvaterra de Magos até Vila Franca de Xira. Há meia dúzia de anos, fiz o caminho e fui conhecê-las. Encontrei velhinhas sentadas a olhar o rio que me disseram: "O meu pai era da Vieira, mas eu nunca lá fui, não queria morrer sem lá ir uma vez que fosse
". (João Paulo Feteira)


7) "um link com uma exposiçao online sobre o mesmo tema "things that don't want to die" do Pablo Garber "(Maria Sousa)


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16.7.03


LUZ

Ele escreveu a esta mesma precisa hora:

A terrível luz do fim da tarde quando trabalham as andorinhas e para o vento e começa a correr agua pelos infinitos e pequenos canais verdes.

Na ilha feita pela peste
.”

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UMM KULTHUM

Vi, pelo Portugal dos Pequeninos, que passou na pátria um documentário sobre Umm Kulthum (os franceses chamavam-lhe Oum Kolsoum ), uma das vozes mais extraordinárias do século passado. Escrevi sobre ela um dos textos que era de facto pré-blogue, como outro sobre Mohamed Abdelwahad, al Mousiqar quando ele morreu, há uns anos atrás. É natural que nas secções de “world music” encontrem discos de ambos. Mas não é folclore, é grande, grande música.

Encontram aqui uma página sobre Inte Omri, uma das mais belas canções da dupla Kulthum, a cantar, e Abdelwahab a compor.

São quarenta minutos de emoção pura, com toda a representação quase operática, que este tipo de música pressupunha. Kulthum, de pé, com um lenço na mão, à frente de uma orquestra de cabaret ( depois de concerto), tudo trajado a rigor, abrindo com a longa introdução orquestral, precedendo o momento culminante da primeira linha do poema, “Ragaa’ouni a’einaik el Ayam illi rahou” , “os teus olhos levam-me para os dias que já não voltam” .

Nestas canções este tem que ser o momento perfeito, a entrada da voz, às vezes precedida de pequenos sons anunciadores. A voz tem que se abrir na sala como um profundo lamento, vinda , no caso de um poema como este, de uma dor muito intensa, magoada. O poema é importante, linha a linha repetido, uma longa lamentação triste e nostálgica.

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EARLY MORNING BLOGS 10

Seria ingrato se não referisse o Desesperada Esperança , que se inspirou num livro meu.

Alguns dos melhores blogues que conheço são de jornalistas, e esses blogues tem contribuído para um dos debates que mais falta na sociedade portuguesa: o da qualidade da comunicação social. É um debate para que os blogues são particularmente apropriados (levantei esta questão há um mês, há um século na blogosfera, no texto “Discutir os blogues” ) não só pela sua imediaticidade, como pela liberdade de discussão dos constrangimentos corporativos, que são fortes. Pouco coisa há de mais violento do que uma polémica entre jornalistas ou entre jornais sobre o que cada um faz e não faz. Sei também por experiência própria, e por tê-lo proposto nos últimos vinte anos várias vezes a amigos jornalistas que me pedem sugestões, e a quem respondo sempre – façam espaços de crítica sobre a imprensa como os jornais acham natural fazer sobre a televisão. Sim, muito bem, é muito interessante e nunca avançou.

A imediaticidade, com todos os seus riscos, é importante neste caso porque a memória activa da comunicação é hoje muito curta e percebe-se melhor o que se está a discutir se tiver ocorrido ontem, ou anteontem. Blogues como o Ponto Média e o Jornalismo e Comunicação fornecem depois a distância reflexiva necessária. Imediaticidade e distância, só nos blogues.

Veja-se sobre este debate o Terras do Nunca , Guerra e Pas , Outro, eu e Donos da Bloga


Escrevi umas “Notas sobre o jornalismo político” que ainda estão incompletas, falta a nota sobre o Independente. A razão porque estão incompletas é que ainda não encontrei um texto que queria publicar antes de o actualizar, porque, contrariamente ao que acontece com outros jornais , o Independente ( de Portas e MEC) teve muita influência na fase inicial da blogosfera e merece um tratamento mais aprofundado.

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15.7.03


REMEDIAR A VERGONHA


Os protestos contra a exploração de um ser humano com problemas mentais no último programa Herman SIC estão em dezenas do blogues. Muitos jornalistas e pessoas com acesso a outros meios de comunicação não podem ter deixado de os ler, pelo que só por indiferença moral é que a questão não chega amanhã ao público da comunicação em geral. Eu sei que não existe essa indiferença e que há muita gente incomodada e indignada.

Ficava bem a Herman no próximo programa começar por calar o público, e dirigir-se aos espectadores dizendo uma coisa tão simples como isto : “na semana anterior ultrapassamos neste programa um limite que deve ser inultrapassável e tratamos mal um amigo nosso que tem problemas. Pedimos-lhe desculpas e pedimos desculpa ao público. Não se torna a repetir. " E depois segue o programa.

Não precisa de o nomear, e se o nomear use o seu nome normal e não uma alcunha qualquer. Francisco Balsemão se dissesse alguma coisa também lhe ficava bem.

Eu não tenho muito jeito nem para campanhas destas, nem para filantropias públicas. A última coisa que me passa pela cabeça fazer são campanhas moralistas e não voltarei ao assunto porque já disse o que tinha a dizer. Mas se um gesto deste tipo fosse feito talvez ficássemos todos um pouco melhor.

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SOBRE A TORTURA

Miguel Pinheiro , a propósito das “Notas Camusianas” sobre a traição, enviou-me este texto:

"Elio Gaspari está a publicar vários volumes sobre a ditadura brasileira e,
no segundo, intitulado A Ditadura Escancarada, toca ao de leve nesse tema,
com um ponto de vista interessante (aliás, deixe-me dizer-lhe, a
despropósito, que ele escreve onze páginas (da 20 à 31) brilhantes sobre a
tortura e suas consequências na ditadura, na oposição e na sociedade).

Na pág. 267, Gaspari fala da morte do guerrilheiro Carlos Marighella: ele
foi assassinado pelos homens do regime com base em informações dadas,
debaixo de tortura, por frades dominicanos. Aliás, os religiosos foram
obrigados a estar fisicamente presentes durante a armadilha, servindo de
isco.

Escreve ele: “A presença dos padres na cena da cilada contra Ernesto
(um dos nomes de código de Marighella) adicionou ao episódio uma ideia, tão
falsa quanto perversa, de traição degradante da figura mítica dos
guerrilheiros. ‘Beijo de Judas’, comentou o jornal O Globo dias depois”.

Numa nota de pé de página, Gaspari explica por que é que acha essa ideia
“falsa” e “perversa”: “Os dominicanos teriam traído Marighella se o tivessem
atraído para a cilada por terem mudado de opinião a seu respeito, ou ainda
se, ante alguma promessa de recompensa, visassem algum proveito pessoal ou
político. Um acto praticado diante do medo do retorno a suplícios
sistemáticos só pode ser considerado uma traição se o uso da tortura como
forma de extracção de confissões é aceite como parte do acervo moral e ético
da pessoa que declara traidor o preso submisso”.

Será que mesmo quem fala sob tortura pode, mantendo a sua integridade moral,
não trair – mesmo tendo traído? Pode haver uma traição efectiva (com
consequências como, neste caso, a morte do “traído”) sem haver uma traição
moral? E será que isso serve de consolo ao “traidor”?

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VERGONHA

A vergonha da exploração de um jovem atrasado mental no Herman Sic tem sido denunciada por vários blogues. Esta é uma matéria que deve ultrapassar a blogosfera para chegar ao mundo exterior. Se continuarmos todos a fazer barulho, chega.

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EARLY MORNING BLOGS 9

Quando se lê um número suficiente de blogues e, esforçando-me por sair da rede mais densa do mainstream, – aquele círculo de blogues que estão intensamente “linkados” uns com os outros e tem uma massa crítica suficiente para impor temáticas e aparecer como a face da blogosfera fora dela – apercebem-se as tendências e apercebe-se, acima de tudo, a enorme revolução do meio em Portugal nos últimos meses. Por isso é que o meta-bloguismo é natural, é uma reacção de auto-compreensão e auto-definição compreensível em tempos de tumulto.

Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo como é habitual numa revolução. Cito Lenine, já que os nossos amigos à esquerda tem grande pudor em o fazer, - e permito mais umas brincadeira humorísticas comigo inteiramente previsíveis - porque a frase aplica-se bem ao momento actual da blogosfera :

Só quando os "de baixo" não querem e os "de cima" não podem continuar vivendo à moda antiga é que a revolução pode triunfar.”

O que se está a dar é a democratização da blogosfera com a entrada de muita gente no duplo sentido: novos blogues e novos leitores. Por outro lado, a exposição exterior dos blogues introduziu diferentes critérios de avaliação que não coincidiam com os dominantes no seu interior.

Este efeito acabou com a blogosfera cosy , fortemente estratificada entre blogues a quem ninguém ligava nenhuma e blogues que através de um permanente diálogo, do auto-elogio, de um espírito de elite que ultrapassava claramente qualquer barreira ideológica, se apresentavam como primus inter pares. A distinção esquerda - direita era menos importante do que a distinção entre os amigos e os desconhecidos, entre “nós, os bons” e eles a turba ignara de mau gosto. A lista de “blogues de serviço público” no Blogo era o retrato desse mundo fechado que explodiu.

Era também natural que a maioria das pessoas se conhecessem umas às outras e fossem amigos. Quando, num meio de comunicação qualquer, todos se conhecem, ou todos tem a mesma idade, ou todos tem a mesma formação, ou todos lêem os mesmos livros, ou frequentam todos os mesmos restaurantes, é porque esse meio está na infância.

Tudo isto gera muitas tensões e uma certa irritação era inevitável (“os "de cima" não podem continuar vivendo à moda antiga”). Nalguns blogues mais antigos há uma clara evolução do blogue-optimismo para o blogue-cepticismo, que nada justifica, porque só um cego é que pensa que a blogosfera está pior porque não é um clube de vinte amigos. É natural que tenham vontade de migrar e para isso, por razões psicológicas, desvalorizam o que deixam para trás.

Um dos aspectos mais saudáveis da democratização da blogosfera é que hoje é mais difícil “competir” (tomem a palavra com a latitude que quiserem), ter influência, já há muitas vozes qualificadas, muito saber em muitas áreas, uma diversificação temática, de opiniões e de escritas, que a capacidade para se afirmar já não depende do elogio mútuo, mas de se ter ou não uma voz própria e persistência. Este último factor é o que mais falta na blogosfera, onde um mês é um século e se chega a conclusões taxativas lendo cinco ou seis blogues de um dia para o outro.

Eu sou liberal no sentido antigo, prezo a chuva e o mau tempo, a fúria e a calma das discussões, e gosto de ouvir muitas vozes diferentes. Como já disse e repito, na blogosfera, a “mão invisível” está dentro da cacofonia e para exercer o seu efeito positivo é suposto ser mesmo “invisível”. A blogosfera portuguesa passou de ter uma mão “visível” para ter uma “invisível” e foi, em primeiro lugar, o número que provocou esse efeito. Mais gente, mais vozes, tudo mais árduo. Esta é a revolução.


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© José Pacheco Pereira
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