ABRUPTO

28.7.03


LUGARES DA DECADÊNCIA: ALEXANDRIA TROAS (TURQUIA)

Entre Assos e Tróia, fica Alexandria Troas, um desses sítios que nunca se esquecem. Alexandria Troas não existe, existiu.
Alexandria Troas, uma das “Alexandrias”, foi um importante porto de mar, e vem citada na Bíblia cinco vezes. As suas ruínas estão perdidas no meio de um campo, tendo sido apenas muito parcialmente escavadas. Esta parte da Anatólia não tem turistas, que ficam das estâncias à volta de Izmir para baixo, até Antalya. As ruínas estão longe de tudo, menos de umas aldeias de pescadores junto ao mar, bastante mais abaixo.

Paulo esteve aqui, junto com outros apóstolos, e fez milagres. Num deles, numa ironia pouco vulgar nos Actos dos Apóstolos, ressuscitou um rapaz que se chamava “com sorte” (Eutychos) e que caiu de uma casa abaixo. A Bíblia explica porque é que ele caiu:

"7 (…) Paulo, que havia de partir no dia seguinte, falava com eles; e prolongou a prática até à meia-noite.
(…)
9 E, estando um certo jovem, por nome Éutico, assentado numa janela, caiu do terceiro andar, tomado de um sono profundo que lhe sobreveio durante o extenso discurso de Paulo; e foi levantado morto. "

(Actos dos Apóstolos, 20).

Em Alexandria Troas, Paulo teve a visão que o levou da Ásia para a Europa, quando lhe apareceu “um homem da Macedónia” que lhe pediu:

"9 (…) Passa à Macedónia, e ajuda-nos.

10 E, logo depois desta visão, procuramos partir para a Macedónia, concluindo que o Senhor nos chamava para lhes anunciarmos o evangelho."

(Actos dos Apóstolos, 16).

Hoje só se percebe que existiu Alexandria Troas por um arco e meia dúzia de paredes. Quando a visitei só se chegava lá por um caminho de terra batida fora da estrada secundária que bordeja o Mediterrâneo. Como aconteceu a muitos portos antigos, Alexandria de Troas está hoje bem dentro de terra, com o mar ao longe. O que impressiona é ver este arco erguer-se no meio de uma vastidão de erva alta e seca, de urze, das mil e uma flores, arbustos, e árvores que cobrem os campos da “Grécia”, com o cheiro intenso, irreproduzível dos lugares mediterrânicos. Há abelhas e o ruído das abelhas, mais o vento do mar e o calor que faz crepitar o campo. Está lá tudo, parece um estereotipo de um poema de Teócrito.

O trabalho do tempo é feito ali de acumulações visíveis. O porto foi-se afastando do mar, perdendo as suas funções e abandonado. A terra movida pelas chuvas, foi sepultando colunas, casas, muros e deixando apenas ver a parte de cima das construções. Com a terra vieram as plantas, e com a morte das plantas, mais húmus, mais terra. O chão em que passamos hoje é o tecto dos alexandrinos. Sentei-me num dos muros, talvez o lintel de uma casa, e não pude escapar à sensação do “espírito de lugar”, do heimatgeist. . O que está debaixo dos meus pés? Estátuas, moedas, cacos, mortos? É natural que tenha havido pilhagens durante todos estes séculos, mas nem uma multidão gigantesca pode ter pilhado tudo, nestas terras onde a Jónia está sepultada.

Como seria Alexandria Troas à noite? Se houver fantasmas é aqui que estão. O “homem da Macedónia”, que chamou Paulo à Europa, ainda estará lá? Não sei. Não paguei para ver.


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© José Pacheco Pereira
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