ABRUPTO

17.10.03


CONVERSAS ORTODOXAS 2

Para um português, a igreja ortodoxa não faz parte das suas experiências, como aliás, verdadeiramente, o contacto com as outras religiões. Somos muito periféricos e provincianos, e a história que passou por nós não foi a história das grandes religiões. Se calhar é uma sorte.

No meio de um grupo de bispos ortodoxos, em frente do Patriarca Ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu, sinto uma enorme estranheza. O que é que eu sei destes homens, vindos da Sérvia, da Grécia, da Bulgária, da Roménia, da Turquia, dos países que eram comunistas, de igrejas e mosteiros de um mundo mais antigo do que o nosso, mais perto da origem do cristianismo, dos seus locais de génese, dos lugares por onde andaram os apóstolos?

Vendo bem, a estranheza começa logo na acumulação subtil das diferenças de vestir, no kalymauki na cabeça, nas barbas, no rabo-de-cavalo, mesmo na pequena corte de padres e monges que acompanha cada bispo, que já não se vê vulgarmente no ocidente. Muitos são, percebe-se de imediato, intelectuais, falando grego, serbo-croata e francês entre eles (porquê francês mais que inglês?), mas, de repente, aparece um que é o retrato estereotipado do pope camponês da literatura russa, pequeno, mãos grossas, olhos brilhando numa face redonda e cheia, acentuada pela barba.

Mas abre a boca e sai um francês límpido, e embrenha-se numa discussão sobre como o “Espírito Santo”, para falar hoje, na sociedade moderna, tem que o fazer através da laicidade. Como fazer passar o “sagrado” e as suas imagens num mundo laico? Não “infelizmente laico”, mas “necessariamente laico”, porque o bispo achava que era normal a sociedade civil ser laica. Não emitia um lamento que fosse por essa laicidade, como é vulgar ouvir a muitos padres. Achava ele, vindo de um antigo país comunista, que sociedades civis democráticas, “sem sentido” teleológico, valiam mil vezes mais do que as sociedades “com sentido” e” programa” do socialismo real. Por aí adiante.

Junto deles, aqui, no Oriente, o estranho sou eu, “latino”, “papista”, agnóstico, de um país mais para o lado da América do que da Europa que eles conhecem, tentando adivinhar o que é que move estes homens, “pastores” de povos em muitas encruzilhadas, tendo visto guerras recentes (os sérvios), ou então carregados de memórias de guerras passadas.

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© José Pacheco Pereira
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