ABRUPTO

15.10.03


AYASOFYA

No folclore popular (e patriótico) grego, há vários poemas sobre os últimos dias de Bizâncio cristã. Num deles, conta-se a derradeira visita do imperador Constantino XI à maior igreja da cristandade, a da divina sabedoria, Ayasofya. Perante o imperador prostrado, os ícones choravam, e mesmo a Virgem, que encima do alto a nave da igreja, estava perturbada. O poema promete

Está calma, querida Senhora, está calma, e não chores por eles
Porque, mesmo que passem os anos, e passem os séculos, tudo será teu de novo
.”

No dia seguinte, Bizâncio era turca e o vencedor fez algo que até então nunca tinha sido feito: transformou a igreja das igrejas em mesquita. Na primeira sexta-feira, o dia da “comunidade”, veio orar a Alá e o gigantesco edifício foi expurgado da idolatria cristã. Os mosaicos de ouro foram tapados com gesso, as cruzes de mármore das balaustradas foram picadas. Com os anos, as inscrições caligráficas em honra do profeta taparam os anjos, cuja face foi substituída por uma estrela, tornando-se em monstros abstractos, presidindo sem sentido a cada canto da mesquita. Pouco a pouco, pequenos acrescentos típicos da arquitectura religiosa otomana foram ocupando o interior da igreja: o sítio de onde o íman fala, um mihrab, etc. Mas é no exterior que os novos minaretes mais semelhanças lhe dão com uma mesquita.

E no entanto…nem o longo poder otomano apagou um ar, um silêncio qualquer, uma presença indefinida, uma nostalgia, um lamento, uma lembrança. Não queria lá estar à noite, porque demasiada gente invisível habita aquelas colunas.

Quando entrei hoje de manhã na igreja, uma multidão de turistas japoneses precedeu-me. Um deles, de bandolete na cabeça, calções, pequeno e musculado, com uma camisola vermelha da Vodafone, e controlado inteiramente pela sua máquina de vídeo – nenhum dos seus gestos tinha qualquer autonomia da máquina, quem mandava era a máquina e ele não olhava para nada sem a máquina mandar – pisou o omphalon. Pisou-o como se pisa qualquer chão, ou melhor, como a máquina o obrigava a curvar-se para olhar para o alto, ele ajoelhou-se naquela parte da igreja onde as enormes placas de mármore, sem qualquer decoração por toda a nave, têm aí desenhado um quadrado que cinge um círculo. A máquina deve ter obedecido a um dos anjos da igreja, porque, ao ajoelhar no omphalon, o "umbigo", o local onde os imperadores de Bizâncio eram coroados e também ajoelhavam perante a “divina sabedoria”, o japonês curva-se perante um desses sítios onde os poderes comunicam.

Constantino XI devia ter olhado pela última vez para esse círculo interior e perguntado “porquê?”, a pergunta de Cristo na cruz. O Cristo bizantino, o Cristo Pantokrator, criador do universo, absolutamente poderoso, porquê entregar estes “romanos” aos infiéis turcos? Talvez porque Cristo nunca tenha respondido, nem sequer à Virgem que chorava, a igreja continua ensombrada e a máquina do japonês mandou-o ajoelhar no omphalon.

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© José Pacheco Pereira
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