ABRUPTO

15.7.03


SOBRE A TORTURA

Miguel Pinheiro , a propósito das “Notas Camusianas” sobre a traição, enviou-me este texto:

"Elio Gaspari está a publicar vários volumes sobre a ditadura brasileira e,
no segundo, intitulado A Ditadura Escancarada, toca ao de leve nesse tema,
com um ponto de vista interessante (aliás, deixe-me dizer-lhe, a
despropósito, que ele escreve onze páginas (da 20 à 31) brilhantes sobre a
tortura e suas consequências na ditadura, na oposição e na sociedade).

Na pág. 267, Gaspari fala da morte do guerrilheiro Carlos Marighella: ele
foi assassinado pelos homens do regime com base em informações dadas,
debaixo de tortura, por frades dominicanos. Aliás, os religiosos foram
obrigados a estar fisicamente presentes durante a armadilha, servindo de
isco.

Escreve ele: “A presença dos padres na cena da cilada contra Ernesto
(um dos nomes de código de Marighella) adicionou ao episódio uma ideia, tão
falsa quanto perversa, de traição degradante da figura mítica dos
guerrilheiros. ‘Beijo de Judas’, comentou o jornal O Globo dias depois”.

Numa nota de pé de página, Gaspari explica por que é que acha essa ideia
“falsa” e “perversa”: “Os dominicanos teriam traído Marighella se o tivessem
atraído para a cilada por terem mudado de opinião a seu respeito, ou ainda
se, ante alguma promessa de recompensa, visassem algum proveito pessoal ou
político. Um acto praticado diante do medo do retorno a suplícios
sistemáticos só pode ser considerado uma traição se o uso da tortura como
forma de extracção de confissões é aceite como parte do acervo moral e ético
da pessoa que declara traidor o preso submisso”.

Será que mesmo quem fala sob tortura pode, mantendo a sua integridade moral,
não trair – mesmo tendo traído? Pode haver uma traição efectiva (com
consequências como, neste caso, a morte do “traído”) sem haver uma traição
moral? E será que isso serve de consolo ao “traidor”?

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© José Pacheco Pereira
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