ABRUPTO

16.10.03


AYASOFYA: O PODER

A tragédia desta casa é que nunca houve dentro dela fé tão profunda e verdadeira como no seu último dia de igreja cristã, no século quinze, já a catedral estava há muito delapidada. Decaíra como Bizâncio. Quando Constantino XI se prostrou perante o altar, já tinha a certeza de que os grandes ícones que mandara passear em procissão na véspera – o da Virgem Hodegetria e o da Virgem Blachernitissa – não o salvariam nem a si, nem à sua cidade. Entrou sem poder naquele palácio do poder, monumento à simetria que o poder dos homens pretende ter com o poder de Deus.

Size matters. A imensidão da igreja tornou-a propícia à exibição do poder dos homens. Na catedral, foi assim desde o primeiro momento. Justiniano, que a reconstruiu na sua forma actual, teria dito ao entrar no edifício: “Salomão, eu venci-te”. Nas suas paredes, os imperadores faziam-se representar ao lado de Cristo e da Virgem, quase com a mesma altura e dignidade. O halo dos santos está à volta da cabeça dos poderosos. Somente uma imagem, representando o imperador Leão VI, o mostra no chão a rezar.

Mehemet II, que venceu Constantino (e, através de Constantino, Justiniano), colocou-lhe o crescente do profeta em cima. Ataturk, que duplamente venceu Mehemet e Justiniano, fez esta coisa hoje impossível: tornar uma mesquita, com o valor simbólico desta, em museu. Como museu, pode-se agora retirar o gesso que tapava os mosaicos que escaparam da destruição, e mostrar as faces douradas do passado no seu orgulho e glória perdidos. Agora o seu poder é o da beleza, talvez o mais arrogante de todos os poderes humanos.

Acaba por ser numa inscrição do Corão, numa das paredes, na aplicada caligrafia árabe, que se lembra a omnipotência da divina sabedoria, a que a igreja estava dedicada:

Em nome de Deus o Misericordioso, Deus é a luz do Céu e da Terra. Ele é a verdadeira luz, a que não vem nem do brilho do vidro, nem do cintilar da estrela da manhã, nem da cor vermelha da brasa incandescente.”

Nem do brilho dourado dos mosaicos, nem da luz coada pelos vitrais, nem das colunas que o sol cria ao entrar pelas janelas debaixo da cúpula, nem da solidez do bronze das portas, nem do azul pintado nos arcos, nem dos entalhes dos capitéis bizantinos, nem do crescente em ouro, a mais alta parte da Ayasofya.

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© José Pacheco Pereira
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