ABRUPTO

31.10.03


AO RUM

"Fifteen men on a dead man’s chest
Yo ho ho and a bottle of rum
Drink and the devil be done for the rest
Yo ho ho and a bottle of rum."


(Robert Lewis Stevenson)

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CAMINHO

pelo ar, os mais de dez mil quilómetros do regresso.
Mr. Scott, beam me up”.

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VULCÕES: PITON DE LA FOURNAISE 2

Hoje já ninguém pode subir ao vulcão. Toda a área foi interdita. Resta-me este sítio. Mas como é que se pode “seguir” um vulcão pela Internet?

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30.10.03


VULCÕES: PITON DE LA FOURNAISE

(Perdido nos arquivos está a memoria de outro vulcão, La Solfatara)

Pouco a pouco, deixa-se a pequena França creoula dos trópicos, com o calor dos trópicos e o mar absoluto das ilhas, e vai-se subindo, primeiro aos mil, e depois aos dois mil metros. A mil metros, entra-se numa fantasmática Suiça, pastagens alpinas, árvores alpinas e vacas alpinas. Começa a ficar frio, mas frio a sério, e uma bruma permanente corta quase toda a visibilidade. A paisagem esplendorosa das ilhas vulcânicas começa a impor-se e já não são os Alpes a referência que se lembra diante destes desfiladeiros de basalto, cobertos de verde e verde e verde.

De repente, numa curva, um vale como nunca vira nenhum, entalado entre encostas quase a pique. Resultado do abatimento de uma câmara de magma e depois moldado pelas chuvas violentas dos ciclones, La Rivière des Remparts é hoje desabitado, tal o susto, nos anos sessenta, por que passou uma pequena comunidade quando uma parte de uma destas encostas lhe ia caindo em cima. Uma barragem natural foi o que resultou desse desabamento. Também aqui, os mais estreitos vales alpinos, de origem glaciar, parecem largas avenidas. O relevo, mesmo quando, subindo, parece a pique, nos Alpes ou nos fiordes noruegueses, tem pouco a ver com as paredes a quase noventa graus da Rivière des Remparts, rasgadas apenas, no meio do verde, pelo sulco das quedas de água.

Subindo mais, o verde começa a desaparecer, entramos no império dos líquens e da urze, do cinzento e do amarelo brilhante das flores. A natureza das pedras não engana ninguém - aproximamo-nos de um vulcão e a terra que pisamos é cada vez mais nova.


PLANÍCIES, PLANALTOS, AREIAS, CINZAS, LAVAS, CONES E CRATERAS

(em breve)


(Plaine des Sables, olhando para ocidente)


(Formica Leo, um cone "stromboliano", hoje)


ERUPÇÕES

A última erupção do Piton de la Fournaise foi em Agosto e terminou em 30 de Setembro. A próxima pode ser hoje ou amanhã. Ontem, todas as pessoas que se encontravam nesta área, de onde estou a pensar no que agora escrevo, foram retiradas, algumas de helicóptero, devido ao acumular rápido de sinais percursores de nova erupção. A terra treme e observam-se alterações no volume da cratera Dolomieu.


(Enclos Fouqué e Formica Leo, hoje)

Hoje, olho a grande superfície de lava negra que enche o Enclos Fouqué , à minha frente estão as crateras Bory e Dolomieu, a "cratère brûlant". A lei de Murphy vai funcionar de novo e, depois de tanto esforço para ver a “fornalha” activa, vou falhar por um dia ou dois. Trago comigo uma pequena pedra, porosa e leve, avermelhada pela oxidação, atirada pelo vulcão, há dias ou há mil anos, volto as costas e desço.


(Crateras Bory e Dolomieu, hoje)


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29.10.03


ABRUPTO CREOULO

Agradecimento a José Bento, pelas indicações que me enviou e por me ter ensinado

"Oté, coment ilé?"

e que a resposta deve ser "il lelá".


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IMPÉRIOS COLONIAIS

Como era normal, acabaram os impérios coloniais, o português com a convulsão que se sabe. Os territórios do império foram, desde a década de sessenta, incluídos pelas Nações Unidas na Comissão de Descolonização, e os casos especiais, como Macau, foram, a prazo, resolvido com a retoma de soberania pela China.
Mas há impérios coloniais e impérios coloniais. Hoje vi um mapa, numa sala operacional da Marinha Francesa, as áreas debaixo da sua jurisdição no Oceano Índico, e nelas cabiam três Mediterrâneos. Ilha a ilha, arquipélago a arquipélago, rocha habitada ou desabitada, de Mayotte à Mauricia e Reunião, de Nouvelle Amsterdam a Kerguelen, uma imensa quantidade de mar austral é francesa , incluindo o centro do canal de Moçambique e uma enorme fatia de mar até à Antártida. Essas ilhas, na sua zona económica exclusiva, têm alguns dos melhores locais de pesca desta região. Como é que nenhum pais limítrofe, como Madagáscar, por exemplo, reinvindicou a soberania sobre essas ilhas? De facto, há histórias coloniais e histórias coloniais.

Muitas destas ilhas têm ou tiveram nomes portugueses.

(Sem todos os acentos)

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PRÓXIMAS NOTAS

em breve. Escritas do arquipélago das Mascarenhas.


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SNIPETS

Dito por um amigo maltês, no outro lado do mundo: "Sabes, no meu país somos quase noventa por cento de católicos, mas em maltês Deus diz-se Alá". Não sabia.


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28.10.03


DE LONGE,

a uma luz diferente, escrevo.

Vi o Kilimanjaro, sem neve. Amanhã (talvez sem acentos) encontrarei neve no mais improvável lugar e voltarei aqui.

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27.10.03


EARLY MORNING BLOGS 68

Acho que, pela primeira vez, um "early morning" se sucede a outro. Vicissitudes do tempo.

Se tudo correr bem e os satélites cumprirem os seus deveres, o Abrupto desta semana estará muito longe, no meio de nada, perto, muito perto, de um vulcão a sério, La Fournaise. O autor leu, há muitos anos, as palavras de Kant sobre o "belo" e o "terrível", e sempre gostou de vulcões, pelo que haverá chamas, lavas, fumos tóxicos, cinzas e outros ejecta. Uma paz de espírito, nada que se compare ao estado da pátria.

Bom dia.

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26.10.03


EARLY MORNING BLOGS 67- II



Touch Me In The Morning

(Gravada por Diana Ross, cortesia da Isabel S.)

RON MILLER / MICHAEL MASSER

"Touch me in the morning then just walk away
We don't have tomorrow but we had yesterday
Hey wasn't it me who said that nothin' good's gonna last forever And wasn't it me who said let's just be glad for the time together Must've been hard to tell me That you've given all you had to give I can understand your feelin' that way Ev'rybody's got their life to live

Well I can say goodbye in the cold morning light
But I can't watch love die in the warmth of the night
If I've got to be strong don't you know I need to have tonight When you're gone till you go I need to lie here and Think about the last time you'll touch me in the morning Then just close the door leave me as you found me Empty like before

Hey wasn't it yesterday we used to laugh at the wind behind us Didn't we run away and hope that time wouldn't try to find us Didn't we take each other to a place where no one's ever been Yeah I realy need you near me tonight 'Cause you'll never take me there again Let me watch you go with the sun in my eyes

We've seen how love can grow now we'll see how it dies
If I've got to be strong don't you know I need to have tonight When you're gone till you go I need to hold you until the tie Your hands reach out and

Touch me in the morning then just walk away
We don't have tomorrow but we had yesterday
We're blue and gold and we could feel one another living
We walked with a dream to hold and we could take what the world was giving There's no tomorrow here there's only love and the time to chase it Yesterday's gone my love there's only now and it's time to face it."


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EARLY MORNING BLOGS 67

Excelente comentário sobre atitudes portuguesas, entre a indiferença quotidiana pelo que é importante e o encher o peito de ar contra a “campanha” estrangeira denegridora, no Complot.

Com a distância que o tempo trará, um dia se fará uma análise dos temas, da agenda da blogosfera.

Por exemplo: a resolução da ONU sobre o Iraque, que, seja qual for o ponto de vista, tem que ser considerada um importante documento político, não mereceu praticamente nenhum comentário, salvas as habituais excepções. Mais importante do que comentários dispersos, é saber se uma matéria foi ou não incorporada nas discussões, e, neste caso, não foi. Também não teve grande relevo na imprensa, e talvez pelas mesmas razões: a resolução dá à ocupação militar do Iraque pelos EUA e seus aliados (porque é este o nome da coisa) a cobertura das Nações Unidas, da “legalidade internacional”.

Pelo contrário, estou certo que irá haver enormes pressões para que se discuta a escolha do novo director do Diário de Notícias. Admira-me que ainda não tenha aparecido a habitual invectiva a “exigir” que eu comente o caso, sob pena de ser reduzido a um pequeno funcionário partidário, sem ética nem vergonha. Mas eu já comentei o “caso” há muitos anos: enquanto o Estado for dono de órgãos de comunicação social, de que tem a posse directa, como a “televisão pública” ou a RDP, ou que foram de novo “nacionalizados” via PT, por iniciativa do par Guterres - Pina Moura, sem protesto de ninguém, todos os governos fazem nomeações políticas para as suas direcções. Insisto, todos. E vão continuar a fazer enquanto esta situação se mantiver.

Por isso, e para que não haja indignações selectivas, só participo em campanhas contra a manipulação, pelos governos, da comunicação social, quando estas forem até à raíz do problema e pugnarem pelo fim da comunicação social do Estado. Enquanto for assim, até prefiro que as nomeações sejam transparentes e que se saiba quem manda.

O maior atentado contra a liberdade da imprensa cometido nos últimos dez anos foi a compra da Lusomundo pela PT, e passou sem qualquer protesto dos que agora batem com a mão no peito. O governo era socialista e a medida estatizante, pelo que ninguém quis saber das suas implicações.

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25.10.03


PARA UMA ANTOLOGIA DA CUNHA EM PORTUGAL: EÇA DE QUEIRÓS PARA OLIVEIRA MARTINS

Bristol, 29 de Julho de 1886

Meu Querido Oliveira Martins

O portador desta carta será, creio eu, o sobrinho de minha mulher, D. Luís de Castro, que vai fazer exames - exames que ele te explicará, porque eu nada compreendo das divertidas complicações da pedagogia nacional. Sei apenas que, quando um rapaz quer ser engenheiro - o Estado imediatamente lhe ensina Retórica e Direito Canónico: e quando o temperamento de outro moço o inclina para a Teologia - logo o Estado o torna proficientíssimo em Desenho Linear e Botânica. Quando eu estava no Porto, assisti com efeito ao pavoroso espectáculo dos estudos de Luís de Castro: ele quer ser, creio eu, engenheiro naval: e para isso andava introduzindo dentro do crânio, por meio de um martelo e de um compêndio, um tratado de direito civil, as "Éclogas" de Virgílio e a lista de todos os reis de França e de Inglaterra, com os seus nomes, os seus números, as suas alcunhas, as suas famílias, os seus bastardos e as suas fundações pias. E foi então que eu compreendi a filosofia e a secreta moral do empenho. O empenho, tão caluniado pelos austeros, é por fim a salvação do País

O empenho é o correctivo do bom senso público aplicado ao disparate oficial. Sempre que um regulamento, saído de um antro burocrático, impôe ao público uma prática tola - o público coliga-se por meio do empenho, para lhe anular os efeitos funestos. O Estado, imbecil, exige que meu filho ou sobrinho, que quer ser engenheiro, saiba de cor a Lógica do João Dória e a Retórica do Cardoso?... Pois bem, eu o lograrei, na sua imbecilidade! E vou direito ao examinador e, por meio do empenho, consigo que o rapaz venha a ser engenheiro, sem nada saber dos impossíveis físicos e metafísicos e da Teoria do Silogismo. Tal é o grande, nobre papel do empenho na sociedade portuguesa: ele é a conjuração do bom senso positivo contra o idealismo obsoleto e tolo das instituições.

Este aranzel tende a acalmar a tua consciência de filósofo e de patriota - quando eu agora te pedir, com instância que te empenhes para que D. Luís de Castro seja aprovado em todas essas matérias que o Estado lhe fez decorar, que ele decorou com paciência e submissão, mas que, no momento preciso, lhe podem esquecer - como todas as coisas que a gente sabe só de cor, e só em obediência ao Estado!

Como esta carta é só de empenho, não te falo em outros assuntos - a não ser em dois igualmente interessantíssimos para Portugal e para mim: quando há probabilidades de que tu, ENFIM, nos comeces a governar? E quando aparecem os sonetos de Santo Antero?
Abraça o Santo, e tu, recebe abraço igualmente afectuoso, do teu do C.

Queirós


(Retirada de Cartas de Autores Portugueses, Edição dos CTT, 1987; cortesia de Américo Oliveira )

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NUNCA TINHA VISTO

um bando de pardais proteger-se da chuva debaixo de um pequeno arbusto. Vantagem de quem anda à chuva. Lá estão eles, pousados entre os ramos, debaixo das folhas, com uma completa incapacidade para estarem quietos. Se eu fosse romano, interpretaria os augúrios. Se eu fosse Stephen King, sabia que augúrios com pardais não são auspiciosos. Como não sou nenhuma dessas coisas, estou solidário com os pássaros, mas menos irrequieto.



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PESSOA, AUTOR DE BLOGUES

Que blogue magnífico dariam frases fragmentárias como esta horaciana:

UM EPICURISMO feito de abdicações...
Toda a nossa arte deve ser a de reduzir ao mínimo o elemento doloroso dos prazeres - a fúria que queiramos pôr neles, o desejo de que durem para além do que podem durar, a saudade inútil do que foram...
Uma abdicação lúcida e tranquila, um culto pensadamente ingénuo de si mesmo e dos próprios vícios, se eles se prestam a esse culto.


Ou este exercício à volta da frase de Wilde sobre como “most people are other people”:

O ARISTOCRATA é o que não obedece; por isso, por sua natureza de não obedecer, degenera em não obedecer a convicções que tem, em não obedecer a si próprio. Daí o facto das aristocracias acumularem em geral a teoria moral e a corrupção prática ambas em alto grau e consciente e sinceramente.
O aristocrata é o indivíduo que sente a necessidade de agir diferentemente dos outros. Ao passo que o burguês deseja agir conforme a regra geral, o aristocrata pretende o contrário. Ele é o que age por si. Ele e ele, não os outros, como dizia o Oscar Wilde da maioria da gente. (…). O aristocrata é a forca desintegrante, do progresso, anarquista. 0 povo é que é a força conservadora. Na classe media, basilarmente povo, adoptadamente aristocrática, dá-se o equilíbrio de tendências que mostra o estado social, a norma vital da sociedade.
Aristocratizacão total = anarquizacão. O individualismo é limitado. Há gente inindividualizável.


Ou, por último:

UMA ÁRVORE NÃO VAI a comícios. Urna pedra não tem na ponta da língua (que aliás não possui) tudo o que afinal Karl Marx nunca disse ou quis dizer.

Tudo isto em mais uma série de textos saídos da arca infinita: Fernando Pessoa, (Edição de Richard Zenith), Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, Lisboa, Assírio e Alvim, 2003.


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IMAGEM

de ontem, é um azulejo de Iznik, da segunda metade do século XVI. Está na Mesquita do Sultão Ahmet em Istambul. Brilha hoje, como há quinhentos anos.

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DE MANHÃ ESCUREÇO


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EARLY MORNING BLOGS 66

Um simples Vinicius, pela manhã:

"De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
Este é o meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
Meu tempo é quando."


(Cortesia da Rita M., fiel desde o princípio.)

*

Bom dia e deixem de protestar contra a chuva. A chuva sempre lavou a alma, e enche as terras de força. Lá no fundo, onde só a minúscula toupeira vê, não vendo, há festa entre as raízes.

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DUPLA “DUPLICIDADE”

O Retórica e Persuasão perguntava-me sobre as razões porque usei uma frase, que tinha publicado no Abrupto, num artigo do Público. Reproduzo aqui as perguntas e os meus comentários. A questão suscitada interessa-me porque a inter-comunicabilidade entre diferentes meios de comunicação (blogue, audiovisual, escrita) é para mim um problema, ao mesmo tempo teórico e prático. E não me esqueço de que, numa das minhas primeiras notas no Abrupto, eu remetia para uma resposta mais completa a uma determinada questão para um debate do Flashback, que já estava gravado, e isso provocou a fúria de alguns autores de blogues, como se fosse uma violação do ethos da blogosfera.

Aliás, sou frequentemente incitado (algumas vezes provocado) a escrever sobre determinados assuntos e, se não o faço, imediatamente criticado, com a demasiado rápida excitação de alguns blogues, principalmente os de jornalistas, que têm tanto speed que depois se cansam depressa. Muitas vezes, como já disse o que queria dizer e como o queria dizer noutro tempo (a memória não tem para mim quinze dias, nem quatro Expressos, nem dois meses de TSF), ou noutro sítio, não me vou repetir.

1) Tratou-se de mero lapso [o conteúdo de tal post na sua crónica no Publico ] ou de uma decisão consciente?

De uma decisão consciente. O texto fazia parte de um cluster, para usar um anglicismo em moda, de reflexões fragmentadas que coloquei no blogue. Depois evoluíram para um texto mais extenso que pensei publicar no Público (parecia-me um assunto com interesse geral, e a forma de um Dicionário permitia-me acrescentar e cortar algumas notas, e pode ser que no futuro algumas dessas notas venham para o Abrupto). O meu uso dos media a que tenho acesso é comunicante, utilizo o que me parece mais conveniente conforme a natureza dos media e do que pretendo dizer ou escrever.

2) E a confirmar-se a segunda hipótese:

a) dever-se-á reconfigurar a "novidade" como requisito da publicação jornalística?


Não penso que a “novidade” seja o elemento fundamental, embora tenha em conta que o artigo deve ser no essencial inédito para o grande público do Público. Como o jornal tem muitos mais leitores do que o blogue, e a parte que aproveitei do texto do blogue era apenas uma pequena parte (e, mesmo assim, com alterações), entendi usá-la. Já fiz isso uma ou duas vezes, do blogue para a televisão, da televisão para o blogue ou o jornal.

Por outro lado, deliberadamente, quando me agrada uma ideia ou uma frase, ou uma determinada formulação de um problema (um vírus), esforço-me por a usar de forma complementar nos diferentes media, ou seja, infectar as pessoas com ela. Isto inclui o uso da “retórica” e da “sedução”. Como sempre tenho afirmado, não sou indiferente aos resultados do que digo ou escrevo, em particular quando versa matérias a que atribuo um significado cívico. Nas outras matérias, já considerações de eficácia têm pouca importância, ou os mecanismos dessa eficácia são de tipo diferente, narrativo, estético, etc..

Há, no entanto, uma distinção que queria fazer, sabendo que as fronteiras que ela enuncia são precárias e difíceis de definir: eu estou no “mercado das opiniões”, não no das “agendas”. Não são mutuamente incompatíveis, e pode-se sempre chamar agenda a qualquer intencionalidade da fala, mas é uma distinção que tenho vindo a compreender cada vez melhor. Noutra altura voltarei a falar disto, porque é aqui que as questões da análise, da objectividade, da propaganda, se podem colocar.

b) poderá a prévia edição num blogue servir de "balão de ensaio" para a publicação no jornal?

Sim, como se vê pelas respostas anteriores.


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24.10.03


ASCENSÃO E QUEDA


Theodorus Metochites, que aqui está segurando uma igreja que oferece a Cristo, ele representado de lado, Cristo de frente sentado num trono (não se vê no fragmento), era um poderoso nobre bizantino. Era rico e culto, excepcionalmente culto, mesmo numa terra onde a nobreza cultivava o saber e tinha livros em casa, o que era muito raro no lado “latino” do mundo.

A igreja que restaurou, S. Salvador em Chora (depois, a mesquita de Kariye), foi a que o acolheu quando da sua desgraça. Depois de ser Grande Logoteta (uma espécie de cargo entre tesoureiro e ministro das finanças) do imperador Andronikos II, envolveu-se numa guerra civil familiar entre avô e neto, na qual ganhou o neto, futuro Andronikus III. Theodorus fugiu e exilou-se. Escapou da morte ou da cegueira, uma habitual punição bizantina, e, mais tarde, o imperador concedeu-lhe a possibilidade de regressar ao seu mosteiro. O poderoso Theodorus estava arruinado, velho e doente, e voltou como um monge vulgar, adoptando o nome de Theoleptus.

Todos os dias, quando entrava na igreja, olhava para cima e via-se ao lado de Cristo, brilhando na sua roupa dourada, parecendo-se estranhamente com um turco, dos que, cento e vinte anos depois, transformariam a sua igreja numa mesquita. A parecença ainda é maior pelo enorme skiadion, tão semelhante a um turbante, que leva os guias a puxarem para o exótico e dizerem que ele estava vestido “à turco”. Não, não estava, estava vestido à bizantino, só que naquela parte do mundo as coisas acabavam por ser mais parecidas do que imaginamos.

Theodorus, agora Theoleptus, viu-se, todos os dias dos seus últimos anos, assim no apogeu da sua glória, na juventude, com todo o poder, com o poder de estar ao lado direito de Cristo e lhe dar uma igreja. O seu passado presidia, à entrada da nave da igreja, ao seu presente. Antes estava em cima, agora em baixo. Ironia, ironia triste do tempo. É ao ver estas coisas que eu percebo como foi possível haver poetas, como Kavafis, que ouviram os ecos longínquos deste mundo antigo dos gregos que achavam que eram os últimos romanos.

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ABRUPTO (No Dicionário Houaiss)

Esta é a entrada de "abrupto" no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, essa gigantesca obra de saber e erudição, que finalmente está disponível em Portugal:

abrupto /ab-ru/ adj (1783, cf. DDP) 1. em declive rápido ou de inclinação quase vertical; abruptado, íngreme 2. fig. Que ocorre de maneira súbita, inopinada 3. fig. De natureza ou carácter áspero, rude ETM lat. Abruptus.a.um separado, quebrado, rasgado, interrompido, precipitado, part.pas. de abrumptere quebrar, separar, interromper, destruir; ver romp- SIN/VAR ab-rupto; ver tb. Sinonímia de inesperado e repentino e antinomia de suave ANT ver sinonímia de inesperado e antinomia de suave PAR abrupta (f.) / à bruta (loc.)

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IMAGENS

por identificar dos últimos dias, são, com excepção da última, otomanas e turcas.

ESCREVER A DIREITO é um mosaico do Grande Palácio que está no Museu do Mosaico em Istambul.

URDIDURA não é uma conspiração, mas um Kilim da Anatólia oriental.

FRONTEIRAS DA UNIÃO é uma miniatura otomana do século XVII e, embora pareça uma cena de guerra, é um jogo de pólo.

Fora do oriente, LES ESPACES LIMPIDES são uma vista de Diemen, de Rembrandt.



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MINUTIAE


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EARLY MORNING BLOGS / LES BLOGUES DU PETIT MATIN / LOS BLOGUES DEL TIEMPO QUE ALBOREABA 65

Hoje, duas manhãs muito diferentes. Uma em Paris, outra em Granada, uma de agora e outra de há setecentos ou oitocentos anos. A de Paris é de uma canção de Jacques Dutronc, com letra de Jacques Lanzmann (cortesia de Júlio Costa e de Jorge Lemos), e é um belo retrato de Paris às cinco da manhã:

Il est cinq heures, Paris s'éveille

Je suis l'dauphin d'la place Dauphine
Et la place Blanche a mauvaise mine
Les camions sont pleins de lait
Les balayeurs sont pleins d'balais

Il est cinq heures
Paris s'éveille
Paris s'éveille

Les travestis vont se raser
Les stripteaseuses sont rhabillées
Les traversins sont écrasés
Les amoureux sont fatigués

Il est cinq heures
Paris s'éveille
Paris s'éveille

Le café est dans les tasses
Les cafés nettoient leurs glaces
Et sur le boulevard Montparnasse
La gare n'est plus qu'une carcasse

Il est cinq heures
Paris s'éveille
Paris s'éveille

Les banlieusards sont dans les gares
A la Villette on tranche le lard
Paris by night, regagne les cars
Les boulangers font des bâtards

Il est cinq heures
Paris s'éveille
Paris s'éveille

La tour Eiffel a froid aux pieds
L'Arc de Triomphe est ranimé
Et l'Obélisque est bien dressé
Entre la nuit et la journée

Il est cinq heures
Paris s'éveille
Paris s'éveille

Les journaux sont imprimés
Les ouvriers sont déprimés
Les gens se lèvent, ils sont brimés
C'est l'heure où je vais me coucher


Il est cinq heures
Paris se lève

Il est cinq heures
Je n'ai pas sommeil”


*

Depois entramos na “mañana”, pela primeira vez e com que fragor, clareza e brilho, com este romance do Romanceiro Viejo, um dos meus preferidos:

La mañana de San Juan

"La mañana de San Juan - al tiempo que alboreaba,

gran fiesta hacen los moros - por la vega de Granada.

Revolviendo sus caballos - y jugando de las lanzas,

ricos pendones en ellas - broslados por sus amadas,

ricas marlotas vestidas - tejidas de oro y grana.

El moro que amores tiene - señales de ello mostraba,

y el que no tenía amores - allí no escarmuzaba.

Las damas moras los miran - de las torres de la Alhambra,

también se los mira el rey - de dentro de la Alcazaba.

Dando voces vino un moro - con la cara ensangrantada:

- Con tu licencia, el rey, - te daré una nueva mala:

el infante don Fernando - tiene a Antequera ganada;

muchos moros deja muertos, - yo soy quien mejor librara,

siete lanzadas yo traigo, - el cuerpo todo me pasan,

los que conmigo escaparon - en Archidona quedaban.

Con la tal nueva el rey - la cara se le demudaba;

manda juntar sus trompetas - que toquen todas el arma,

manda juntar a los suyos, - hace muy gran cabalgada,

y a las puertas de Alcalá, - que la Real se llamaba,

los crisitianos y los moros - una escaramuza traban.

Los cristianos eran muchos, - mas llevaban orden mala,

los moros, que son de guerra, - dádoles han mala carga,

de ellos matan, de ellos prenden, - de ellos toman en celada.

Con la victoria, los moros - van la vuelta de Granada;

a grandes voces decían: - -¡La victoria ya es cobrada!"


*

Bom dia!

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VER A NOITE

Há quanto tempo não via as Plêiades, ou a Via Láctea, ou sequer uma estrela decente brilhando num fundo escuro! Assim me preparo para o Cruzeiro do Sul.


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23.10.03


CENAS DA VIDA PARLAMENTAR EUROPEIA

Acabei de votar pelo menos 390 vezes (trezentas e noventa vezes), descontando algumas repetições de votações que tiveram que ser confirmadas por voto electrónico. Votei sobre tudo, desde o destino geral do mundo, até ao "espírito empresarial da Europa", dos caminhos de ferro aos stocks de bacalhau, da Bolívia até ao tráfico de órgãos, numa obsessão proclamatória absolutamente irrelevante, tanto mais que a maioria dos documentos votados são meras recomendações, a que ninguém liga nenhuma. Há uma verdadeira mania da emenda, um existir pela emenda.

Existe-se pela emenda e pela declaração de voto, e dá resultado. Quando chegarmos às próximas eleições europeias, vão ver como haverá uns jornalistas que interpretarão as estatísticas das emendas, das declarações de voto, das intervenções de um minuto, e outras actividades feitas só para as estatísticas , como indicadores do "trabalho". Entretanto, vota-se trezentas e noventa vezes hoje, cento e tal ontem, e cento e tal anteontem.

*

Numa reunião sobre o multilinguismo e o multiculturalismo, duas palavras quentes em vésperas do alargamento, discutiu-se a sinalética como alternativa a ter cartazes do tamanho de uma parede com inscrições em duas dezenas de línguas para tudo. Houve, no entanto, reservas quanto à sinalética para identificar os quartos de banho das senhoras e dos cavalheiros porque a distinção saias-calças parece ser entendida como confusa e sexista. Como acho que não me elegeram para discutir a sinalética dos quartos de banho, propus a representação estilizada, em nome dos bons costumes, dos órgãos sexuais masculinos e femininos para identificar as portas. Sem sucesso. Parece que também não é inequívoco.

*

Vai haver um enorme problema com o maltês que passa a ser uma das línguas oficiais da União. Na ilha não parece haver mais do que uma dezena de intérpretes qualificados para todas as instituições europeias, e não se vê muito bem como é que se vai conseguir fazer funcionar os mecanismos institucionais que implicam obrigatoriamente o uso da língua. O acervo comunitário (cerca de 80.000 páginas) tem que ser traduzido em maltês e, como os tribunais em Malta só trabalham em maltês, não se concebe como a legislação europeia, na sua magnífica complexidade burocrática e extensão, pode a tempo ser traduzida.

Jovens portugueses, aprendei o maltês, porque o emprego é assegurado!

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LES ESPACES LIMPIDES




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EARLY MORNING BLOGS 64

O ar da noite começa a estar frio, daquele frio que precede o frio verdadeiro, apenas um ou dois graus, e uma pequena nuvem passa a acompanhar-nos como se fossemos um pico de um monte. O ar frio respira-se com maior densidade, sabe a frio, o quente não sabe a nada.
E de manhã já há a "luz do Norte", esse cinzento ténue mas fundo, que entra nas casas, que parece uma continuação das casas, das ruas. Um cinzento que não é bruma, nem é húmido, mas apenas uma cor das coisas.

*

Respondendo ao apelo do senhor Presidente da República (e cortesia do António Afonso), a manhã de hoje sobe, "eleva-se", "au-dessus des étangs".


Élévation

"Au-dessus des étangs, au-dessus des vallées,
Des montagnes, des bois, des nuages, des mers,
Par delà le soleil, par delà les éthers,
Par delà les confins des sphères étoilées,

Mon esprit, tu te meus avec agilité,
Et, comme un bon nageur qui se pâme dans l'onde,
Tu sillonnes gaiement l'immensité profonde
Avec une indicible et mâle volupté.

Envole-toi bien loin de ces miasmes morbides;
Va te purifier dans l'air supérieur,
Et bois, comme une pure et divine liqueur,
Le feu clair qui remplit les espaces limpides.

Derrière les ennuis et les vastes chagrins
Qui chargent de leur poids l'existence brumeuse,
Heureux celui qui peut d'une aile vigoureuse
S'élancer vers les champs lumineux et sereins;

Celui dont les penseurs, comme les alouettes,
Vers les cieux le matin prennent un libre essor,
- Qui plane sur la vie, et comprend sans effort
Le langage des fleurs et des choses muettes!
"

Baudelaire: Les Fleurs du mal

*

Bom dia!

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22.10.03


É LEGÍTIMO DISCUTIR AS ESCUTAS?

Uma carta de Joaquim Torres Costa, sobre a minha intervenção na SIC, representa a crítica mais consistente que me foi feita sobre esta matéria. Os argumentos do seu autor representam dúvidas que eu tive e algumas que eu tenho. Com a sua autorização, publico-a aqui, acrescentando alguns comentários que vão em bold.

"Relativamente à matéria da divulgação das escutas telefónicas de membros da direcção do PS, tem você, como actor político e como cidadão, todo o direito chamar à colação as contradições patentes dos seus adversários estratégicos. Isso não pode ocultar o facto, tão manifestamente contrastante com o seu “ethos” público, de você ter aceite comentar como “matéria” politicamente legítima o “conteúdo” divulgado das escutas telefónicas sem, de acordo com a matriz do seu próprio discurso, ter sublinhado expressamente as seguintes circunstâncias :[comecei o que disse na SIC condenando as fugas de informação, e só com processo de intenção é que se pode considerar que isso é retórico]

1) Que a divulgação do conteúdo das escutas resultou necessariamente da perpetração de um crime [de acordo] cuja gravidade é análoga àquela que os seus fautores pretenderam atribuir aos comportamentos alheios. [como não sei quais são os "seus fautores", não posso estar certo da sua intencionalidade. Muito desta carta não poderia ser escrito se o seu autor não tivesse uma ideia pré-concebida sobre quem fez as fugas] Refiro-me não tanto ao crime (banal) da violação do (inefável) segredo de justiça, mas ao de utilização estratégica da qualidade de “fonte anónima” [não estamos neste caso perante uma "fonte anónima", mas perante um documento processual contendo escutas e a sua interpretação pelo Ministério Público; o conteúdo das escutas não foi negado pelos próprios, que apenas afirmaram terem sido citadas fora do contexto] ¾ por parte de quem tem poder de acesso ao teor da investigação e a informação legalmente reservada ¾ com o objectivo de influir publicamente sobre a posição de terceiros que são directa ou indirectamente interessados no mesmo processo .[esta frase só tem sentido se as fugas tiverem a origem que o autor da carta sugere, e não tenho elementos para o confirmar ou desmentir; o que mais clarificava todo este processo era a identificação dos autores das fugas]

2) Que a formatação da “fuga” foi intencionalmente dirigida à apetência primária dos media pelas informações "ready made". Com efeito, não estamos perante transcrições de escutas telefónicas oferecidas ao escrutínio público, mas antes de uma selecção intencional de passagens dessas transcrições, devidamente acompanhadas de comentários e interpretações de uma voz cuja autoridade não é justificada, mas proferidos ao abrigo de qualquer contraditório. O que as fontes forneceram aos jornalistas foi, portanto, um verdadeiro “press release” antecipadamente construído (como é norma) para obter articulação óptima entre os objectivos visados e o modo de percepção dos media necessários à sua divulgação. [ repito o que disse antes: esta frase só tem sentido se as fugas tiverem a origem e a forma que o autor da carta sugere; não tenho elementos para o confirmar ou desmentir, a não ser que as conheci através de um trabalho jornalístico, quer na SIC, quer na RTP, quer no Público, que me pareceu até bastante sóbrio e sólido para o costume]

3) Que, finalmente, algumas das passagens seleccionadas devem a sua eficácia simbólica à exploração da fractura ontológica (universalmente inscrita na ordem psicológica, social e mesmo moral) entre a linguagem pública e a linguagem privada (mesmo se aplicada a coisas públicas), sendo certo que nenhum titular de estatuto público (político, jurídico, pedagógico ou religioso) poderia resistir (salvo em regime da mais totalitária autocensura) ao escrutínio terrorista do seu discurso privado nem à respectiva divulgação ad hoc como instrumento dos conflitos sociais em que fosse participante. [inteiramente de acordo: sempre que me tenho pronunciado na matéria, tenho desvalorizado esse aspecto da linguagem; os plebeísmos utilizados parecem-me de todo irrelevantes e insusceptíveis de qualquer julgamento negativo; na análise das escutas tornadas públicas não é a linguagem, nem as opiniões, que me interessam, mas apenas os factos; só esses me parecem passíveis de interpretação legitima, se forem do domínio dos comportamentos políticos, como penso ser inequívoco que são. Nunca deveriam ter sido conhecidos deste modo, mas é um facto que são públicos.]

É certamente difícil imaginar, no mundo real, um comentarista da “área do partido X” recusando a oportunidade de explorar a rendibilidade simbólica de tais “revelações” sobre “membros do partido Y”, quaisquer que seja os partidos concretos que em cada momento preencham o lugar daquelas incógnitas. [não é verdade: tenho noutras ocasiões , no Flashback e em artigos, defendido, mesmo contra o meu partido, responsáveis do PS ; por exemplo, já mais de uma vez defendi Ferro Rodrigues, como quando da crise das "patetices", que também incidia sobre uma questão vocabular; o problema é que, para certas pessoas e apenas para certas pessoas, nunca há memória consistente: quando critico Paulo Portas ou o governo ou o PSD, sou "independente" e 'corajoso"; quando critico o PS estou ao "serviço", sou dúplice ou contraditório. Este tipo de "prova de vida", que aliás também é dúplice porque não exigida a outros, não é aceitável. Já tenho biografia suficiente nestas matérias para estar sempre a ser julgado ... quando critico o PS ou o "outro lado". ] Mas, no mundo ideal do “há muito que venho dizendo”, o autor e o cidadão José Pacheco Pereira jamais teriam consentido “comentar” como “informação” (como substância moral e epistemologicamente neutra...) uma representação da realidade tão fundamentalmente inquinada na sua origem, na sua forma e no seu processo por pressupostos cuja denúncia tem constituído exactamente a matriz do seu discurso público. Era nessas ¾ e só nessas condições ¾ que a invocação argumentativa que faz das suas próprias posições passadas e das dos seus adversários políticos em face de circunstâncias semelhantes adquiriria toda a sua eficácia intelectual e moral. Com todo o respeito, o que o José Pacheco Pereira agora diz no seu blog, ou mesmo o que venha dizer na sua selectiva coluna do Público, não apaga o que consentiu fazer perante uma gigantesca audiência televisiva em horário nobre: uma arrepiante demonstração de realpolitik da inteligência. [Não há qualquer regra deontológica que impeça ou limite o comentário deste tipo de informação, nem esta questão nunca fora posta antes, para casos prévios de divulgação de escutas em processos crime - e são vários os casos, alguns recentes, como o do deputado António Preto. Este, pelos vistos, não teve direito a nenhuma indignação, embora toda a gente comentasse a escuta do episódio da mala.

Nesta matéria, há distinções deontológicas que podem parecer subtis, mas que são fundamentais. São, aliás, as habituais nos grandes órgãos de comunicação social internacional, em que a ideia de que este tipo de documentos não é passível de discussão apareceria como muito bizarra.

As minhas regras são próximas (mas não inteiramente idênticas, porque não sou jornalista) das que vêm em qualquer manual de deontologia:

Nunca discutiria escutas que tivessem sido feitas por jornalistas, ou "oferecidas" a um órgão de comunicação social sem conhecimento da fonte nem da legalidade da sua obtenção. As escutas agora divulgadas são fruto de um crime (a violação do segredo de justiça) , mas têm fonte identificada e não são anónimas (o autor da fuga não é a fonte, mas sim o documento com as transcrições), são legais e não foram contestadas na sua veracidade, apenas no "contexto". (Aqui não aceito a posição socialista porque não é difícil contextualizá-las.)

Nunca discutiria escutas (nem qualquer outro tipo de documentos) que tivessem a ver com as acusações que vão ser julgadas em tribunal, e que antecipassem a condição de inocente ou culpado dos arguidos.

Nunca discutiria escutas (nem qualquer documento) que contivesse matéria sensível e íntima (de ordem sexual, por exemplo) e que pudesse ser resumido sem perda de teor informativo por frases como "X é acusado de trinta casos de...", evitando uma desnecessária violência pessoal sem prejudicar o eventual interesse público em se saber de que é que um político é acusado. Também nunca me pronunciaria sobre escutas que envolvessem, no âmbito desta matéria intíma, terceiros. Por isso, acho inaceitável a publicação na íntegra do pedido de levantamento da imunidade parlamentar de Paulo Pedroso, como o Independente fez. Se a SIC fizesse o mesmo, ou coisa parecida, recusar-me-ia a comentar.

Mas isto significa, por outro lado, que aceito como legítima a divulgação pela comunicação social de escutas como as que estamos a discutir e que versam matéria com significado político, independentemente do seu valor para o processo. No entanto, se a decisão de fazer as escutas e as transcrever por parte do MP fosse apenas a parte política do seu conteúdo, elas seriam para mim inadmissíveis e um claro abuso de poder. Quando tudo se conhecer, até pode ser esta a minha conclusão; até lá, não posso eliminar racionalmente a hipótese de que possa ter havido uma tentativa de "perturbação do processo" usando o poder político. Não estamos em terreno diferente das acusações ao ministro Martins da Cruz, só que com muito maior gravidade. Mas admito que é interpretativo, e portanto inseguro. ]


Ora para isso, como sabe melhor do que ninguém, mais vale, à mesma hora, sintonizar a TVI. " [Tem razão]

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RISCOS

O Aviz escreve:

"eu temo, sinceramente, um acordo de Bloco Central sobre a matéria [caso Casa Pia]. Todos os sinais estão por aí, dispersos. Questão de marketing patriótico."

Eu também temo, e espero que não. Mas já há demasiadas conversas privadas e circulação privilegiada de informação para meu gosto. Para os políticos é fundamental, nestes casos, respeitar em absoluto a separação de poderes.
Nesta matéria nunca se toca em privado, em confidência, em nenhuma circunstância. Quem o faz, queima-se.


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FRONTEIRAS DA UNIÃO


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POLÍTICA EXTERNA DA UNIÃO

Com a figura de um Ministro de Negócios Estrangeiros da UE, prevista na Constituição, pretende-se um upgrade da capacidade externa da União. O que se vai ter é um downgrade dessa política externa.

Eu conheço bem como se formulam as posições de política externa da UE, a julgar pelo que é essa componente no Parlamento Europeu. As posições "europeias" aqui definidas têm duas características em comum: uma, são uma colagem ecléctica de posições, nem carne, nem peixe, que pretende agradar a todos, desde a extrema-direita aos comunistas; outra, é que, quando tem mais alguma carne ou peixe, são as habituais posições anti-americanas politicamente correctas. Como os mecanismos de consenso e discórdia que aqui funcionam não são assim tão diferentes dos que unem os governos europeus, a impotência do novo MNE da UE não será muito diferente da do Sr. Solana. Recordam-se como ele foi saudado como o sr. PESC, o homem com o número de telefone que Kissinger pedia?

Um dos aspectos mais negativos da Constituição europeia é que está cheia destes falsos upgrades, a que não corresponde nem vontade política dos governos, nem legitimidade popular.

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PERGUNTAS QUE É PRECISO COMEÇAR A FAZER

Se estivesse em vigor a Constituição europeia, poderia o Primeiro Ministro português ter organizado e participado na Cimeira dos Açores durante a crise do Iraque?

Se estivesse em vigor a Constituição europeia, poderia Portugal ter decidido enviar tropas da GNR para o Iraque?

Não importa aqui saber se as pessoas estão ou não de acordo com estas iniciativas, mas sim saber se existe qualquer autonomia da nossa política externa numa crise deste tipo.

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EARLY MORNING BLOGS 63

De vez em quando, os portugueses descobrem que o seu país não está onde às vezes o futebol o coloca, mas abaixo do sítio onde está a sua economia. Passam da euforia à depressão e parece não haver maneira de sair deste círculo. A depressão desmobiliza, gera apatia e cansaço, revolta sem destino e construção. Mas eu prefiro sempre que as pessoas tenham um espelho cruel que lhes diga a verdade, em vez de uma imagem projectada do seu gigantesco Ego triunfante nas pequenas coisas. Que percebam que o seu país exige um enorme esforço para sair de um atraso endémico, que tem muito a ver com comportamentos, que tem tudo a ver com comportamentos individuais e colectivos, de cada um de nós e do Estado.

Quando, no tempo do engenheiro, toda a gente estava feliz, a bolsa subia, o dinheiro a crédito parecia correr dos bancos para os bolsos sem retorno, o país também se distraía e folgava. Só que a euforia é mais cara do que a depressão, e milhões e milhões desapareceram nesses anos para nunca mais voltarem.

Cada manhã, au petit matin, in the early morning hours, tudo pode recomeçar bem ou mal. Os poemas e canções matinais que temos publicado olham a manhã de muitas maneiras: como um começo lustral, como um resto maltratado da noite, como o desespero de mais um dia. Também assim é com a pátria.

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21.10.03


RECOMENDAÇÕES DE S. BERNARDO

«Ainda que conhecesses todos os mistérios, toda a vastidão da terra, toda a altura do céu e a profundidade do mar, se te ignorasses a ti mesmo, serias como aquele que constrói sem alicerces e prepara não um edifício, mas uma ruína. Tudo o que construíres a teu lado não será senão um monte de poeira que o vento dispersa. (...). O sábio será sábio em relação a si e será o primeiro a beber a água do seu poço.»

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URDIDURA



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ACTUALIZAÇÕES

nalgumas notas mais abaixo estão a ser introduzidas com frequência, dada a correspondência que está a chegar e a actualidade da questão.

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PROTEGER A IMAGEM DO PS

António Costa tem toda a razão quando afirma que

"a publicitação dessa audição, consciente que estava que a associação pública do nome do deputado Paulo Pedroso a um processo desta natureza teria consequências irreparáveis na sua imagem junto da opinião pública. Para além de afectar seriamente a imagem do Partido Socialista e do próprio Parlamento"

Mas aceitaria o PS que tal fosse feito, por exemplo por Guilherme Silva: que telefonasse ao procurador, pedindo-lhe em confidência que um deputado do PSD que estivesse acusado de peculato ou corrupção, e que igualmente afirmasse a sua inocência, fosse ouvido em segredo? Não é certamente o crime de que são acusados que faz a diferença, pois não? E aceitaria o PS que Guilherme Silva se justificasse dizendo que o fizera para "proteger o PSD"? Todos nós sabemos a resposta.

Sou, no entanto, bastante mais sensível à preocupação de Costa com o efeito "irreparável" de acusações, que se venham a provar falsas, contra Pedroso. Se a inocência actual de Paulo Pedroso não for atingida pelas acusações que lhe são feitas (como toda a gente de bem deve desejar), ele terá sido vítima de uma enorme injustiça que merece uma reparação inequívoca de todos.

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A CUNHA

que o PS queria fazer, está descrita por António Costa num artigo do Público de hoje ( e também aqui confio plenamente na sua palavra) :

"No passado dia 21 de Maio, cerca das 9h00, contactei telefonicamente o senhor conselheiro procurador-geral da República para a sua residência. Passara já uma semana desde que o deputado Paulo Pedroso requerera formalmente junto da Procuradoria-Geral da República a sua audição no âmbito do processo, sem que tivesse obtido resposta.
Por outro lado, preocupava-me evitar, na medida do possível, a publicitação dessa audição, consciente que estava que a associação pública do nome do deputado Paulo Pedroso a um processo desta natureza teria consequências irreparáveis na sua imagem junto da opinião pública. Para além de afectar seriamente a imagem do Partido Socialista e do próprio Parlamento.
"

Acrescente-se que, uma semana antes, do dia 21, nenhum português, a não ser as pessoas directamente envolvidas na condução do processo, era suposto saber do que se passava, pelo que estas iniciativas eram conduzidas em segredo. E isto é, dêem-se as voltas que se quiser, o pedido de um favor.

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DUPLICIDADE

Se há coisa que peço a mim próprio, e, se não fosse incréu, ao Senhor, é não cair na duplicidade na análise deste processo, todo ele impregnado de duplicidade. Tenho as minhas opiniões, gostos e antipatias, que é impossível não mostrar; posso cair em contradição, porque isso, às vezes, é inevitável, mas farei todo o possível para não ser dúplice.

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A ACUSAÇÃO A JOÃO PEDROSO

de ter ido para o Conselho Superior de Magistratura por causa do processo que envolvia o seu irmão é insustentável. É uma insinuação do mesmo tipo da que foi feita contra Nobre Guedes e a Ministra da Justiça, a propósito do processo Moderna. A verdade é que a primeira insinuação veio apenas de Marcelo Rebelo de Sousa e a segunda foi repetida à saciedade por muitos que agora se indignam, como se fosse a coisa mais natural do mundo, e ninguém pensou em processá-los.

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QUEM CONSTRUIU O "SISTEMA" DA REPÚBLICA DOS JUÍZES? (Actualizado)

Houve quem, nos últimos vinte anos, em Portugal, quisesse fazer uma "República dos Juízes" à italiana, respondendo às vantagens eleitorais do populismo justiceiro. Houve quem não tivesse coragem, com receio das consequências eleitorais negativas, devidas igualmente ao populismo justiceiro, de dizer "não" à excessiva concentração de poderes num Ministério Público que não responde efectivamente perante ninguém. A combinação destes dois factores construiu o "sistema" actual.

Foram políticos do PSD, PS e PCP que construíram este "sistema" por razões estritamente políticas, numa competição por agradar (ou pelo medo de desagradar) ao populismo, debaixo dos ventos italianos. Do meu partido, recordo-me da acção de dois ministros, Fernando Nogueira e Laborinho Lúcio, mas recordo-me também que, a cada momento, nas revisões constitucionais, na discussão dos principais diplomas sobre justiça, havia uma forte e agressiva pressão para uma "República dos Juízes" à portuguesa vinda do PS e do PCP. O PS e o PCP, em particular, comportavam-se como "partidos do Ministério Público". O último ministro que prosseguiu neste caminho foi António Costa.

Enquanto as vítimas eram do PSD, os justiceiros estavam no Independente (com aplauso total da esquerda política, que lhes dava continuidade no parlamento), e as fugas sistemáticas eram só de um lado e sem defesa, porque ninguém tinha coragem para a fazer; nunca houve problemas com "o sistema" e, a cada caso, o clamor era para novas medidas de reforço dos poderes judiciais. Por exemplo: quanto às escutas telefónicas.

É verdade que a intenção era usá-las para a criminalidade organizada, para o branqueamento de capitais, para o terrorismo, para a corrupção. Mas convém não esquecer que este processo é sobre pedofilia (sim, porque o processo de que é arguido Paulo Pedroso é de crimes pedófilos), que toda a gente bate (ou batia) com as mãos no peito considerando um "crime hediondo", e não me venham dizer que, se se perguntasse ao então ministro António Costa, se a pedofilia era excepção ao regime das escutas, ele responderia com um sonoro "nunca". Aliás, as escutas do processo Moderna, para não ir mais longe, ou do processo que envolve o deputado António Preto, também inclui escutas que foram divulgadas indevidamente. Estão esquecidos? Não ouvi protesto nenhum de Ferro Rodrigues, de António Costa , de Paulo Pedroso, etc., nem Manuel Alegre disse que a democracia estava em perigo.

O "sistema" é mau, permite abusos de poder, tem escasso controlo? Com certeza. Mas já era mau antes do caso Pedroso e havia quem o dissesse, curiosamente ninguém dos que agora clamam contra ele e o ajudaram a construir. Proença de Carvalho, Mário Soares (em defesa de Leonor Beleza), e alguns outros, disseram-no. Recordo-me de muitas discussões com José Magalhães (outro dos que construiram o "sistema"), no Flashback, sobre esta matéria, e eu próprio, quando membro da CP do PSD, me pronunciei em sede própria contra a imitação italiana e os seus riscos. Escrevi também sobre isso e portanto pouco me surpreende o que hoje acontece.

Dito isto, sou obviamente defensor de alterações profundas no "sistema", mas nunca, jamais,em tempo algum, antes do fim do processo Casa Pia, por razões decorrentes do modo como deve funcionar uma democracia e um estado de direito.

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Escreve o Adufe sobre a nota acima: "não são os pecadilhos passados e os telhados de vidro que agora poderão justificar uma espécie de auto-diminuição dos direitos dos visados". Inteiramente de acordo.

*

De uma mensagem enviada por Luis Rodrigues:

"Refere (...): "Dito isto, sou obviamente defensor de alterações profundas no "sistema", mas nunca, jamais, em tempo algum, antes do fim do processo Casa Pia, por razões do modo como deve funcionar uma democracia e um estado de direito". Mas já pensou nas implicações desta ideia? Esta opinião tem implícita duas enormes perversidades:

1ª- Implica o reconhecimento de que este sistema está, afinal, errado. Mas que, por razões de oportunidade de política lato sensu, e também de política judiciária, deveremos sacrificar esta "geração" de arguidos a este sistema reconhecidamente errado, dizendo-lhes: «Desculpem lá, sabemos que isto está errado, mas não é agora oportuno mudar todo o sistema; mal o vosso caso esteja resolvido, mudá-lo-emos, de modo que a próxima "geração" de arguidos seja já abrangida por um sistema reformado e melhor... Quanto a vocês, aguentem lá "isto" por agora...».

2ª- A segunda perversidade, é que a ideia de que não se deve mudar agora o sistema, porque não se deve "legislar a quente" esquece que se a ocasião é "quente" para estes arguidos, amanhã será igualmente quente (quem sabe mais ainda) para outros arguidos, e assim sucessivamente... Nunca se mudará, portanto...? Ou já poderá mudar-se a quente para a próxima....? "


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Paulo Cardoso coloca-me a seguinte questão :

"O problema (...) é, como diz Vital Moreira, "a publicação das conversas telefónicas de dirigentes do PS gravadas no âmbito do caso Paulo Pedroso não constitui somente uma flagrante violação do segredo de justiça, mas também do sigilo das comunicações pessoais. Definitivamente há direitos fundamentais em perigo entre nós. O que causa a maior inquietação é que estas conversas entre pessoas alheias ao processo e manifestamente irrelevantes para a descoberta da verdade no mesmo tenham podido ser gravadas e transcritas para o processo e, agora, tenham sido disponibilizadas "oportunamente" para a comunicação social (toda a gente suspeita como...). Tratando-se de dirigentes políticos, o caso torna-se especialmente grave. O procurador-geral da República não pode manter-se alheio ao escândalo, sob pena de ter de ser responsabilizado por ele"

Imagine que o MP, para investigar os casos de António Preto ou Cruz Silva, decide mandar escutar o telefone do Dr. Pacheco Pereira, só porque é um opinion maker que critica a instituição de uma Republica de Juizes e é militante no partido desses senhores investigados. O problema é, como dizia Brecht,

"ele nunca se preocupou, mesmo quando foram buscar o vizinho, mas um dia bateram-lhe à porta
"


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O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES

CONVERSAS ORTODOXAS

"O seu post como título "CONVERSAS ORTODOXAS" remeteu-me para a demanda do Reino de Preste João. Em vários escritos de historiadores diz-se que Portugal teria feito a procura de Preste João com a finalidade de fugir ao papado de Roma e retornar à originalidade da religião e "das verdades cristãs como foram pregadas na origem do Cristianismo"

(João Rosa)

O QUE É QUE CORREU MAL?

"Muito obrigado por se ter referido ao livro do Bernard Lewis, que fiquei interessadíssimo em ler. Por coincidência, hoje de manhã li uma página do excelente livro da Karen Armstrong, The Battle for God, onde se diz algo que me pareceu divergir um pouco do que percebi ser a tese do Lewis. Permita-me que transcreva os períodos relevantes da pág 40 (edição Harper Collins, 2000):

"The Ottoman state was arguably the most up-to-date in the world during the early sixteenth century.It was, for its time, superbly efficient, had developed a new-style bureaucracy, and encouraged a vibrant intellectual life. The Ottomans were open to other cultures. They were genuinely excited by Western navigational science, stirred by the discoveries of the explorers, and eager to adopt such Western military inventions as gunpowder and firearms. It was the job of the ulema to see how these innovations could be accomodated to the Muhammadan paradigm in Muslim law. The study of jurisprudence (fiqh) did not simply consist in poring over old texts, but also had a challenging dimension. And, at this date, there was no real incompatibility between Islam and the West. Europe was also imbued with the conservative spirit. The Renaissance humanists had tried to renew their culture by a return ad fontes, to the sources. We have seen that it was virtually impossible for ordinary mortals to break with religion entirely. Despite their new inventions, Europeans were still ruled by the conservative ethos until the eighteenth century. It was only when Western modernity replaced the backward-looking mythical way of life with a future-oriented rationalism that some Muslims would begin to find Europe alien."


(José Vaz de Mascarenhas)

LIVROS PROIBIDOS - MEIN KAMPF

"Lembro-me claramente de o ouvir responder à mesma questão há uns anos, aquando de um caso envolvendo skinheads. A propósito da proibição de livros, andei a investigar recentemente a proibição do Ulysses de Joyce nos EUA, onde foi ordenada a sua interdição e destruição por ordem judicial, vindo mais tarde a ser permitida a sua livre circulação. Durante essa investigação acabei por encontrar uma espécie de observatório de restrições à liberdade de expressão da American Library Association (ALA). Foi lá que também encontrei este texto, precisamente sobre a questão de as bibliotecas escolares deverem ou não ter o Mein Kampf nas suas estantes:

"Let us look for a moment at one book that does, in essence, preach genocide—Adolf Hitler’s Mein Kampf. Few, if any, educators would recommend this book to a student seeking to formulate an individual political perspective. But can a high school library adequately fulfill its mission in a school where a history course covering the Nazi experience is taught, if the fundamental document of the Nazi movement cannot be found for student reference? In such a situation, Mein Kampf—along with other more objective treatments of Hitler’s thought—should probably be in the high school library, funding and space permitting.

But, it may be objected, a book that is purchased and shelved for reference purposes, to help students write term papers and learn to analyze controversial materials, will not necessarily be used solely in this manner. What if a little "Hitler cult" emerges in the school and students begin to read Mein Kampf—or some more contemporary racist work—not as an historical or political document, but as a meaningful tract for our times?

The situation is troubling, but censorship offers no solution. If there is a problem with racism in a school, removing racist materials from the library will not solve it. Indeed, like other efforts to drive the problem underground, such removals may only exacerbate matters. A good school librarian will work with teachers and school officials continually to take the pulse of student interests. If a segment of the student body seems inordinately attracted to materials that run counter to the purposes of democratic education, then the faculty and staff must work to expose the weaknesses of these materials by discussing them with the students—in class if need be—and by directing students to positive alternatives. One special role played by the school library is to educate students about what libraries are. Students should be taught at an early age that the presence of a book in a library, including in the
school library, does not mean that the book is somehow "endorsed" by the librarian or the school. The library is a resource that caters to varied interests; it is a place to go to find out for oneself.
This lesson cannot be taught, however, if the school library is not such a place, if the student is in effect told: Come here to find out the things you want to know, but only if established authorities approve them in advance. The school library has an important role to play in educating young people to respect diversity by itself illustrating the breadth of diverse opinion and taste.
"

Censorship and Selection: Issues and Answers to Schools, Third Edition by Henry Reichman.

Pode encontrar mais informações aqui.

Queima de livros na Alemanha Nazi.

Queima de livros em pleno séc. XXI.

(Vítor Brinches e Leitura Partilhada(blog de partilha de leituras; neste momento lemos "Ulysses" de James Joyce)



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EARLY MORNING BLOGS / LES BLOGUES DU PETIT MATIN 62

Hoje o Abrupto está francófono e francófilo, mérito de Baudelaire (cortesia de João Costa), com o poema mais triste jamais publicado nesta série. É verdade que este também é o sentimento prevalecente na pátria: "une mer de brouillards" também cai sobre nós.

Le crépuscule du Matin

"C'était l'heure où l'essaim des rêves malfaisants
Tord sur leurs oreillers les bruns adolescents ;
Où, comme un œil sanglant qui palpite et qui bouge,
La lampe sur le jour fut une tache rouge ;
Où l'âme, sous le poids du corps revêche et lourd,
Imite les combats de la lampe et du jour.
Comme un visage en pleurs que les brises essuient,
L'air est plein du frisson des choses qui s'enfuient,
Et l'homme est las d'écrire et la femme d'aimer.

Les maisons çà et là commençaient à fumer.
Les femmes de plaisir, la paupière livide,
Bouche ouverte, dormaient de leur sommeil stupide;
Les pauvresses, traînant leurs seins maigres et froids,
Soufflaient sur leurs tisons et soufflaient sus leurs doigts.
C'était l'heure où parmi le froid et la lésine
S'aggravent les douleurs des femmes en gésine ;
Comme un sanglot coupé par un sang écumeux
Le chant du coq au loin déchirait l'air brumeux ;
Une mer de brouillards baignait les édifices,
Et les agonisants dans le fond des hospices
Poussaient leur dernier râle en hoquets inégaux.
Les débauchés rentraient, brisés par leurs travaux.

L'aurore grelottante en robe rose et verte
S'avançait lentement sur la Seine déserte,
Et le sombre Paris, en se frottant les yeux,
Empoignait ses outils, vieillard laborieux. "


Baudelaire


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EM BREVE,

muito em breve, volto. Com uma pequena cornucópia.

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19.10.03


ESCREVER A DIREITO


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EARLY MORNING BLOGS 61

Para não perder a manhã, dois poemas sobre a aurora, cortesia de Inês Mesquita.

Gloire de Dijon

"When she rises in the morning
I linger to watch her;
She spreads the bath-cloth underneath the window
And the sunbeams catch her
Glistening white on the shoulders,
While down her sides the mellow
Golden shadow glows as
She stoops to the sponge, and her swung breasts
Sway like full-blown yellow
Gloire de Dijon roses.

She drips herself with water, and her shoulders
Glisten as silver, they crumple up
Like wet and falling roses, and I listen
For the sluicing of their rain-dishevelled petals.
In the window full of sunlight
Concentrates her golden shadow
Fold on fold, until it glows as
Mellow as the glory roses."


D. H. Lawrence

*

"L’aurore s’allume;
L’ombre épaisse fuit;
Le rêve et la brume
Vont où va la nuit ;
Paupiéres et roses
S’ouvrent demi-closes ;
Du réveil des choses
On entend le bruit.

Tout chante et murmure,
Tout parle à la fois,
Fumée et verdure,
Les nids et les toits ;
Le vent parle aux chênes,
L’éau parle aux fontaines ;
Toutes les haleines
Deviennent des voix !

Tout reprend son âme,
L’enfant son hochet,
Le foyer sa flamme,
Le luth son archet ;
Folie ou démence,
Dans le monde immense,
Chacun recommence
Ce qu’il ébauchait.

Qu’on pense ou qu’on aime,
Sans cesse agité,
Vers un but suprême,
Tout vole emporté ;
L’esquif cherche un môle,
L’abeille un vieux saule,
La boussole un pôle,
Moi la verité ! "


Victor Hugo, Les Chants du crépuscule

*

Bom dia !



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IMAGEM

de ontem explica-se a si mesma, no próprio quadro,

que está no Stedelijk Museum, em Amesterdão.

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ISTAMBULIANA

Reúno aqui algum correio e notas de vários blogues, sobre Istambul e outras questões associadas. Obrigada aos meus leitores e aos meus amigos, companheiros, camaradas (a palavra não tem peçonha), pela oportunidade de aqui se poder falar em “rede”, fio daqui para ali, conversa acabada ou inacabada, memória puxa memória, para conservar no extremo Ocidente esse fragmento do Oriente, demasiado próximo. Não somos “turcophiles”, como Pierre Loti no seu “Stamboul”, mas há “filias” aqui.

E obrigada também aos que não cito, mas que em correio privado se referiram às várias formas de “divina sabedoria”.

Acrescentei, como prometido, para melhorar o texto pela visão daquilo de que se está a falar, algumas imagens lá mais para baixo. Em complemento, vale a pena ver as fotografias que Mário Filipe Pires colocou na Retorta, tiradas em 1992.

Há muitos livros sobre Constantinopla e Bizâncio, mas os meus preferidos como leitura obrigatória e introdutória são os de Steven Runciman, em particular The Fall of Constantinople 1453 , Cambridge University Press, 1992. Na mesma colecção popular da CUP, a “Canto”, há uma biografia de Constantino XI e uma colecção fascinante de retratos de mulheres bizantinas de autoria de Donald M. Nicol , The Immortal Emperor. The Life and Legend of Constantine Palaiologos , Last Emperor of the Romans, Cambridge University Press, 1994 e The Byzantine Lady. Ten Portraits 1250-1500, Cambridge University Press, 1996.

Acrescento dois que comprei agora e que me foram muito úteis : Sulyman Kirimtayif, Converted Byzantine Churches in Istanbul. Their Transformation into Mosques and Masiids, Istambul, Yayinlari, 2001, e Faruk Ersöz, A Stamboul avec Pierre Loti, Istambul, Yayinlari, 2001.

O subtítulo deste último é “cela dure si peu, à mon age les étes”.

*

Leio as suas impressões de Istambul e não deixo de rever as minhas férias deste Verão e as sensações que essa cidade me gravou... chegamos cheios de nós próprios e das nossas pequenas certezas e, de repente, vamos deixando cair tudo e ficamos despojados. A partir daí, recebemos e recolhemos o que Istambul nos oferece e deixamo-nos embalar numa melodia hipnotizadora de cheiros, de sons, de hábitos, de estranhas formas de vida.(…) O meu hotel também estava perto da Ayasofya e o constante chamamento à oração (curiosamente a oração parecia distinta às restantes mesquitas da Turquia) - infelizmente gravado - ajudou-me muito a reviver as madrugadas do almuadem de Saramago...

Se procurar entrar a fundo na vida turca, as sandes de peixe à beira da ponte de Galata são uma opção pouco turística e felizmente sem muitos espanhóis à volta...acredite que se tem a sensação de estar noutro mundo...e também apanhar um autocarro do outro lado da porta do Bazar das Especiarias, passar duas ou três paragens, visitar uma igreja católica e um jardim bonito e passear por um bairro onde as pessoas raras somos nós.. aí sim, é a verdadeira vida turca, bem mais árabe do que europeia, com casas de dois pisos, roupa a secar nas ruas sujas, se balader sem sermos assediados porque, aí, o comprador é o turco e não o guiri.”


(Sílvia Jardim)

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Nuno Mendes, no Klepsydra , coloca bem a questão do papel do dinheiro de Bruxelas na uniformização das sociedades e dos produtos, embora já haja “4 MacDonalds à volta de Hagia Sofia ou da Mesquita Azul” , à volta de todas as coisas. A minha dúvida tem a ver com a pobreza, com a pobreza que, quer queiramos quer não, é também uma das razões desta diversidade. Prolongo essa dúvida, perguntando-me até que ponto somos nós (os ricos) que podemos escolher não ir aos McDonalds (embora vamos), que desdenhamos o seu papel em sociedades como esta. Quem diz os McDonalds, diz o "dinheiro de Bruxelas".
Seja como for, aqui fica a nota, que transcrevo:

No post Istambul2 Pacheco Pereira afirma que os burocratas de Bruxelas nunca terão hipótese de uniformizar as ruas caóticas desta cidade turca. Também já lá estive e até percebo o que quer dizer JPP, aquilo realmente impressiona pela diversidade e pela riqueza cultural, o problema é que Bruxelas tem uma forma muito simples de corromper até as culturas mais vivas, basta para isso dar dinheiro para que "eles" fiquem mais parecidos com os "outros" que somos nós (somos? queremos ser?).

Quando se diz a um agricultor que tem de deixar de plantar um certo tipo de tangerinas que embora saborosas não podem ser vendidas num qualquer "Pingo Doce", podem ter a certeza que ele não tem escolha e passa a plantar maçãs "Golden Smith" como todos os outros agricultores europeus. Não há maneira melhor de convençar alguém a mudar, por dinheiro todas essas mil variedades de azeitonas de que fala Pacheco passarão a uma só, a oficial, a europeia, e no momento em que houver 4 MacDonalds à volta de Hagia Sofia ou da Mesquita Azul, poderemos finalmente dizer que a Turquia faz parte do clube dos países civilizados, modernos e cada vez mais tristes...”


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JMT, a propósito das “conversas islâmicas”, acrescenta uma outra em Exacto, resultante de uma viagem ao Egipto.

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18.10.03


IMAGEM JÁ ANTIGA

do dia 12, e que não foi identificada, é de Anton Romako, foi pintada em 1877 e está em Viena.

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SEQUÊNCIA


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HITLER – MEIN KAMPF (A MINHA LUTA)

Vincent Bengelsdorff pedia a opinião sobre a proibição (ou não) de livros como o Mein Kampf, de Hitler. É um debate interessante, para o qual, penso, não são necessários, neste caso, muitos argumentos: não tem sentido a proibição de qualquer livro por razões políticas, muito menos de uma obra com o significado histórico da de Hitler. Ninguém fica nazi por ler o Mein Kampf, e, mesmo que ficasse, não era argumento.

Não é difícil encontrar uma longa lista de livros e panfletos da literatura radical abrangendo tradições políticas tão diferentes como o anarquismo, o comunismo, o maoísmo, o trotsquismo, o nacionalismo, o fascismo, o pan-arabismo, o sionismo, o ecologismo radical, nos quais existem apelos à violência de todo o tipo, de raça, de classe, social, nacional, religiosa, etc.

Os únicos livros que, no limite da excepcionalidade quase absoluta, poderia compreender que fossem proibidos, e apenas por decisão judicial, são aqueles que contenham graves calúnias ou ofensas ao bom-nome de uma pessoa, ou constituam uma violação do seu direito à intimidade (sempre), ou privacidade (no caso de não existir um forte e inequívoco interesse público nessa violação). Refiro esta distinção, que me parece importante, entre intimidade e privacidade, porque, nas discussões jornalísticas, é comum fazer-se esta confusão.

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LISTA DO OBSERVER – LIVROS QUE NÃO CONHECIA

e que foram lidos pelos leitores do Abrupto:

“Nele refere uma listagem dos melhores cem, e menciona os que de todo desconhecia. Entre eles, a obra de John Buchan, que serviu de sustentação a Hitchcock para uma das suas obras mais conhecidas, The thirty-nine Steps. "

(Victor Peres)

Achei interessante a lista de livros publicada, dos quais também todos desconheço. Curiosamente o The Thirty-Nine Steps li juntamente com minha filha quando ela estava no 9º. ano. “

(Paula Canaveira)

Leia o Riddle of the Sands (publicado pela Penguin). É um romance de aventuras de dois jovens ingleses, passado no Mar Báltico, entre os bancos de areia da costa alemã, escrito em 1903, antecipando já a 1ª guerra mundial, com algum humor, prezando valores como a honra e dignidade pessoais, ingénuo para a nossa sofisticação de violência e sexo, tem um gosto saudoso a coisa do Cavaleiro Andante.
O Oscar e Lucinda(*) tem graça, passa-se na Austrália com um par de jogadores viciados que decidem construir uma igreja de vidro numa zona inóspita, mas não vale, realmente a pena.
Os Thirty Nine Steps deram origem a 2 ou 3 filmes, o primeiro dos quais nos anos 30, com o Robert Donat.É dos primeiros romances de espionagem que põem em cena um inocente apanhado nas malhas de uma organização tenebrosa, perseguido por todos, polícia e bandidos. Tem uma imensa frescura e o picante do herói estar algemado a uma menina bonita uma boa parte do tempo. De antipático apenas a extrema xenofobia e o patriotismo delirante do autor, ao pé de quem o Kipling é um moderado amador. Defeitos que, no entanto, não transparecem neste livro, ao contrário doutros do Buchan, que os ingleses conservadores adoram.”


(José Vaz de Mascarenhas)


"O vento nos salgueiros" ou Wind in the Willows é um livro para crianças muito bem escrito e sonhador. Não como os maus livros para crianças que por serem tão chatos para os adultos passam para as crianças. Recomendável mesmo para os mais "graudos".
Aqui vão alguns sites onde pode encontar livros gratis - inlusivé o fantástico "vento nos salgueiros".

1) Projecto gutemberg - lá pode encontar o vento nos salgueiros


(Filipe Charters de Azevedo)


Sobre as "leituras de avião" e a lista dos 100 melhores romances do Observer, ewscrevo-lhe só para dizer que considero Oscar and Lucinda, de Peter Carey, um excelente livro. Aliás ganhou o Booker Prize de 1988, o que para mim quer dizer qualquer coisa. Como actualmente a maior parte do que leio é de matriz anglo-saxónica tenho o Booker (agora parece que se chama Man Booker) na conta de um prémio muito importante e pessoalmente sigo-o com mais atenção que o Nobel. Curiosamente Coetzee, embora incluído na longlist do Booker deste ano, não ficou na shortlist (tal como Martin Amis, mais uma vez) e penso que merecidamente, porque Elizabeth Costello é decepcionante.

Luis Rebolo

(*) Nelson de Matos informa-me que Oscar e Lucinda, de Peter Carey (Booker Prize de 1988), está publicado em Portugal. Assim como os seus outros romances: Jack Maggs e A Verdadeira História do Bando de Ned Kelly (Booker Prize de 2001) na Dom Quixote.



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RECORDAÇÃO DE ASHKABAD


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VALOR

Dois produtos que circulam nos mercados desta zona (Irão, Turquia, Arménia, Azerbeijão), como produtos de alto valor: caviar e açafrão. Nenhum chega aos mercados por via legal, mas através de circuitos de contrabando, enlatados com rótulos falsos, sem datas, misturados com outras variedades menos caras. Mas valem ouro.

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17.10.03


CORREIO, IMAGENS, SECÇÕES HABITUAIS,

o Abrupto de todos os dias não pode ser mantido enquanto eu andar por onde ando. Algumas melhorias tecnológicas no meu hardware de viagem permitem-me ocasionalmente, sem certezas, escrever e enviar algumas notas, mesmo do fundo do Taklamakan. Mas não posso reler e corrigir o que escrevo, que, para seguir, tem, como se diz agora, uma “pequena janela de oportunidade”.

Quando passar pela pátria, farei as correcções necessárias e, nalguns casos, acrescentarei imagens sem as quais o texto fica pobre.

Também, como é óbvio, não leio nada nos outros blogues e estou desprovido de notícias. Acontecerá alguma coisa na pátria no reino das pequenas coisas? As grandes acabo por sabê-las, mas suspeito que as turbulências continuam muito junto ao chão.

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CONVERSAS ORTODOXAS 2

Para um português, a igreja ortodoxa não faz parte das suas experiências, como aliás, verdadeiramente, o contacto com as outras religiões. Somos muito periféricos e provincianos, e a história que passou por nós não foi a história das grandes religiões. Se calhar é uma sorte.

No meio de um grupo de bispos ortodoxos, em frente do Patriarca Ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu, sinto uma enorme estranheza. O que é que eu sei destes homens, vindos da Sérvia, da Grécia, da Bulgária, da Roménia, da Turquia, dos países que eram comunistas, de igrejas e mosteiros de um mundo mais antigo do que o nosso, mais perto da origem do cristianismo, dos seus locais de génese, dos lugares por onde andaram os apóstolos?

Vendo bem, a estranheza começa logo na acumulação subtil das diferenças de vestir, no kalymauki na cabeça, nas barbas, no rabo-de-cavalo, mesmo na pequena corte de padres e monges que acompanha cada bispo, que já não se vê vulgarmente no ocidente. Muitos são, percebe-se de imediato, intelectuais, falando grego, serbo-croata e francês entre eles (porquê francês mais que inglês?), mas, de repente, aparece um que é o retrato estereotipado do pope camponês da literatura russa, pequeno, mãos grossas, olhos brilhando numa face redonda e cheia, acentuada pela barba.

Mas abre a boca e sai um francês límpido, e embrenha-se numa discussão sobre como o “Espírito Santo”, para falar hoje, na sociedade moderna, tem que o fazer através da laicidade. Como fazer passar o “sagrado” e as suas imagens num mundo laico? Não “infelizmente laico”, mas “necessariamente laico”, porque o bispo achava que era normal a sociedade civil ser laica. Não emitia um lamento que fosse por essa laicidade, como é vulgar ouvir a muitos padres. Achava ele, vindo de um antigo país comunista, que sociedades civis democráticas, “sem sentido” teleológico, valiam mil vezes mais do que as sociedades “com sentido” e” programa” do socialismo real. Por aí adiante.

Junto deles, aqui, no Oriente, o estranho sou eu, “latino”, “papista”, agnóstico, de um país mais para o lado da América do que da Europa que eles conhecem, tentando adivinhar o que é que move estes homens, “pastores” de povos em muitas encruzilhadas, tendo visto guerras recentes (os sérvios), ou então carregados de memórias de guerras passadas.

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CONVERSAS ORTODOXAS

A igreja ortodoxa pode-se considerar a herdeira mais próxima do império bizantino. O poder que sobrou, de Moscovo a Atenas, ficou aqui, nesta igreja antiga que, mais do que qualquer outro ramo do cristianismo, se associou à ideia de uma teocracia.

Enquanto no ocidente europeu a igreja “latina” perdeu esse vínculo teológico com o estado, não só pelas suas divisões internas (o protestantismo, as igrejas reformadas), como pelo ascenso das ideias da revolução francesa, da laicidade do estado, e também do nacionalismo romântico. Mesmo o anglicanismo, ao “nacionalizar” a igreja politicamente, tornou civil o vínculo entre o estado (a monarquia) e a igreja. Ritualizou-o como instituição humana e não como instituição divina.

A igreja ortodoxa sempre teve uma grande capacidade de sobreviver ligando-se ao poder, como no período comunista, em que os altos dignitários da igreja mantiveram, após uma crise inicial, uma relação próxima com as autoridades comunistas. O mesmo aconteceu com a longa convivência nas antigas terras cristãs ocupadas pelo Islão.

Nesta parte do mundo, o nacionalismo oitocentista, que noutros sítios foi um instrumento de laicidade, encontrou na ortodoxia um instrumento de expressão. E igrejas como a “grega” e a “sérvia” tornaram-se em igrejas de fronteira, instrumentos da identidade nacional dos povos cristãos, contra o Islão.

(Continua)

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CONVERSAS ISLÂMICAS

Conversa com A. , jovem muçulmana turca, que usa o véu cobrindo a cabeça, o que não é muito comum nas jovens da sua idade e condição social. “Usas o véu para marcar uma posição?”. “Não, uso-o desde os oito anos e, por causa de o usar, não posso entrar para a universidade, nem ser funcionária pública”. A. foi estudar para a London School of Economics, e trabalha nas relações internacionais do Partido para a Justiça e Desenvolvimento, o partido islâmico moderado actualmente no poder.

Este é um dilema da democracia na Turquia: as origens da laicidade do estado (de que nós gostamos), tem como penhor o exército turco e os seus poderes “especiais” (de que não gostamos), que se manifestam limitando o poder do partido que ganha as eleições para implementar políticas como seja a liberdade de usar o véu nas instituições públicas.

“Mas”, disse eu, “depois não haveria tendência para pressionar quem não o usasse?”. A resposta de A. sobre a tolerância não me convenceu, porque em muitas cidades árabes que eram liberais, Argel, Casablanca, Bagdad, ano após ano, nos últimos dez anos, as mulheres tinham (e têm) cada vez mais dificuldade em sair à rua vestidas à ocidental, os lenços eram quase obrigatórios, as saias eram todos os dias mais longas, as roupas tapavam mais o corpo.

Não é simples.

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16.10.03


AMANHÃ

caminho mais para Oriente, para a Ásia, atrás dos cruzados.

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ISTAMBUL

tem mais vida que dez cidades da Europa juntas. Parte dessa “vida” vem da pobreza, parte vem da história, e parte vem do futuro da Turquia. Não sei que parte vencerá, mas que há uma força imensa nestas ruas de multidões, de gritos, de demografia a pleno vapor, de caos, há.

ISTAMBUL 2

Se a UE, “Bruxelas” como dizem os ingleses, pensa “uniformizar” esta rua de Istambul à força de directivas e do “aquis communautaire”, tire daí as ilusões. Tragam a Comissão e os burocratas uma hora ao Grande Bazar, ou, melhor ainda, para lá do ouro e das carpetes, para o Bazar das especiarias, e a sua extensão natural nos mercados ao ar livre, até junto da ponte de Gálata, no meio das mil e uma variantes de azeitonas, de queijo, de fruta, de chás, de doces, de pós e folhas com cores vibrantes, misturados com sapatos, malas, perfumes com os melhores nomes falsos que há no mundo, onde tudo tem um ar proibidíssimo, e totalmente desregulado.

(Pensando bem, nós também temos a feira da Santana, só que não é no centro de Lisboa, e os produtos agrícolas são piores.)

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A COLUNA QUE SUA


Coloquei a minha mão no interior frio da coluna que sua. A coluna onde apareceu S.Gregório, que lhe transmitiu poderes de cura através da transpiração da pedra. Muitas mãos antes da minha romperam o bronze protector, e cavaram no interior do mármore um buraco que parece uma boca tortuosa. Há alguma coisa de obsceno neste gesto.

NO CHÃO,




dispersas, algumas letras gregas no mármore. Não encontrei nenhuma referência ao seu significado. Fragmentos de vidas ou da ordem das coisas?

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AYASOFYA: O PODER

A tragédia desta casa é que nunca houve dentro dela fé tão profunda e verdadeira como no seu último dia de igreja cristã, no século quinze, já a catedral estava há muito delapidada. Decaíra como Bizâncio. Quando Constantino XI se prostrou perante o altar, já tinha a certeza de que os grandes ícones que mandara passear em procissão na véspera – o da Virgem Hodegetria e o da Virgem Blachernitissa – não o salvariam nem a si, nem à sua cidade. Entrou sem poder naquele palácio do poder, monumento à simetria que o poder dos homens pretende ter com o poder de Deus.

Size matters. A imensidão da igreja tornou-a propícia à exibição do poder dos homens. Na catedral, foi assim desde o primeiro momento. Justiniano, que a reconstruiu na sua forma actual, teria dito ao entrar no edifício: “Salomão, eu venci-te”. Nas suas paredes, os imperadores faziam-se representar ao lado de Cristo e da Virgem, quase com a mesma altura e dignidade. O halo dos santos está à volta da cabeça dos poderosos. Somente uma imagem, representando o imperador Leão VI, o mostra no chão a rezar.

Mehemet II, que venceu Constantino (e, através de Constantino, Justiniano), colocou-lhe o crescente do profeta em cima. Ataturk, que duplamente venceu Mehemet e Justiniano, fez esta coisa hoje impossível: tornar uma mesquita, com o valor simbólico desta, em museu. Como museu, pode-se agora retirar o gesso que tapava os mosaicos que escaparam da destruição, e mostrar as faces douradas do passado no seu orgulho e glória perdidos. Agora o seu poder é o da beleza, talvez o mais arrogante de todos os poderes humanos.

Acaba por ser numa inscrição do Corão, numa das paredes, na aplicada caligrafia árabe, que se lembra a omnipotência da divina sabedoria, a que a igreja estava dedicada:

Em nome de Deus o Misericordioso, Deus é a luz do Céu e da Terra. Ele é a verdadeira luz, a que não vem nem do brilho do vidro, nem do cintilar da estrela da manhã, nem da cor vermelha da brasa incandescente.”

Nem do brilho dourado dos mosaicos, nem da luz coada pelos vitrais, nem das colunas que o sol cria ao entrar pelas janelas debaixo da cúpula, nem da solidez do bronze das portas, nem do azul pintado nos arcos, nem dos entalhes dos capitéis bizantinos, nem do crescente em ouro, a mais alta parte da Ayasofya.

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15.10.03


AYASOFYA

No folclore popular (e patriótico) grego, há vários poemas sobre os últimos dias de Bizâncio cristã. Num deles, conta-se a derradeira visita do imperador Constantino XI à maior igreja da cristandade, a da divina sabedoria, Ayasofya. Perante o imperador prostrado, os ícones choravam, e mesmo a Virgem, que encima do alto a nave da igreja, estava perturbada. O poema promete

Está calma, querida Senhora, está calma, e não chores por eles
Porque, mesmo que passem os anos, e passem os séculos, tudo será teu de novo
.”

No dia seguinte, Bizâncio era turca e o vencedor fez algo que até então nunca tinha sido feito: transformou a igreja das igrejas em mesquita. Na primeira sexta-feira, o dia da “comunidade”, veio orar a Alá e o gigantesco edifício foi expurgado da idolatria cristã. Os mosaicos de ouro foram tapados com gesso, as cruzes de mármore das balaustradas foram picadas. Com os anos, as inscrições caligráficas em honra do profeta taparam os anjos, cuja face foi substituída por uma estrela, tornando-se em monstros abstractos, presidindo sem sentido a cada canto da mesquita. Pouco a pouco, pequenos acrescentos típicos da arquitectura religiosa otomana foram ocupando o interior da igreja: o sítio de onde o íman fala, um mihrab, etc. Mas é no exterior que os novos minaretes mais semelhanças lhe dão com uma mesquita.

E no entanto…nem o longo poder otomano apagou um ar, um silêncio qualquer, uma presença indefinida, uma nostalgia, um lamento, uma lembrança. Não queria lá estar à noite, porque demasiada gente invisível habita aquelas colunas.

Quando entrei hoje de manhã na igreja, uma multidão de turistas japoneses precedeu-me. Um deles, de bandolete na cabeça, calções, pequeno e musculado, com uma camisola vermelha da Vodafone, e controlado inteiramente pela sua máquina de vídeo – nenhum dos seus gestos tinha qualquer autonomia da máquina, quem mandava era a máquina e ele não olhava para nada sem a máquina mandar – pisou o omphalon. Pisou-o como se pisa qualquer chão, ou melhor, como a máquina o obrigava a curvar-se para olhar para o alto, ele ajoelhou-se naquela parte da igreja onde as enormes placas de mármore, sem qualquer decoração por toda a nave, têm aí desenhado um quadrado que cinge um círculo. A máquina deve ter obedecido a um dos anjos da igreja, porque, ao ajoelhar no omphalon, o "umbigo", o local onde os imperadores de Bizâncio eram coroados e também ajoelhavam perante a “divina sabedoria”, o japonês curva-se perante um desses sítios onde os poderes comunicam.

Constantino XI devia ter olhado pela última vez para esse círculo interior e perguntado “porquê?”, a pergunta de Cristo na cruz. O Cristo bizantino, o Cristo Pantokrator, criador do universo, absolutamente poderoso, porquê entregar estes “romanos” aos infiéis turcos? Talvez porque Cristo nunca tenha respondido, nem sequer à Virgem que chorava, a igreja continua ensombrada e a máquina do japonês mandou-o ajoelhar no omphalon.

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14.10.03


DA MINHA JANELA TURCA

vejo (são quase quatro horas da manhã) brilhar iluminada a catedral das catedrais, Stª. Sofia. Amanhã cedo, atravessarei com a multidão a ponte de Galata, para subir até esse coração do mundo, onde muita da nossa história habita sob a forma de paradoxo.

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LEITURAS DE AVIÃO

Numa viagem longa lê-se muito no avião. Desta vez, tive sorte com a imprensa: foi um dia em que vários jornais internacionais tinham artigos ou notícias que valiam a pena (deve haver ligações para quase todas estas notícias, mas não tenho condições para as procurar).

O Fígaro, que é normalmente um melhor jornal, mais sólido que o Monde, publicava alguns resultados de um grande estudo feito sobre o sistema educativo francês, a pedido do Presidente Chirac. A ideia base do documento é identificar por que razão o sistema educativo não cumpre os seus objectivos e está claramente a recuar nos seus resultados. Há em França um grande debate sobre educação e valia a pena acompanhá-lo de Portugal e repetir alguns dos estudos aprofundados que estão a ser feitos.

Uma conclusão interessante do estudo francês é a clara manutenção da diferenciação social em todo o percurso escolar, apesar da forte pressão igualitária (e se calhar por isso mesmo) da escola.

O Fígaro publica também, sob a forma de um artigo, um excerto de um livro de Alain Finkielkraut e de Peter Sloterdijk, intitulado, de modo muito francês e sem qualquer imaginação, “crítica da razão extremista”. Já não sei quantos textos franceses são de “críticas à razão” de qualquer coisa…

O texto é muitas vezes obscuro, mas algumas observações têm interesse, como seja a análise da exclusividade que a esquerda se atribui do perdão, do perdão a si própria:

La gauche contemporaine est la partie de la societé ayant le privilège de se faire pardonner ses propes erreurs »

No La Repubblica , um balanço bastante pessimista do estado de sub financiamento das instituições culturais italianas, museus, arquivos, bibliotecas. O El Pais tem uma grande entrevista com a ministra espanhola da cultura.


O Observer publica uma lista dos cem maiores romances dos últimos quatrocentos anos. Como todo o coleccionador, eu gosto de listas e de me confrontar com elas, de comparar a “minha colecção” com as dos outros.

Na lista do Observer, eu lera cerca de quarenta livros em cem, embora numa ou noutra obra (como o Robinson Crusoé ou o Huckleberry Finn), em edições que penso não serem integrais ou terem sido condensadas. Não sei se conta para a “colecção”, que aliás não é muito difícil de fazer porque muitas obras são as básicas: D. Quixote, Flaubert, Kafka, Joyce, etc.

Mas, com alguma surpresa, havia na lista cerca de 15% de romances de que eu nunca tinha ouvido falar. Não é não ter lido, isso há muito mais, mas nunca, jamais, em tempo algum, ter ouvido falar. Aqui está a lista das faltas absolutas:

Samuel Richardson, Clarissa

Thomas Love Peacock , Nightmare Abbey

George Eliot, Daniel Deronda

Erskine Childers, The Riddle of the Sands

Keneth Grahame, The Wind in the Willows

John Buchan, The Thirty-Nine Steps

Flannery O’Cooner, Wise Blood

Chinua Achebe, Things Fall Apart

Elizabeth Taylor, Mrs Palfrey at the Claremont

Beryl Bainbridge, The Bottle Factory Outing

Marylinne Robinson, House Keeping

Peter Carey, Oscar and Lucinda

Se calhar é injusto, mas, com excepção do Clarissa , que seria “unputdownable”, também a nota que justifica a sua inclusão não me entusiasma muito a lê-los.


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12.10.03


A CAMINHO


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EARLY MORNING BLOGS 60

Vou precisar de asas outra vez, porque parto para a Porta. Da Porta, um dos sítios mais fascinantes do mundo, vai ser feito o Abrupto durante a próxima semana, se as tecnologias se portarem à altura. Tudo o resto ajuda: o lugar, as pedras, as pessoas, a história, o ar, as águas, os barcos, os haman, o pequeno café naquela rua, naquela esquina, em terras que foram genovesas, de onde se vê a “sagrada sabedoria”. Pode ser que, com sorte, um certo imperador, que dorme dentro das muralhas, resolva sair e ganhar um velho combate que perdeu há seiscentos anos. Há tão pouco tempo.

*

Domingo de manhã, hora do brunch e do New York Times, se o tempo fosse mais amável, mas “there's always someone around you who will call”. Cortesia da “Corneta”, nome propício para acordar de repente, este "Sunday Morning" dos Velvet Underground & Nico do álbum da banana:

"Sunday morning, praise the dawning
It's just a restless feeling by my side
Early dawning, Sunday morning
It's just the wasted years so close behind

Watch out, the world's behind you
There's always someone around you who will call
It's nothing at all

Sunday morning and I'm falling
I've got a feeling I don't want to know
Early dawning, Sunday morning
It's all the streets you crossed, not so long ago

Watch out, the world's behind you
There's always someone around you who will call
It's nothing at all

Watch out, the world's behind you
There's always someone around you who will call
It's nothing at all

Sunday morning
Sunday morning
Sunday morning"


Bom dia !

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© José Pacheco Pereira
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