ABRUPTO

19.7.03


UM NINHO




Um ninho de “verdinhogo” , em cima de um livro, Feito com musgo e com “cabelos”, parece algodão no meio. Resistiu a ventos muito fortes. Caiu intacto depois de três pássaros terem seguido à vida, quando já era inútil. No chão parece fragilíssimo. Sei que não é.

Segundo V., o “verdinhogo” é um pássaro cinzento “esverdinhado”. “Canta melhor do que o “mandarim” que tem bico vermelho, cinzentinho, mas com riscas encarniçadas. Como o bico tem é como o corpo”.









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"COM O TURISMO NÃO SE BRINCA"

O que é exactamente o que está a fazer quem encomendou os anúncios com os bonecos da Contra–Informação que passam na televisão? É difícil fazer uma coisa tão feia, tão repulsiva, tão ineficaz como esses anúncios. O que é que passa pela cabeça de quem os encomendou, pensou e comprou? Qual é o “alvo”, como eles dizem? Qualquer pessoa que veja aquilo foge a sete pés do país que assim se representa, certamente porque é assim que é.

*

E os do Expresso, que não sabem absolutamente nada se estou em férias e onde as passo, se estou cá ou nos antípodas, com a imaginação de uma betoneira estacionada junto de um estádio de futebol, colocam-me na praia junto da fauna, de toalhinha e computador …


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DE LONGE PARA LONGE


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OBJECTOS EM EXTINÇÃO 14 (Actualizado)

1. As vozes que não se ouvem mais.
São “objectos”? Como é que ficam na nossa memória?
Como uma coisa?

A voz de Nemésio, a voz de Villaret, a voz de David Mourão Ferreira, a voz de Beatriz Costa, a voz de Salazar, a voz de Vasco Santana, a voz de João César Monteiro, as vozes dos nossos, pouco a pouco desaparecendo.

As vozes que já não se ouvem há muito tempo, as vozes que deixaram de se ouvir. As que falam baixo à noite, as que se estão a esquecer, as que gritam quando as queremos calar, as do silêncio.

Devia haver um catálogo de vozes.

(A rádio, catálogo de vozes).

*

Miguel : "A voz da minha mãe é a única memória dela que me não resta mais . Foi-se rápida num vento sem retorno. Desfez-se. Num entanto acho que prescindiria de catalogar a sua voz , mesmo que tivesse tido oportunidade. O registo da voz é-me demasiado brutal face à irreversibilidade da perda."



2. Acabou a telescola. Portugal mudou.

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EARLY MORNING BLOGS 13


Eu sou um adepto do meta-bloguismo, embora pense que o excesso do dito levaria a uma esterilidade completa. O meu meta-bloguismo vem de não conseguir usar um meio sem me esforçar por o perceber. Num primeiro tempo, este olhar “tira” liberdade, condiciona, “prende” e por isso o meta-bloguismo gera sempre um certo mal-estar. Mas há um segundo olhar, que se calhar também vem com o primeiro, que acaba por nos dar uma ainda maior liberdade. Eu sou da escola de quem pensa que conhecer liberta. Não há provavelmente maior ilusão nos últimos duzentos anos, do que achar que as “luzes” alumiam, mas eu prefiro um mundo em que se proceda (eu disse proceda e não acredite) segundo essa ilusão.


Leitura de outra espécie de blogue: os diários de Tolstoy (numa edição de textos escolhidos – o conjunto dos diários é gigantesco e nunca foi traduzido integralmente para inglês - muito boa de R. E. Christian, Tolstoy Diaries , Londres, Flamingo, 1994).

Depois dos Cadernos de Camus fiquei com curiosidade de ver em que medida a mecânica diarística, narcisística, seja lá como for, dos blogues aparecia noutros textos semelhantes. Os mais semelhantes são obviamente os diários, e os cadernos de observações e notas, que funcionam como instrumentos de trabalho para futuros livros, ou como textos para serem publicados.

Não me interessava saber se os blogues prolongam os diários, mas se determinados mecanismos formais – a datação cronológica, a fragmentação do texto pelo tamanho da página, o esquecimento rápido, a interactividade, o papel da citação e contra-citação, o diálogo dentro de uma comunidade e para fora dela – estavam também presentes, num outro contexto tecnológico, em textos semelhantes pela sua natureza aos dos blogues.

Dos que vi nenhum texto é tão próximo dos blogues como os Cadernos de Camus. Se as suas entradas tivessem sido colocadas, dia a dia, por alguém que, como o Pierre Menard do Borges, o quisesse de novo escrever de forma mais perfeita “bloguisando-o”, ninguém distinguiria a diferença a não ser pela qualidade. Os diários de Tolstoy já são um pouco diferentes, mas também não tanto.

Tolstoy escreveu vários diários, durante praticamente toda a vida. Atribuía-lhes grande importância e chegou a dizer “o meu diário sou eu”. Disse “vários” porque, nalguns momentos, escrevia dois ao mesmo tempo, um dos quais intitulava de “secreto”. Esta classificação de per si coloca o outro diário como quase “público” – Tolstoy falava dele aos seus próximos e é provável que estes conhecessem algumas entradas.

Quando alguém escreve um diário para ser lido, o facto de as tecnologias de então implicarem um tempo de espera e maturação para as suas palavras virem a público, não introduz uma diferença qualitativa com os blogues quanto ao dilema público - privado. No entanto, a imediaticidade total da escrita dos blogues gera outras diferenças sem precedente, talvez a mais importante das quais seja o efeito do texto ser público e escapar ao seu autor mal ele o escreva, entrando numa rede que, ao mesmo tempo, o transporta para outros lados e o prende num presente circunstancial. Uma parte dessa rede é a citação e o comentário, o fio das palavras dos outros prendendo as nossas num efeito sem retorno. A etiqueta não escrita dos blogues, que “condena” a retirada de uma nota uma vez publicada ou a sua mudança significativa, tem a ver com a integridade dessa teia. Apagar uma nota, apagar um blogue rompe a teia.

Sem essa teia, sem essa escrita que implica sempre um hiper texto mesmo que virtual, daí os efeitos narcísicos, não havia blogosfera. (É por isso que tenho que reavaliar em relação a textos que anteriormente escrevi, a relação entre o interior e o exterior da esfera). O diário ideal , escrito para ninguém ler, não existe na blogosfera, nunca seria um blogue porque não era para ser publicado. A publicação, mal é feita, faz pertencer o texto aos outros. Tolstoy não defrontava estes efeitos.

(Continua.
O “continua” dos blogues, onde não “cabem” textos longos, é parecido com o dos seriados, histórias aos quadradinhos, e filmes em episódios, só que sem o suspense final).



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18.7.03


VER A NOITE

Antes da Lua aparecer, o Escorpião domina a noite. Pouca luz, está uma noite profunda, com três dimensões, todas negras.
A Lua mudará a noite, mas ainda é cedo nesta parte do mundo.



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DE LONGE PARA LONGE


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NOTAS CAMUSIANAS 6

Um leitor pergunta, sobre o Dom Juan de Camus (neste caso sobre todos) :

“porque é que Dom Juan é feliz?"

Porque não espera.

*

Outro leitor, Salvador Santos, escreve esta outra interpretação das primeiras “notas camusianas” sobre Dom Juan e a traição – Dom Juan “el burlador” :

"Chamo, por agora, à colação, a multiplicidade de D. Juans que existe na figura mítica do grande traidor. Assim, parece-me mais importante saber quem é D. Juan que divagar sobre a qualidade da sua traição ou até, como o faz, como não traidor.

Comecemos por afirmar que D. Juan seria arrogante, cruel e traidor por convicção ou natureza. Em última instância não seria este D. Juan o próprio representante da decadência social que tanto contestava? É ele quem o afirma em El Burlador de Sevilla:

Sevilla a voces me llama
el Burlador, y el mayor
gusto que en mi puede haber
es burlar una mujer
y dejalla sin honor.
Viva Dios, que le he de abrir,
pues salí de la plazuela!
Mas, ¿si hubiese otra cautela?...
Gana me da de reír (Tirso, I, 1448-57).

Ei-lo, o Übermensch.

(…) recordo e cito de memória Nietzsche cuja ideia matriz se aplica a D. Juan. Dizia o pensador que ao indivíduo nunca o elogio o sacia, uma vez atingido o seu objectivo, a paz significa para ele uma nova guerra e a vida deve ser um nunca mais acabar de aventuras cada vez mais perigosas. Ele não procura a felicidade mas apenas o gozo que o jogo lhe proporciona.

Não será por aqui que D. Juan, o traidor, tem ou não esperança. Ou sequer que se consiga avaliar do grau de traição em valor menor ou valor maior, no caso dele ou de outrem. Trata-se, outrossim, de verificar que até os traidores têm esperança depositado a juros num futuro em que nunca o jogo pare, nunca a guerra acabe."

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EARLY MORNING BLOGS 12

Nos blogues …

… as pessoas zangam-se muito, são muito piegas, são malcriadas, são gentis, são espertas, são espertinhas, são parvas, copiam, fazem de conta que não copiam, irritam-se, reconciliam-se, cuidam muito da sua identidade, dão-se todas aos estranhos, representam, representam-se, são azedas, são poucas vezes alegres, são tristes, são tristonhas, são fúteis, são totalmente fúteis, têm interesse, têm interesses, têm egos gigantescos, têm egos pequeninos, têm que “dizer-qualquer-coisismo” , deixam cair muitos nomes, deixam cair muitos livros, parece que lêem muito, lêem muito, não lêem quase nada, nunca vêem televisão, tem graça, são engraçadinhas, têm tribos, têm fúrias, têm territórios, estão sozinhas, estão tanto mais sozinhas quanto mais acompanhadas, têm alguns pais, começam a ter filhos, têm maridos, não têm amantes, têm “o que escrevo é para ti”, têm “o que escrevo é só para ti”, têm “o que escrevo é só para ti”, mas é só para mim , ou para o outro(a), não têm muita paciência, têm pressa de chegar a algum lado, têm a esperança de chegar a qualquer lado, estão convictos que não vão chegar a lado nenhum, têm quereres, têm birras, são meli-melo, são assim …

… porque se calhar é assim na vida toda.

Como os blogues não têm editor, a vida aparece sem ser editada.
Engano, puro engano. Funciona aqui um gigantesco editor, o monstro que está dentro.

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LUA DIMINUINDO, MARTE AUMENTANDO

Ver a noite.
Marte adianta-se e passa para a frente da Lua. Soltou-se.

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TÃO, INFELIZMENTE, PORTUGUÊS (Actualizado)

No ptBloggers, o seu autor escreve “vi-me ontem forçado a suspender as votações e os comentários” . e explica porquê:

além das manipulações das votações (que por serem de conhecimento público, não eram relevantes), começava a observar-se outro fenómeno, consequência dos referidos abusos. O facto da esmagadora maioria das pessoas dar “1 estrela” aos weblogs que achava sobre-avaliados e “5 estrelas” aos weblogs que julgava sub-avaliados, teve como resultado uma aproximação aos valores médios em todos os weblogs. Ou seja, em mais de 500 weblogs avaliados, a quase totalidade tinha 3 estrelas. A tendência aparentava ser a continuação deste sistema. Quando um weblog conseguia subir para 4 ou 5 estrelas, aparecia alguém que lhe dava “1″, para o fazer descer, acontecendo também o mesmo no sentido inverso ."

A descrição é eufemística. Não é bem o "julgamento" que está em causa, mas a niveladora inveja, a pecha nacional de que vale mais serem todos medíocres e quem sobe acima da mediocridade, solta uma multidão invejosa que faz tudo para o colocar no lugar.

*

José Carlos Santos conta esta história verdadeira:

"O texto do autor do ptBloggers, (…) fez-me lembrar um acontecimento que teve lugar quando eu fui aluno universitário. A Associação de Estudantes da minha faculdade organizou um inquérito à qualidade do ensino. Para cada cadeira na qual um estudante estivesse inscrito, havia um conjunto de características («facilidade de acesso à bibliografia», «preparação pedagógica do docente», etc) que ele deveria classificar numa escala de 1 a 5. Uma determinada cadeira era particularmente detestada e os alunos não estiveram com subtilezas; todos, sem excepção, classificaram com 1 valor cada uma dessas características da cadeira. Deveriam ter pensado um pouco mais no que estavam a fazer, pois um dos tópicos a classificar era «grau de dificuldade da cadeira»..."

Aviso: qualquer comentário que apareça assinado “Abrupto” ou JPP ou qualquer variante (com excepção de um colocado a dizer isto mesmo no ptBloggers, ) é falso. Não uso as caixas de comentários para escrever sobre seja o que for.



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17.7.03


DE LONGE PARA LONGE



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OS ESPIÕES DE CAMBRIDGE

Li referências elogiosas à série Cambridge Spies de que vi um ou dois episódios, o suficiente para perceber como é idealizado o que aconteceu. É verdade que, mais do que o costume, a série mostra o “estilo de vida” do grupo dos “apóstolos” transformados em espiões soviéticos. Mas a idealização, neste caso, é particularmente mistificadora porque prolonga a mesma complacência snobe que permitiu a longa sobrevivência do grupo. Esta gente matou – a lista dos agentes albaneses entregue aos soviéticos matou-os um a um, ou mandou alguns e as suas famílias para campos de concentração toda a vida.

Fossem eles nazis e a complacência seria nula. Mas a verdade é que se os “apóstolos” eram genuínos comunistas na sua juventude, em breve se tornaram cínicos que prezavam acima de tudo a snobeira de serem contra o establishment de uma forma irresponsavelmente perigosa. Entre as bebedeiras, o “catalogue raisonné” de Poussin, as gravatas certas, o tom upper class da má língua e os encontros clandestinos com o KGB, tudo parece fácil e exerce nos espectadores o mesmo efeito de atracção das fotografias do jet set em férias ou das casas dos ricos e poderosos. Olha-se para cima , quando se devia olhar para baixo.

É um traço sinistro do “comunismo” das classes altas inglesas, que se encontra também nas manas Mitford, levarem o ar blasé das conversas dos clubes de Oxford e Cambridge a um elevado grau de imaturidade social e politica. A idealização dos Cambridge Spies é isso mesmo: o elogio da irresponsabilidade.

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EARLY MORNING BLOGS 11


Guerra e Pas tem uma delicadeza humana que eu aprecio. Nem piegas, nem cínico, uma combinação muito difícil e nada dessa irritação tão à flor da pele que se encontra em muito blogues disfarçada de convicções. Não concordo com muita coisa que lá se escreve, mas ontem há duas notas, a 108 e 109, que mostram esses méritos.

Sobre a “Vergonha” vale a pena ler uma nota do Icosaedro com o mesmo título , e dois apontamentos em sentido diferente do Sócio[B]logue e do Terras do Nunca. Eu não quero acrescentar mais comentários ao que já disse porque penso que a partir de agora é contraproducente. Mas a nota do Sócio[B]logue intitulada “Os Anormais, o Humor e os Estados-de-Espírito: Apontamentos Breves “ mostra um risco que, há dias, o Pedro Mexia levantava de passagem sobre o papel dos meta-discursos. Eu penso que há ainda outro aspecto mais complicado que é a inerente justificação do real a partir da sua explicação, que é um problema muito próprio do discurso sociológico. Presos na explicação do real, que já explica também como a ele reagimos, que valor ético tem o que fazemos? O Terras do Nunca apercebeu-se disso e diz:

"Eu sei que talvez esteja a problematizar em demasia. E que o momento talvez exija o contrário, o da simplificação. Só ela conduz à acção."

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LUA

Subiu agora, vinda do lado direito (esquerdo), ainda lua de haikai. Antes estava noite escura, Escorpião à frente.

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OBJECTOS EM EXTINÇÃO 13

Alguns leitores desta série (o Paulo Querido do uuh o vento lá fora e o Mário Filipe Pires da Retorta ) sugeriram que ela se torne autónoma e colocada num outro blogue, incluindo fotografias dos objectos referidos, e ofereceram gentilmente a sua ajuda. De novo, insisto, é bem vinda. O material que recebo é tanto, que , a continuar assim , afogaria o Abrupto só de extinções, ( não deixem de mandar sugestões lá porque eu disse isto…) e por isso justificaria um tratamento próprio . Se estivessem de acordo poderíamos tentar fazê-lo em Setembro.

Vamos aos “objectos” em risco de se irem embora na memória:

1) “aquelas capas de pele que há uns anos serviam para levar livros ou blocos dentro. Não sei se tinham um nome específico. Recordo-me que, por foram tinham relevos com bustos do Eça, Herculano, Camões, etc. As melhores eram de pele, em cor natural, ou tintadas. Depois surgiram umas imitações em cartão a imitar pele. A última que vi, há uns cinco anos, era dessas. Não sei se o objecto está em extinção ou extinto. Sei que gostava imenso de reencontrar essas capas para lhes meter livros dentro.” (Terras do Nunca )

(acho que tenho uma , quando a encontrar envio-lhe)


2) o amplificador a válvulas ( e José Victor Henriques acrescentava “sábado, 13 de Julho, no DNA, vai perceber porquê.” Já percebi.)


3) "Coisas que se perderam
- as visitas ao zimbório da Basílica da Estrela;
- o sossego do litoral alentejano;
- as lagoas de Albufeira e Óbidos sem poluição

Coisas que ainda resistem
- as viagens de eléctrico (carreira 28) dos Prazeres à Graça;
- alguns jardins (ditos públicos) de Lisboa;
- o “encher dos olhos” em alguns miradouros de Lisboa
"

(M. Ribeiro Santos)

4) “a proposito de objectos desaparecidos:-o "ring" de borracha tão em uso nas praias! ; ainda joguei com um fabricado com "cabo" e forrado a lona no convez do "royal mail" "arlanza" numa viagem, no início dos anos 60, de de Londres para Lisboa.. tambem já passou à história,e. até era a opção mais barata.”

Mas o oposto, ideia que parece ter abandonado o Abrupto, que objectos continuam a ser usados numa mesma forma, parece um tema muito mais interessante para uma hipótese museologica. A referencia ao livro The Libraries of..lembrou-me The book on the bookshelf do Henry Petroski onde se faz a história das estantes...- aquele tão desejado acessório dos bibliófilos" (Abel Roldão)

5) a "Plateia"

"revista de cinema, ou antes de artistas, femininas, é claro. Que pobreza, dirá... mas que riqueza, naquele tempo! “ (Jose)

6) “O "rio Tejo como fonte de sustento"
.
Imortalizados por Alves Redol no seu livro Avieiros, estes nómadas do rio, como lhe chamou na época, deixaram de existir, por volta dos anos setenta, com a chegada da poluição industrial.
Desde o início do século XX que grupos de pescadores oriundos da Praia de Vieira de Leiria se deslocavam no Inverno para a borda d'água para a apanha do sável e da enguia. A minha família fê-lo durante quase meio século, garantindo assim o sustento dela. Hoje, mais de uma dezena de aldeias "palafitadas" de extraordinária beleza (antropológica se se quiser) permanecem desde Salvaterra de Magos até Vila Franca de Xira. Há meia dúzia de anos, fiz o caminho e fui conhecê-las. Encontrei velhinhas sentadas a olhar o rio que me disseram: "O meu pai era da Vieira, mas eu nunca lá fui, não queria morrer sem lá ir uma vez que fosse
". (João Paulo Feteira)


7) "um link com uma exposiçao online sobre o mesmo tema "things that don't want to die" do Pablo Garber "(Maria Sousa)


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16.7.03


LUZ

Ele escreveu a esta mesma precisa hora:

A terrível luz do fim da tarde quando trabalham as andorinhas e para o vento e começa a correr agua pelos infinitos e pequenos canais verdes.

Na ilha feita pela peste
.”

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UMM KULTHUM

Vi, pelo Portugal dos Pequeninos, que passou na pátria um documentário sobre Umm Kulthum (os franceses chamavam-lhe Oum Kolsoum ), uma das vozes mais extraordinárias do século passado. Escrevi sobre ela um dos textos que era de facto pré-blogue, como outro sobre Mohamed Abdelwahad, al Mousiqar quando ele morreu, há uns anos atrás. É natural que nas secções de “world music” encontrem discos de ambos. Mas não é folclore, é grande, grande música.

Encontram aqui uma página sobre Inte Omri, uma das mais belas canções da dupla Kulthum, a cantar, e Abdelwahab a compor.

São quarenta minutos de emoção pura, com toda a representação quase operática, que este tipo de música pressupunha. Kulthum, de pé, com um lenço na mão, à frente de uma orquestra de cabaret ( depois de concerto), tudo trajado a rigor, abrindo com a longa introdução orquestral, precedendo o momento culminante da primeira linha do poema, “Ragaa’ouni a’einaik el Ayam illi rahou” , “os teus olhos levam-me para os dias que já não voltam” .

Nestas canções este tem que ser o momento perfeito, a entrada da voz, às vezes precedida de pequenos sons anunciadores. A voz tem que se abrir na sala como um profundo lamento, vinda , no caso de um poema como este, de uma dor muito intensa, magoada. O poema é importante, linha a linha repetido, uma longa lamentação triste e nostálgica.

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EARLY MORNING BLOGS 10

Seria ingrato se não referisse o Desesperada Esperança , que se inspirou num livro meu.

Alguns dos melhores blogues que conheço são de jornalistas, e esses blogues tem contribuído para um dos debates que mais falta na sociedade portuguesa: o da qualidade da comunicação social. É um debate para que os blogues são particularmente apropriados (levantei esta questão há um mês, há um século na blogosfera, no texto “Discutir os blogues” ) não só pela sua imediaticidade, como pela liberdade de discussão dos constrangimentos corporativos, que são fortes. Pouco coisa há de mais violento do que uma polémica entre jornalistas ou entre jornais sobre o que cada um faz e não faz. Sei também por experiência própria, e por tê-lo proposto nos últimos vinte anos várias vezes a amigos jornalistas que me pedem sugestões, e a quem respondo sempre – façam espaços de crítica sobre a imprensa como os jornais acham natural fazer sobre a televisão. Sim, muito bem, é muito interessante e nunca avançou.

A imediaticidade, com todos os seus riscos, é importante neste caso porque a memória activa da comunicação é hoje muito curta e percebe-se melhor o que se está a discutir se tiver ocorrido ontem, ou anteontem. Blogues como o Ponto Média e o Jornalismo e Comunicação fornecem depois a distância reflexiva necessária. Imediaticidade e distância, só nos blogues.

Veja-se sobre este debate o Terras do Nunca , Guerra e Pas , Outro, eu e Donos da Bloga


Escrevi umas “Notas sobre o jornalismo político” que ainda estão incompletas, falta a nota sobre o Independente. A razão porque estão incompletas é que ainda não encontrei um texto que queria publicar antes de o actualizar, porque, contrariamente ao que acontece com outros jornais , o Independente ( de Portas e MEC) teve muita influência na fase inicial da blogosfera e merece um tratamento mais aprofundado.

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15.7.03


REMEDIAR A VERGONHA


Os protestos contra a exploração de um ser humano com problemas mentais no último programa Herman SIC estão em dezenas do blogues. Muitos jornalistas e pessoas com acesso a outros meios de comunicação não podem ter deixado de os ler, pelo que só por indiferença moral é que a questão não chega amanhã ao público da comunicação em geral. Eu sei que não existe essa indiferença e que há muita gente incomodada e indignada.

Ficava bem a Herman no próximo programa começar por calar o público, e dirigir-se aos espectadores dizendo uma coisa tão simples como isto : “na semana anterior ultrapassamos neste programa um limite que deve ser inultrapassável e tratamos mal um amigo nosso que tem problemas. Pedimos-lhe desculpas e pedimos desculpa ao público. Não se torna a repetir. " E depois segue o programa.

Não precisa de o nomear, e se o nomear use o seu nome normal e não uma alcunha qualquer. Francisco Balsemão se dissesse alguma coisa também lhe ficava bem.

Eu não tenho muito jeito nem para campanhas destas, nem para filantropias públicas. A última coisa que me passa pela cabeça fazer são campanhas moralistas e não voltarei ao assunto porque já disse o que tinha a dizer. Mas se um gesto deste tipo fosse feito talvez ficássemos todos um pouco melhor.

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SOBRE A TORTURA

Miguel Pinheiro , a propósito das “Notas Camusianas” sobre a traição, enviou-me este texto:

"Elio Gaspari está a publicar vários volumes sobre a ditadura brasileira e,
no segundo, intitulado A Ditadura Escancarada, toca ao de leve nesse tema,
com um ponto de vista interessante (aliás, deixe-me dizer-lhe, a
despropósito, que ele escreve onze páginas (da 20 à 31) brilhantes sobre a
tortura e suas consequências na ditadura, na oposição e na sociedade).

Na pág. 267, Gaspari fala da morte do guerrilheiro Carlos Marighella: ele
foi assassinado pelos homens do regime com base em informações dadas,
debaixo de tortura, por frades dominicanos. Aliás, os religiosos foram
obrigados a estar fisicamente presentes durante a armadilha, servindo de
isco.

Escreve ele: “A presença dos padres na cena da cilada contra Ernesto
(um dos nomes de código de Marighella) adicionou ao episódio uma ideia, tão
falsa quanto perversa, de traição degradante da figura mítica dos
guerrilheiros. ‘Beijo de Judas’, comentou o jornal O Globo dias depois”.

Numa nota de pé de página, Gaspari explica por que é que acha essa ideia
“falsa” e “perversa”: “Os dominicanos teriam traído Marighella se o tivessem
atraído para a cilada por terem mudado de opinião a seu respeito, ou ainda
se, ante alguma promessa de recompensa, visassem algum proveito pessoal ou
político. Um acto praticado diante do medo do retorno a suplícios
sistemáticos só pode ser considerado uma traição se o uso da tortura como
forma de extracção de confissões é aceite como parte do acervo moral e ético
da pessoa que declara traidor o preso submisso”.

Será que mesmo quem fala sob tortura pode, mantendo a sua integridade moral,
não trair – mesmo tendo traído? Pode haver uma traição efectiva (com
consequências como, neste caso, a morte do “traído”) sem haver uma traição
moral? E será que isso serve de consolo ao “traidor”?

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VERGONHA

A vergonha da exploração de um jovem atrasado mental no Herman Sic tem sido denunciada por vários blogues. Esta é uma matéria que deve ultrapassar a blogosfera para chegar ao mundo exterior. Se continuarmos todos a fazer barulho, chega.

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EARLY MORNING BLOGS 9

Quando se lê um número suficiente de blogues e, esforçando-me por sair da rede mais densa do mainstream, – aquele círculo de blogues que estão intensamente “linkados” uns com os outros e tem uma massa crítica suficiente para impor temáticas e aparecer como a face da blogosfera fora dela – apercebem-se as tendências e apercebe-se, acima de tudo, a enorme revolução do meio em Portugal nos últimos meses. Por isso é que o meta-bloguismo é natural, é uma reacção de auto-compreensão e auto-definição compreensível em tempos de tumulto.

Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo como é habitual numa revolução. Cito Lenine, já que os nossos amigos à esquerda tem grande pudor em o fazer, - e permito mais umas brincadeira humorísticas comigo inteiramente previsíveis - porque a frase aplica-se bem ao momento actual da blogosfera :

Só quando os "de baixo" não querem e os "de cima" não podem continuar vivendo à moda antiga é que a revolução pode triunfar.”

O que se está a dar é a democratização da blogosfera com a entrada de muita gente no duplo sentido: novos blogues e novos leitores. Por outro lado, a exposição exterior dos blogues introduziu diferentes critérios de avaliação que não coincidiam com os dominantes no seu interior.

Este efeito acabou com a blogosfera cosy , fortemente estratificada entre blogues a quem ninguém ligava nenhuma e blogues que através de um permanente diálogo, do auto-elogio, de um espírito de elite que ultrapassava claramente qualquer barreira ideológica, se apresentavam como primus inter pares. A distinção esquerda - direita era menos importante do que a distinção entre os amigos e os desconhecidos, entre “nós, os bons” e eles a turba ignara de mau gosto. A lista de “blogues de serviço público” no Blogo era o retrato desse mundo fechado que explodiu.

Era também natural que a maioria das pessoas se conhecessem umas às outras e fossem amigos. Quando, num meio de comunicação qualquer, todos se conhecem, ou todos tem a mesma idade, ou todos tem a mesma formação, ou todos lêem os mesmos livros, ou frequentam todos os mesmos restaurantes, é porque esse meio está na infância.

Tudo isto gera muitas tensões e uma certa irritação era inevitável (“os "de cima" não podem continuar vivendo à moda antiga”). Nalguns blogues mais antigos há uma clara evolução do blogue-optimismo para o blogue-cepticismo, que nada justifica, porque só um cego é que pensa que a blogosfera está pior porque não é um clube de vinte amigos. É natural que tenham vontade de migrar e para isso, por razões psicológicas, desvalorizam o que deixam para trás.

Um dos aspectos mais saudáveis da democratização da blogosfera é que hoje é mais difícil “competir” (tomem a palavra com a latitude que quiserem), ter influência, já há muitas vozes qualificadas, muito saber em muitas áreas, uma diversificação temática, de opiniões e de escritas, que a capacidade para se afirmar já não depende do elogio mútuo, mas de se ter ou não uma voz própria e persistência. Este último factor é o que mais falta na blogosfera, onde um mês é um século e se chega a conclusões taxativas lendo cinco ou seis blogues de um dia para o outro.

Eu sou liberal no sentido antigo, prezo a chuva e o mau tempo, a fúria e a calma das discussões, e gosto de ouvir muitas vozes diferentes. Como já disse e repito, na blogosfera, a “mão invisível” está dentro da cacofonia e para exercer o seu efeito positivo é suposto ser mesmo “invisível”. A blogosfera portuguesa passou de ter uma mão “visível” para ter uma “invisível” e foi, em primeiro lugar, o número que provocou esse efeito. Mais gente, mais vozes, tudo mais árduo. Esta é a revolução.


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MÊS DE MARTE (Actualizado)

O próximo mês é o mês de Marte nos céus e no Abrupto. Marte está mais próximo da terra do que jamais esteve em muitos milhares de anos, e os telescópios caseiros vão poder ver melhor o nosso vizinho planetário do que em qualquer outra altura.

No Abrupto haverá notas sobre a cor vermelha, a guerra, o sangue, a violência, a épica, os marcianos, os homenzinhos verdes, Percival Lowell , o Mars Global Surveyor, H. G. Wells. Tudo junto ou em separado. Podem começar a fugir.

*
R. P. do Hipatia teve a gentileza de enviar algumas indicações quanto à observação de Marte :

"o mês em que Marte estará mais perto da Terra será Agosto (pelas minhas contas, mais precisamente no dia 27, com uma magnitude -2,9 e a cerca de 56 milhões de kilometros). Para complementar, é a distância mais curta dos últimos sessenta mil anos, mais coisa, menos coisa. De qualquer maneira é mais fácil vê-lo em Julho, pouco acima da Lua, no sentido do quarto minguante, e com uma magnitude -1,8/-2,3. Em Agosto basta procurar a constelação de Aquário para ver o dito em todo o seu esplendor vermelho, passe a expressão."

SOM

O som da laguna à noite é regular, pequenas ondas sempre a bater como um relógio. Às vezes ao longe, um breve vapor, alguém que chega tarde, regressa sobre as águas. Alguém diz: não venhas tarde. A lua levanta-se sobre Il Redentore, lua de haikai, entre novas nuvens. Amanhã deve chover.


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14.7.03


NOTAS CAMUSIANAS 4 – SOBRE DOM JUAN

Sobre o Dom Juan, a pretexto da peça não escrita de Camus.

O que todos esquecem é que Dom Juan é feliz. É a felicidade de Dom Juan que é subversiva.

Como todos os homens felizes, Dom Juan transporta consigo uma porta aberta.

Está alguém à porta. “Entra” diz Dom Juan.


NOTAS CAMUSIANAS 5 – SOBRE A TRAIÇÃO

Os traidores sofrem de logomaquia.

Os traidores fogem dos espelhos, não se podem ver ao espelho.

Nos filmes italianos, as mulheres cospem nos traidores. Já vi acontecer isto uma vez.


*

As histórias de traição são muito curtas e muito duras. Cortantes.

Uma, verdadeira, ocorrida no início da década de cinquenta .

Dois presos encontram-se na cadeia, um intelectual e um operário. Ambos comunistas. O intelectual tinha falado, o operário era funcionário do PCP. O operário disse-lhe:

“Então filosofo? Filosofo de merda! Filosofo da traição! Estás bem?”

É assim que são as facadas. Sentiram?


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LUGARES DA DECADÊNCIA 2

Livraria Aurore , “antiquaire marxiste-leniniste”

A livraria “Aurore”, do nome do couraçado, é uma das últimas sobrevivências de uma espécie em extinção: a livraria marxista-leninista. Havia várias em Paris, uma atacada à bomba em 68 ou 69, uma em Londres muito conhecida a Banner Books and Crafts em Camden Town, etc.

Esta é em Bruxelas , no meu bairro, e foi uma grande surpresa encontrá-la nas minhas primeiras explorações pedestres. Fica em frente de outro alfarrabista com o nome curioso de Ecrit Vint, que, não tendo muitos fundos antigos, é boa para comprar mais baratos livros relativamente novos.

A livraria é pequena, pouco mais do que uma sala com uma pequena bancada inacessível. A porta é sólida, recordação dos tempos em que era suposto uma livraria destas ter portas blindadas. A sua montra, há muito tempo por pintar, está praticamente coberta de livros e só uma pequena parte deixa passar a luz para o interior. Já de fora se tem a impressão de um espaço muito pequeno, literalmente coberto de livros e outra parafernália política, discos, cartazes, revistas, pins, bandeiras, etc. Depois, lá dentro, há pouca luz e muito pó.

Há pouco espaço livre e quando se entra, à esquerda, o que sobra, é dominado por uma secretária antiga, sólida, atrás da qual está o dono da livraria, tão robusto e sólido como a secretária. É um flamengo atarracado e muito encorpado, (pode ser maior mas nunca o vi de pé), com uma enorme barba ruiva, talvez com mais de cinquenta anos um pouco disfarçados . Está muitas vezes de calções, não parece um intelectual, mas talvez um antigo operário. Espero que ele nunca leia isto, mas é muito parecido com um dos bóer que foi morto no Bophutatswana, num incidente nos últimos dias do apartheid sul-africano. O homem cumprimenta os seus raros clientes e recebe com frequência amigos, “camarades”, com quem conversa longamente sobre reuniões, comícios, manifestações, e outros “camarades” . Uma vez estava a falar de um encontro em que estiveram os “camarades portugais”, que deviam ser da UDP. Eu vou lá algumas vezes, quando os horários são compatíveis, porque a livraria está quase sempre fechada, compro bastantes coisas e ele deve achar que eu sou ou grego, ou espanhol e talvez português, as tribos emigrantes do bairro. Os árabes não vão lá, concentram-se nos cafés à volta.

A livraria foi “marxista-leninista”, mas há muito deixou de o ser. Hoje tem publicações anarquistas, conselhistas, “revisionistas”, e um número considerável de obras de Trotsky, o que nenhuma livraria dos bons tempos ultra-sectários sonharia ter . Depois há aquilo que se pode esperar. as obras de Lenine, os velhos livros da Maspero, Gorki, publicações sobre o movimento operário belga em flamengo, Henri de Man, discursos de Fidel, cartazes do Che, discos com a Varsovienne , a Carmagnole e a Internacional.

O que para mim tem mais interesse são as publicações anteriores aos anos sessenta. Para o meu trabalho são exactamente esses livros e folhetos os mais interessantes, porque praticamente nunca chegaram a Portugal. Textos de Thorez , Duclos, Garaudy do imediato pós-guerra, publicações periódicas dos partidos comunistas francês , belga, da Internacional nos anos trinta, livros sobre a Resistência, e as revistas literárias e “culturais” comunistas como as Recherches Internationales à la Lumiére du Marxisme ou a Litterature Soviétique .


O tempo gerou este ecletismo, à medida que o couraçado foi saindo do Museu da Revolução e entrando para o museu dos navios antigos. São apenas livros? Não só. É uma história terrível que está lá dentro, com um rastro de milhões de mortos, e o flamengo a velá-la, na sua pequena sala bruxelense, onde quase ninguém entra.

(Na série dos “lugares da decadência” está a 12 de Julho um texto sobre um casino em Baku)

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LUA

Lua japonesa, lua de haikai. Alguém a vê?

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VERGONHA

A utilização no programa de Herman de um jovem atrasado mental, é mais um degrau que se desce numa escada invisível para o vale tudo. O problema é que há quem ache engraçado. Estou mesmo a ver algum engraçado a fazer o comentário que há muitos “atrasados mentais” piores que lá vão e eu não protesto. A diferença está nas aspas e é uma gigantesca diferença. Experimentem trocar.

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13.7.03


NOTAS CAMUSIANAS 2 (Actualizado)

Paulo Azevedo faz a seguinte pergunta a propósito das anteriores considerações sobre a traição:

JPP : "Pedro parou à porta da traição. Como muitos dos homens do Novo Testamento mostrava a sua humanidade pela queda. Mas se continuasse a abjurar cairia na traição e a traição deixa uma mancha moral indelével."

Paulo Azevedo: “O que é que entende, neste caso, por 'continuar a abjurar'? 'Alargar' a renúncia ou insistir na abjuração feita? Por outro lado; será que a insistência na abjuração tem sempre como consequência o alargamento da renúncia e é isso que pode situar o abjurador às portas da traição?”

Vamos a um caso concreto que tem a ver com os interrogatórios da PIDE. Como em todos os casos concretos por detrás estão terríveis dramas pessoais. É uma coisa que convém não esquecer nunca, e que impede qualquer arrogância moral.

A PIDE (ou a Gestapo, ou a NKVD, ou o KGB) cometia violências sobre os presos para obter confissões. Não interessa agora saber de que tipo eram essas violências, se eram muitas ou poucas, se eram físicas ou psicológicas, - eram violências. Os presos, se confessavam, isso significava fornecer informações que ajudavam a polícia que fazia parte do regime que se pretendia combater. .Dessas confissões resultavam novas prisões e novas violências, muitas vezes sobre amigos e pessoas próximas. Isto durou quarenta e oito anos e destroçou muitas vidas.

O PCP teve desta situação uma experiência ímpar. Quem tiver curiosidade de ir mais longe encontra algumas reflexões na análise do texto, Se Fores Preso Camarada.. , na minha biografia de Cunhal, volume segundo.

A estratégia do partido face a esta situação evoluiu grosso modo assim:

- enganava-se a PIDE com uma historieta qualquer (esta era a atitude comum nos anos trinta) ; a polícia, como todas as polícias, não tinha dificuldade em perceber que estava a ser enganada e ia mais longe na violência, conforme lhe interessava e conforme a origem social do preso:

- o preso contava o que sabia e incriminava-se a si mesmo, ou confirmava o que a policia sabia , mas não dava elementos novos ; nos anos trinta este comportamento era aceitável e mesmo depois admitia-se como razoável, ainda que não se considerasse publicamente ser aceitável;

- a partir dos anos quarenta ou se falava ou não se falava ; podia não se falar negando toda a veracidade às acusações da PIDE, na maioria dos casos oriundas em confissões arrancadas a outros presos , ou afirmando-se a qualidade de comunista ou de opositor, seguida de uma negativa taxativa de fazer quaisquer outras declarações.

Aqui é que entra a questão da abjuração. Quando um preso seguia uma táctica de negar a sua qualidade de comunista ou opositor, afirmando nada ter a ver com as acusações, sendo inclusive obrigado a fazer declarações anticomunistas e ofensivas daquilo que realmente pensava, abria-se um espaço de colaboração com a polícia, uma situação de promiscuidade que levava, mais cedo ou mais tarde, a maioria dos presos a dizer tudo, a trair. Se o preso se dizia tão ferozmente anticomunista como podia ele recusar esta ou aquela pequena delação, esta ou aquela pequena colaboração com a polícia no local de trabalho. Era um terreno movediço e a polícia estava na mó de cima,

Quando um preso dizia, como os funcionários do partido eram aconselhados a fazer, “eu sou funcionário do PCP não tenho mais declarações a prestar” , a integridade psicológica do preso permanecia intacta e depois era apenas uma questão de resistir às violências. A PIDE quando já tinha torturado alguém e o preso tinha mantido o silêncio, muitas vezes aceitava a declaração e passava adiante sem repetir as torturas. Por isso era muito importante não fazer sequer uma declaração, por pouco importante que fosse, porque a partir daí a PIDE continuava a pressionar. Falar um pouco era apenas garantir mais torturas.


Não se caia aqui na simples dicotomia entre coragem e covardia. Esta era uma situação limite, em que o preso não tinha qualquer defesa, como dizia a PIDE “a lei não chegava lá” , estava solitário numa cela , acordado a qualquer hora, isolado, espancado, não sabendo o que tinha acontecido “lá fora” , insultado, com os seus familiares e amigos numa situação de risco.

Mas, como o PCP ( e Cunhal no seu texto percebeu), a abjuração era uma porta aberta à traição e quando mais se abjura mais perto se está de trair. A persistência na abjuração gera a promiscuidade com o inimigo, leva a uma identificação com ele. Há excepções , mas confirmam a regra.

*

Posteriormente Paulo Azevedo enviou-me o seguinte comentário:

"Penso que a contextualização que dá ao seu raciocínio é muito específica; sendo que o mesmo tema levantará, provavelmente, outras possibilidades de análise quando referidas a outras situações.
A identificação ao agressor de que fala no seu comentário é, na minha opinião, uma observação muito pertinente. Ao mesmo tempo que o agredido se identifica com o poder omnipotente do agressor para assim tentar controlar a angústia derivada da humilhação ou da constatação da sua fraqueza; tenta ainda neutralizar de forma eficiente o conflito moral gerado pela traição anterior, através do investimento num novo (suposto) vínculo de confiança. A catadupa de denúncias que se seguem (e de que nos fala no seu post) servem perfeitamente estes dois propósitos (poucas vezes conscientes)."



NOTAS CAMUSIANAS 3

Noutros planos, noutras traições, deixando agora estes exemplos reais para passar aos irreais.

Vale a pena analisar o “alívio do traidor” . O traidor pensa que escapa às circunstâncias da sua traição e ao que (ou a quem) traiu, aprofundando a sua traição, identificando-se cada vez mais com o objecto da sua traição, com as suas novas fidelidades. Puro engano. A traição não é mudança, não é evolução, mina por dentro. Manifesta-se pelos sentimentos larvares, pela melancolia do cansaço, pela nostalgia impotente, pela recordação constante de quando se era limpo e sem culpa e com esperança. Os traidores não têm esperança, porque desmereceram da que tinham. O passado persegue-os comendo-lhes as entranhas. Deixam de ter futuro, só passado e este é insuportável.

Falo dos grandes traidores, os pequenos passam bem.

Estudar os não traidores. Por exemplo Boécio e Dom Juan.

Dom Juan nunca traiu, permaneceu fiel a si mesmo, cantando a caminho do inferno.

O facto de Dom Juan não abjurar nem trair era o que mais incomodava os franciscanos. No projecto de peça de Camus, nunca terminada, os monges matavam Dom Juan e culpavam o Comendador. O objectivo era poderem dizer “Dom Juan converteu-se” .

Comentar aquilo de que Dom Juan não se queria “converter” .

O pai franciscano. - Vós não acreditais então em nada Dom Juan?

Dom Juan. - Sim, meu pai, em três coisas.

O pai. - Pode saber-se quais?

Dom Juan. - Creio na coragem, na inteligência e nas mulheres.

O pai. - Torna-se então necessário perder as esperanças em vós.

Dom Juan. - Sim, caso suponham necessário lamentar um homem feliz. Adeus meu pai.

O pai (já na porta). -Rezarei por vós, Dom Juan.

Dom Juan - Agradeço-vos muito meu pai. Pretendo ver nisso uma forma de coragem.

O pai (suavemente) - Nâo. Dom Juan, trata-se apenas de dois sentimentos que vós vos obstinais em desconhecer, a caridade e o amor.

Dom Juan. - Eu apenas conheço a ternura e a generosidade que são as formas viris dessas duas virtudes fêmeas. Mas adeus, meu pai.

O pai. - Adeus, Dom Juan.


(Camus, Cadernos, Lisboa, Livros do Brasil , s.d.)

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EARLY MORNING BLOGS 8


Abro com a nota que o Huuuu…. O vento lá fora do Paulo Querido fez sobre a Abrupto. Agradeço-lhe as palavras e as críticas “técnicas” que são também de conteúdo, visto que isso é inseparável neste caso. A riqueza das críticas e sugestões obriga a ler a nota original.

Eu dou muita importância a estas matérias até porque um dos aspectos que me interessa nos blogues é a sua novidade formal, o “diário” imediato e o modo como essa forma molda a escrita. Interessa-me também o aspecto comunicante que tem com outros mecanismos mediáticos: os artigos , os livros, etc. . Tenho estado a estudar HTML, o que nunca tinha feito, e visitado diferentes blogues , com diferentes plataformas, e apercebi-me das múltiplas possibilidades de melhorar. Mas aqui é que o tempo me limita.

Tenho usado no Abrupto de algumas experiências que têm mais a ver com o conteúdo do que com a forma, embora saiba que esta distinção “não tem conteúdo”. Experimentei fazer agendas regulares, textos in the making com contribuições interactivas, seriar as notas de modo a dar-lhes continuidade, usar um sistema como o do software para numerar os textos que vão mudando (1.0, 1.1, 2.0, etc.) , utilizar códigos com o sublinhado para distinguir modificações nos textos , puxar para a página visível, de forma recorrente, notas ou textos – como a prevenção sobre o correio do Hotmail - que queria que funcionassem como avisos, etc.

Mas em muitas delas encalhei na forma do blogue, na tendência irreprimível de atirar para um esquecimento rápido o que eu queria que ainda ficasse na lembrança, ou num esquecimento lento, na dificuldade em dar-lhe uma memória activa (passiva tem nos arquivos), e em manter a inter relação entre os próprios textos do blogue. Já para não falar da lentidão com as imagens, e as dificuldades de acesso ao Blogger que limitam a “imediaticidade” do meio.Não tenho dúvidas que é possível melhorar em todos estes aspectos, continuarei a estudar as possibilidades e agradeço e aceito a disponibilidade de Paulo Querido para me ajudar.


Dois blogues produzem uma escrita mediada, reflexiva, de leitura obrigatória não só sobre a blogosfera, como sobre a sociedade sem a qual nada se entende do que se passa por aqui: o Sócio[B]logue, que saudei desde o início, e o Avatares do Desejo . Vejam-se as últimas notas dos “avatares” que valem a pena.


Voltou o Latinista Ilustre que ninguém queria perdido nos círculos exteriores. Ainda não descobri o enigma maurrasiano, mas já pedi a um amigo que tem um amigo que tem um amigo que é especialista na direita francesa para saber o que são as enigmáticas iniciais.


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ADULAÇÃO BEATA POR LULA

Um caso de adulação beata por Lula é o artigo de Paulo Cunha e Silva , "Lulofilia" no Diário de Notícias de hoje. É um exemplo típico de "culto de personalidade", espécie que sobrevive à esquerda mais do que se pensa. Aliás lembra o que se escreveu sobre Fidel de Castro, antes deste ter caído do pedestal da "Revolución". Uma amostra da "Lulofilia" :

"Lula tem a dimensão do Brasil. É grande, embora baixo. É generoso. Tem piada. Tem ritmo. Tem samba. Tem um charme completamente desarmado e desarmante. É atarracado, mas irradia confiança. É o contrário de uma pop star ou de um top model. E todavia é uma pop star e um top model. É uma estrela popular e é um modelo de topo. Como se diria no Brasil, Lula é fashion. Ou então, é gente fina. Fica bem no salão mais sofisticado e no mais miserável bairro social. A sua dignidade é tão transbordante que dá para dar e vender. Lula empresta dignidade a qualquer espaço ou situação. E, ao fazê-lo, inaugura uma nova modalidade de fazer política. "

Mais nada? E o que é que sobra para Nosso Senhor?


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NOTAS CAMUSIANAS

Escrever umas considerações sobre a traição.

A relação entre a abjuração e a traição. Porque é que a abjuração é mais importante do que a traição. Ou porque é que a traição começa na abjuração.

A trivialidade da abjuração. É no momento em que quem abjura o faz com trivialidade, com sentimento de trivialidade, porque não é importante, que se abre o caminho da traição.

Abjuração de Pedro :

Depois de terem cantado o hino, foram para o monte das Oliveiras. Então Jesus disse aos discípulos: "Todos vós ficareis desorientados, pois está escrito: 'Ferirei o pastor e as ovelhas se dispersarão'. Mas, depois de ressuscitar, eu vos precederei na Galiléia". Pedro, porém, lhe disse: "Mesmo que todos fiquem desorientados, eu não ficarei". Respondeu-lhe Jesus: "Em verdade te digo: ainda hoje, esta noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes tu me negarás". Mas Pedro repetiu com veemência: "Ainda que tenha de morrer contigo, eu não te negarei". E todos diziam o mesmo.”

É nesta frase que está a chave : : "Ainda que tenha de morrer contigo, eu não te negarei". E todos diziam o mesmo.”

Todos diziam o mesmo” . Cristo nunca lhe disse “não me traias” , mas sabia que ele ia negá-lo.

Pedro é dos poucos que abjurou e depois não traiu, mas Pedro era “um homem de Pedra”. O Padre António Vieira no Sermão de S.Pedro explica a diferença :

Primeiro lhe chamou homem de pedra e depois lhe entregou as chaves, porque as chaves do Reino só em homens de pedra estão seguras. Os homens de barro quebram, os de pau corrompem-se, os de vidro estalam, os de cera derretem-se; tão duro e tão constante há-de ser como uma pedra, quem houver de ter nas mãos as chaves do Reino: Tu es Petrus, tibi dabo claves.

Pedro parou à porta da traição. Como muitos dos homens do Novo Testamento mostrava a sua humanidade pela queda. Mas se continuasse a abjurar cairia na traição e a traição deixa uma mancha moral indelével.

A principal destruição da traição é a do carácter. Não há carácter que sobreviva à traição. O traidor pode ser tudo, ter todas as qualidades, ter mesmo virtudes, mas, na volta da traição, perdeu a integridade, perdeu, mesmo que não o saiba, o respeito por si próprio.

Outro sinal da traição é o excesso de explicações, essa voz doentia de auto justificação, uma espécie de engano para consumo próprio. Todos os traidores sabem que traíram. Pedro salvou-se porque se arrependeu. Não se justificou.

*

Para além do caso de Pedro, a excepção.

No meu trabalho sobre a história portuguesa contemporânea, a questão mais delicada que se encontra é a da traição. Traição forçada pela violência, mas sentida como traição. É uma ferida que atravessa, invisível, muitos portugueses. Nós não os consideramos traidores, mas eles sentem que o foram. Talvez a maior violência que a PIDE jamais fez em Portugal foi exactamente gerar traidores, fazer de homens e mulheres íntegros, gente que se sente assim . Sobre este tabu, ainda ninguém escreveu.


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© José Pacheco Pereira
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