ABRUPTO

29.7.03


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 18

A Ana escreve que “procuramos os objectos em extinção à procura do tempo perdido..“ Seguem-se mais alguns resultados dessa “procura”, enviados pelos leitores do Abrupto:

Uma imagem portuense, o Preto da Casa Africana, lembrado pelo Artur Carvalho:

Lembra-se de descer a Rua Passos Manuel e quase lá no fundo erguer a cabeça para um piscar de olhos ao Preto da Casa Africana? Lembra-se dele, pintado lá no alto das traseiras do prédio onde está instalada a loja? Pois saiba que a próxima vez que lá passar dará pela falta dele. Pintaram a casa e pintaram o Preto.E apagaram assim uma imagem que já fazia parte da história da Baixa. Algum esteta esclarecido deve ter achado, provavelmente com razão, que o edifício precisava de trincha e....zás! foi tudo a eito, Preto incluído.
É mais um sinal da suburbanidade que assalta a Baixa do Porto, vai tudo na varridela da ditadura ZARA e afins. Apaga-se a memória, e uma certa cidade não há-de demorar a torna-se num "objecto" de saudade. Em desuso já ela está há muito
.”

Outro portuense, o Paulo Pereira, lembra “O fiscal dos "troleis" que picava as senhas(aquilo fazia um barulho engraçado), e ia eu, no 9 ou 29 para o marquês e para o bolhão.

Da cidade para o campo, a Isabel do Monologo lembra “sem ser um "objecto", está em extinção por ter perdido a função social que desempenhava: o burro doméstico. Já não vai pertencer à "paisagem rural" do mundo meus filhos. Tenho pena.”

O Miguel Leal envia uma memória dos “testemunhos recolhidos das vozes e dos rostos de Arlindo , Maria e Manuela Rosa , habitantes da Cabanas de Torres -Alenquer.

A planta do milho é um objecto em extinção do ponto de vista do seu aproveitamento integral .Em tempos de penúria no vale da Serra de Montejunto, o fim do ciclo do milho denominava-se o TEMPO DA EIRA .Longe de se resumir à desfolhada ou descamisamento , esta actividade desenrolava-se em registos variados àparte a dimensão do trabalho e subsistência .Nele participavam todos os elementos da comunidade , com funções diferenciadas de acordo com género e escalão etário .
A maçaroca do milho é envolvida por umas folhas que se chamam capelos .Depois da secagem nas eiras , onde eram dispostas em círculos concentricos ou espiralados , as maçarocas eram "descamisadas", nome localmente atribuído ao processo de separar os capelos da maçaroca . Estes tinham várias camadas diferentemente aproveitadas conforme a sua textura . A camada externa , grosseira , servia como ração para os animais.A camada intermédia , mais fina , destinava-se depois de "escarapelada" , a encher colchões de pano onde as pessoas dormiam . Estes colchões tinham uma abertura central unida por três fitas , que era aberta todas as manhãs para compôr e alisar a camada de capelos revoltos por acção dos corpos na noite de descanso. A camada interior , frágil , aproveitava àqueles cujas posses eram insuficientes para o tabaco , servindo como mortalhas depois de desfiadas. O conteúdo da mortalha era resultante do aproveitamento da "barba do milho" que sai do topo das maçarocas maduras.Este expediente dos viciados era imitado como actividade lúdica pelas crianças que colaboravam no "descamisamento ".À barba do milho eram também atribuídas propriedades curativas , pelo que servia para fazer chá "para a bexiga".O milho era então malhado pelos homens no sentido de o separar da camada a que estavam unidos chamada o carolo . A malhagem não era suficiente e as mulheres jovens "escarolavam" , isto é , retiravam manualmente o milho que restava nos carolos . Num registo iniciático e conforme a cor do milho que lhes competia escarolar, assim teriam de beliscar ou beijar um rapaz à escolha do grupo . Ficava então o carolo que era igualmente aproveitado de duas maneiras : ou como combustível para aquecer os fogões ou , numa alquimia fumegante , juntamente com água e vinagre , transformado em pasta de sapateiro , fundamental para a aderência da sola ao cabedal.O pé do milho não era desaproveitado e juntava-se às camadas exteriores dos capelos como feixes para os animais.Aos jovens casadoiros , sedentos de aventura e afirmação cabia a guarda da eira durante a noite. Construiam palhotas com vime e aí permaneciam o tempo que necessário fosse.
São memórias de um tempo em que o oposto do desperdício era sinónimo de engenho , espírito inventivo e convívio solidário
.”

Francisco Delgado lembra a "licença de porte de isqueiro”, de que envia uma reprodução (será colocada no blogue que em Setembro se fará só para os objectos) chamando a atenção para “as regras de utilização, autuação e, sobretudo, delação “. Acrescento eu: quando queria explicar a um estrangeiro como era viver no Portugal de Salazar, a licença de isqueiro era o meu exemplo de espantar.

O nosso médicopara comemorar a recente façanha do Bloco de Esquerda que conseguiu institucionalizar a magia e o esoterismo (tão na moda!)” envia “uma lista de pequenos objectos médicos já extintos ou em vias de extinção”:

"1) três tipos de ventosas de vidro (extintas);
2) uma caixa de alumínio porta agulhas (extinta);
3) uma seringa de vidro (extinta);
4) um termómetro de mercúrio (em vias de extinção) e o respectivo utensílio para repor abaixo de 37º (extinto);
5) uma "garrafa" de soro em vidro de soro fisiológico (substituído por plástico);
6) uma ampola de clorofórmio e o seu invólucro em papelão (em desuso);
7) frascos de vidro para transporte de urina e sangue com rolhas de cortiça (substituído por plástico e tubos de ensaio especiais);
8) caixa de alumínio com uma ligadura engessada (invólucro extinto)”


(Manda também uma foto que acompanhará estes objectos no blogue que em Setembro se fará só para esta série.)


No Blogal há também uma lista suplementar de objectos em extinção.

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© José Pacheco Pereira
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