ABRUPTO

22.10.03


É LEGÍTIMO DISCUTIR AS ESCUTAS?

Uma carta de Joaquim Torres Costa, sobre a minha intervenção na SIC, representa a crítica mais consistente que me foi feita sobre esta matéria. Os argumentos do seu autor representam dúvidas que eu tive e algumas que eu tenho. Com a sua autorização, publico-a aqui, acrescentando alguns comentários que vão em bold.

"Relativamente à matéria da divulgação das escutas telefónicas de membros da direcção do PS, tem você, como actor político e como cidadão, todo o direito chamar à colação as contradições patentes dos seus adversários estratégicos. Isso não pode ocultar o facto, tão manifestamente contrastante com o seu “ethos” público, de você ter aceite comentar como “matéria” politicamente legítima o “conteúdo” divulgado das escutas telefónicas sem, de acordo com a matriz do seu próprio discurso, ter sublinhado expressamente as seguintes circunstâncias :[comecei o que disse na SIC condenando as fugas de informação, e só com processo de intenção é que se pode considerar que isso é retórico]

1) Que a divulgação do conteúdo das escutas resultou necessariamente da perpetração de um crime [de acordo] cuja gravidade é análoga àquela que os seus fautores pretenderam atribuir aos comportamentos alheios. [como não sei quais são os "seus fautores", não posso estar certo da sua intencionalidade. Muito desta carta não poderia ser escrito se o seu autor não tivesse uma ideia pré-concebida sobre quem fez as fugas] Refiro-me não tanto ao crime (banal) da violação do (inefável) segredo de justiça, mas ao de utilização estratégica da qualidade de “fonte anónima” [não estamos neste caso perante uma "fonte anónima", mas perante um documento processual contendo escutas e a sua interpretação pelo Ministério Público; o conteúdo das escutas não foi negado pelos próprios, que apenas afirmaram terem sido citadas fora do contexto] ¾ por parte de quem tem poder de acesso ao teor da investigação e a informação legalmente reservada ¾ com o objectivo de influir publicamente sobre a posição de terceiros que são directa ou indirectamente interessados no mesmo processo .[esta frase só tem sentido se as fugas tiverem a origem que o autor da carta sugere, e não tenho elementos para o confirmar ou desmentir; o que mais clarificava todo este processo era a identificação dos autores das fugas]

2) Que a formatação da “fuga” foi intencionalmente dirigida à apetência primária dos media pelas informações "ready made". Com efeito, não estamos perante transcrições de escutas telefónicas oferecidas ao escrutínio público, mas antes de uma selecção intencional de passagens dessas transcrições, devidamente acompanhadas de comentários e interpretações de uma voz cuja autoridade não é justificada, mas proferidos ao abrigo de qualquer contraditório. O que as fontes forneceram aos jornalistas foi, portanto, um verdadeiro “press release” antecipadamente construído (como é norma) para obter articulação óptima entre os objectivos visados e o modo de percepção dos media necessários à sua divulgação. [ repito o que disse antes: esta frase só tem sentido se as fugas tiverem a origem e a forma que o autor da carta sugere; não tenho elementos para o confirmar ou desmentir, a não ser que as conheci através de um trabalho jornalístico, quer na SIC, quer na RTP, quer no Público, que me pareceu até bastante sóbrio e sólido para o costume]

3) Que, finalmente, algumas das passagens seleccionadas devem a sua eficácia simbólica à exploração da fractura ontológica (universalmente inscrita na ordem psicológica, social e mesmo moral) entre a linguagem pública e a linguagem privada (mesmo se aplicada a coisas públicas), sendo certo que nenhum titular de estatuto público (político, jurídico, pedagógico ou religioso) poderia resistir (salvo em regime da mais totalitária autocensura) ao escrutínio terrorista do seu discurso privado nem à respectiva divulgação ad hoc como instrumento dos conflitos sociais em que fosse participante. [inteiramente de acordo: sempre que me tenho pronunciado na matéria, tenho desvalorizado esse aspecto da linguagem; os plebeísmos utilizados parecem-me de todo irrelevantes e insusceptíveis de qualquer julgamento negativo; na análise das escutas tornadas públicas não é a linguagem, nem as opiniões, que me interessam, mas apenas os factos; só esses me parecem passíveis de interpretação legitima, se forem do domínio dos comportamentos políticos, como penso ser inequívoco que são. Nunca deveriam ter sido conhecidos deste modo, mas é um facto que são públicos.]

É certamente difícil imaginar, no mundo real, um comentarista da “área do partido X” recusando a oportunidade de explorar a rendibilidade simbólica de tais “revelações” sobre “membros do partido Y”, quaisquer que seja os partidos concretos que em cada momento preencham o lugar daquelas incógnitas. [não é verdade: tenho noutras ocasiões , no Flashback e em artigos, defendido, mesmo contra o meu partido, responsáveis do PS ; por exemplo, já mais de uma vez defendi Ferro Rodrigues, como quando da crise das "patetices", que também incidia sobre uma questão vocabular; o problema é que, para certas pessoas e apenas para certas pessoas, nunca há memória consistente: quando critico Paulo Portas ou o governo ou o PSD, sou "independente" e 'corajoso"; quando critico o PS estou ao "serviço", sou dúplice ou contraditório. Este tipo de "prova de vida", que aliás também é dúplice porque não exigida a outros, não é aceitável. Já tenho biografia suficiente nestas matérias para estar sempre a ser julgado ... quando critico o PS ou o "outro lado". ] Mas, no mundo ideal do “há muito que venho dizendo”, o autor e o cidadão José Pacheco Pereira jamais teriam consentido “comentar” como “informação” (como substância moral e epistemologicamente neutra...) uma representação da realidade tão fundamentalmente inquinada na sua origem, na sua forma e no seu processo por pressupostos cuja denúncia tem constituído exactamente a matriz do seu discurso público. Era nessas ¾ e só nessas condições ¾ que a invocação argumentativa que faz das suas próprias posições passadas e das dos seus adversários políticos em face de circunstâncias semelhantes adquiriria toda a sua eficácia intelectual e moral. Com todo o respeito, o que o José Pacheco Pereira agora diz no seu blog, ou mesmo o que venha dizer na sua selectiva coluna do Público, não apaga o que consentiu fazer perante uma gigantesca audiência televisiva em horário nobre: uma arrepiante demonstração de realpolitik da inteligência. [Não há qualquer regra deontológica que impeça ou limite o comentário deste tipo de informação, nem esta questão nunca fora posta antes, para casos prévios de divulgação de escutas em processos crime - e são vários os casos, alguns recentes, como o do deputado António Preto. Este, pelos vistos, não teve direito a nenhuma indignação, embora toda a gente comentasse a escuta do episódio da mala.

Nesta matéria, há distinções deontológicas que podem parecer subtis, mas que são fundamentais. São, aliás, as habituais nos grandes órgãos de comunicação social internacional, em que a ideia de que este tipo de documentos não é passível de discussão apareceria como muito bizarra.

As minhas regras são próximas (mas não inteiramente idênticas, porque não sou jornalista) das que vêm em qualquer manual de deontologia:

Nunca discutiria escutas que tivessem sido feitas por jornalistas, ou "oferecidas" a um órgão de comunicação social sem conhecimento da fonte nem da legalidade da sua obtenção. As escutas agora divulgadas são fruto de um crime (a violação do segredo de justiça) , mas têm fonte identificada e não são anónimas (o autor da fuga não é a fonte, mas sim o documento com as transcrições), são legais e não foram contestadas na sua veracidade, apenas no "contexto". (Aqui não aceito a posição socialista porque não é difícil contextualizá-las.)

Nunca discutiria escutas (nem qualquer outro tipo de documentos) que tivessem a ver com as acusações que vão ser julgadas em tribunal, e que antecipassem a condição de inocente ou culpado dos arguidos.

Nunca discutiria escutas (nem qualquer documento) que contivesse matéria sensível e íntima (de ordem sexual, por exemplo) e que pudesse ser resumido sem perda de teor informativo por frases como "X é acusado de trinta casos de...", evitando uma desnecessária violência pessoal sem prejudicar o eventual interesse público em se saber de que é que um político é acusado. Também nunca me pronunciaria sobre escutas que envolvessem, no âmbito desta matéria intíma, terceiros. Por isso, acho inaceitável a publicação na íntegra do pedido de levantamento da imunidade parlamentar de Paulo Pedroso, como o Independente fez. Se a SIC fizesse o mesmo, ou coisa parecida, recusar-me-ia a comentar.

Mas isto significa, por outro lado, que aceito como legítima a divulgação pela comunicação social de escutas como as que estamos a discutir e que versam matéria com significado político, independentemente do seu valor para o processo. No entanto, se a decisão de fazer as escutas e as transcrever por parte do MP fosse apenas a parte política do seu conteúdo, elas seriam para mim inadmissíveis e um claro abuso de poder. Quando tudo se conhecer, até pode ser esta a minha conclusão; até lá, não posso eliminar racionalmente a hipótese de que possa ter havido uma tentativa de "perturbação do processo" usando o poder político. Não estamos em terreno diferente das acusações ao ministro Martins da Cruz, só que com muito maior gravidade. Mas admito que é interpretativo, e portanto inseguro. ]


Ora para isso, como sabe melhor do que ninguém, mais vale, à mesma hora, sintonizar a TVI. " [Tem razão]

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© José Pacheco Pereira
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