ABRUPTO

25.10.03


PARA UMA ANTOLOGIA DA CUNHA EM PORTUGAL: EÇA DE QUEIRÓS PARA OLIVEIRA MARTINS

Bristol, 29 de Julho de 1886

Meu Querido Oliveira Martins

O portador desta carta será, creio eu, o sobrinho de minha mulher, D. Luís de Castro, que vai fazer exames - exames que ele te explicará, porque eu nada compreendo das divertidas complicações da pedagogia nacional. Sei apenas que, quando um rapaz quer ser engenheiro - o Estado imediatamente lhe ensina Retórica e Direito Canónico: e quando o temperamento de outro moço o inclina para a Teologia - logo o Estado o torna proficientíssimo em Desenho Linear e Botânica. Quando eu estava no Porto, assisti com efeito ao pavoroso espectáculo dos estudos de Luís de Castro: ele quer ser, creio eu, engenheiro naval: e para isso andava introduzindo dentro do crânio, por meio de um martelo e de um compêndio, um tratado de direito civil, as "Éclogas" de Virgílio e a lista de todos os reis de França e de Inglaterra, com os seus nomes, os seus números, as suas alcunhas, as suas famílias, os seus bastardos e as suas fundações pias. E foi então que eu compreendi a filosofia e a secreta moral do empenho. O empenho, tão caluniado pelos austeros, é por fim a salvação do País

O empenho é o correctivo do bom senso público aplicado ao disparate oficial. Sempre que um regulamento, saído de um antro burocrático, impôe ao público uma prática tola - o público coliga-se por meio do empenho, para lhe anular os efeitos funestos. O Estado, imbecil, exige que meu filho ou sobrinho, que quer ser engenheiro, saiba de cor a Lógica do João Dória e a Retórica do Cardoso?... Pois bem, eu o lograrei, na sua imbecilidade! E vou direito ao examinador e, por meio do empenho, consigo que o rapaz venha a ser engenheiro, sem nada saber dos impossíveis físicos e metafísicos e da Teoria do Silogismo. Tal é o grande, nobre papel do empenho na sociedade portuguesa: ele é a conjuração do bom senso positivo contra o idealismo obsoleto e tolo das instituições.

Este aranzel tende a acalmar a tua consciência de filósofo e de patriota - quando eu agora te pedir, com instância que te empenhes para que D. Luís de Castro seja aprovado em todas essas matérias que o Estado lhe fez decorar, que ele decorou com paciência e submissão, mas que, no momento preciso, lhe podem esquecer - como todas as coisas que a gente sabe só de cor, e só em obediência ao Estado!

Como esta carta é só de empenho, não te falo em outros assuntos - a não ser em dois igualmente interessantíssimos para Portugal e para mim: quando há probabilidades de que tu, ENFIM, nos comeces a governar? E quando aparecem os sonetos de Santo Antero?
Abraça o Santo, e tu, recebe abraço igualmente afectuoso, do teu do C.

Queirós


(Retirada de Cartas de Autores Portugueses, Edição dos CTT, 1987; cortesia de Américo Oliveira )

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]