ABRUPTO

23.7.03


TRATADO DOS TELEMÓVEIS – a “biologização dos devices” e notas dispersas (Actualizado)

O efeito dos telemóveis, que tenderão a perder este nome com o cada vez maior afastamento em relação quer aos telefones, quer aos nossos conceitos de mobilidade, será cada vez mais poderoso quanto o device se incrustar no nosso corpo. Passará da nossa mão, onde existe ainda como objecto autónomo, para a nossa roupa e daí para a nossa pele. Colar-se-á ao corpo, como a televisão se colará às paredes da nossa casa ou aos nossos olhos.

Esta evolução, a que tenho chamado a “biologização dos devices”, potenciará um novo mundo de relações humanas e sociais. O provável é que, quanto mais os aparelhos se aproximarem das fontes dos nossos sentidos, mais se moldarão à sua hierarquia e às suas fragilidades. Ficaremos cada vez mais presos à visão, o nosso mais enganador sentido, e à janela sobre o mundo que ele nos dá. Cada vez mais quem controlar o que vemos, controla o que somos.

Haverá um esplendor de imagens pobres – jogos, pornografia, superfícies – no lugar da vida vivida, com o crescimento de uma virtualidade que funciona como ersatz dos prazeres reais caros, e o pensamento recuará empurrado pelo automatismo dos gestos programados (permitidos). O tempo e o espaço mudarão significativamente a uma maior velocidade do que aquela em que já estão a mudar e que já é muita.

As imagens sem símbolos serão o “ópio do povo”. Não excluo que, para cada vez mais pessoas, a felicidade aumente porque a felicidade é a impressão de estar feliz. À medida que a diferença entre a virtualidade e a realidade seja cada vez menor, e dependa de literacias hard e de posses (posse) no mundo hard, os pobres terão eficazes técnicas de felicidade virtual à sua disposição.

Este texto é experimental, explora apenas alguns caminhos, pela via do exagero como método.

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Uma nota: um pouco por todo o lado nos textos dos blogues o acto de ir para férias está directamente associado ao abandono no não-férias dos mecanismos de comunicação - televisão, telefones, jornais.
Interessante esta percepção de um afastamento do mundo pela recusa dos seus canais de comunicação como sendo "férias". Como se o trabalho fosse hoje apenas receber, estar imerso em comunicações, informações.

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A Ana escreve :

Não concordo que o telemóvel ponha em causa o direito de ignorar um telefonema. Esse é precisamente um dos direitos que apenas têm as pessoas com telefone. O gozo bestial/ às vezes o sofrimento de o ignorar.
Por isso, sugiro a eliminação deste direito no projecto de Tratado dos Telemóveis. Ou então a sua inclusão num artigo autónomo com a epígrafe Boa Utilização do Telemóvel - Liberdades.
Podíamos fazer uma Convenção Preparatória do Tratado dos Telemóveis
.”

JPT escreve:

"há três meses que desliguei de vez o telemóvel, perdi direito a numero até. Todos me olham algo estranhos como se alguma coisa meio-grave me tivesse acontecido. Ou entao reforçando a ideia (talvez ja algo formada) de que tenho a mania que sou um bocado diferente, "a modos que quer parecer intelectual" ou quejando."


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© José Pacheco Pereira
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