ABRUPTO

13.7.03


NOTAS CAMUSIANAS

Escrever umas considerações sobre a traição.

A relação entre a abjuração e a traição. Porque é que a abjuração é mais importante do que a traição. Ou porque é que a traição começa na abjuração.

A trivialidade da abjuração. É no momento em que quem abjura o faz com trivialidade, com sentimento de trivialidade, porque não é importante, que se abre o caminho da traição.

Abjuração de Pedro :

Depois de terem cantado o hino, foram para o monte das Oliveiras. Então Jesus disse aos discípulos: "Todos vós ficareis desorientados, pois está escrito: 'Ferirei o pastor e as ovelhas se dispersarão'. Mas, depois de ressuscitar, eu vos precederei na Galiléia". Pedro, porém, lhe disse: "Mesmo que todos fiquem desorientados, eu não ficarei". Respondeu-lhe Jesus: "Em verdade te digo: ainda hoje, esta noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes tu me negarás". Mas Pedro repetiu com veemência: "Ainda que tenha de morrer contigo, eu não te negarei". E todos diziam o mesmo.”

É nesta frase que está a chave : : "Ainda que tenha de morrer contigo, eu não te negarei". E todos diziam o mesmo.”

Todos diziam o mesmo” . Cristo nunca lhe disse “não me traias” , mas sabia que ele ia negá-lo.

Pedro é dos poucos que abjurou e depois não traiu, mas Pedro era “um homem de Pedra”. O Padre António Vieira no Sermão de S.Pedro explica a diferença :

Primeiro lhe chamou homem de pedra e depois lhe entregou as chaves, porque as chaves do Reino só em homens de pedra estão seguras. Os homens de barro quebram, os de pau corrompem-se, os de vidro estalam, os de cera derretem-se; tão duro e tão constante há-de ser como uma pedra, quem houver de ter nas mãos as chaves do Reino: Tu es Petrus, tibi dabo claves.

Pedro parou à porta da traição. Como muitos dos homens do Novo Testamento mostrava a sua humanidade pela queda. Mas se continuasse a abjurar cairia na traição e a traição deixa uma mancha moral indelével.

A principal destruição da traição é a do carácter. Não há carácter que sobreviva à traição. O traidor pode ser tudo, ter todas as qualidades, ter mesmo virtudes, mas, na volta da traição, perdeu a integridade, perdeu, mesmo que não o saiba, o respeito por si próprio.

Outro sinal da traição é o excesso de explicações, essa voz doentia de auto justificação, uma espécie de engano para consumo próprio. Todos os traidores sabem que traíram. Pedro salvou-se porque se arrependeu. Não se justificou.

*

Para além do caso de Pedro, a excepção.

No meu trabalho sobre a história portuguesa contemporânea, a questão mais delicada que se encontra é a da traição. Traição forçada pela violência, mas sentida como traição. É uma ferida que atravessa, invisível, muitos portugueses. Nós não os consideramos traidores, mas eles sentem que o foram. Talvez a maior violência que a PIDE jamais fez em Portugal foi exactamente gerar traidores, fazer de homens e mulheres íntegros, gente que se sente assim . Sobre este tabu, ainda ninguém escreveu.


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© José Pacheco Pereira
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