ABRUPTO

28.7.03


MARGEM SUL

Dia na Margem Sul, assim mesmo, com maiúsculas. Porque não é a margem sul do Tejo, mas a Margem Sul da história social e política portuguesa, uma combinação sem paralelo do único projecto industrial português do século XX com dimensão europeia, de uma cultura operária que não existe em mais lado nenhum, de uma população que forjou a sua identidade contra o salazarismo tendo sido primeiro anarquista e sindicalista e depois comunista.

No meio de uma vista de Lisboa de tirar a respiração, estão os restos de tudo isto em 300 hectares de terreno, uma vastidão enorme. Está um cemitério de fábricas, linhas-férreas, oleodutos, cais, barcaças, guindastes, tubagens, depósitos, escórias, cinzas, sucata, está um mausoléu (de Alfredo da Silva) que podia estar na RDA ou na Alemanha nazi, está a casa humilde do patrão mesmo no meio das fábricas, estão os restos dos bairros operários, está um quartel da GNR. E depois há os velhos, os homens e, em particular, as mulheres, duros, face cerrada, com muita vida difícil atrás, trabalhadores de profissões quase desaparecidas: corticeiros, caldeireiros, operárias têxteis, ensacadores, serralheiros.

Para perceber o seu talhe, experimentem pensar no que é passar horas e horas numa grande sala a encher sacos de adubo, quando muito com uma máscara rudimentar. Adubo no ar, adubo nas mãos, adubo na boca, adubo no corpo. Ou viver numa terra que tinha uma Rua do Ácido Sulfúrico e onde se respirava uma emulsão que picava nos olhos. Onde se “via” o ar.

Muitos destes homens e mulheres tiveram e têm ideias terríveis e, se alguma vez chegassem ao poder, era daqui que viria a “muralha de aço” e essa “muralha” triturava-nos sem hesitação. Muitos deles encarnavam o pior daquilo que Simone Weil chamava a “arrogância operária”. Mas hoje, perdida a história com H grande, atirados para um anacronismo que lhes deve ser cruel, porque é a derrocada da esperança da sua vida toda, sobra a história que eles próprios fizeram, e não a que desejaram fazer. E essa história é a do seu sofrimento, da sua coragem e tenacidade em dias em que o exercício destas qualidades se pagava muito caro.


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© José Pacheco Pereira
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