ABRUPTO

13.7.03


NOTAS CAMUSIANAS 2 (Actualizado)

Paulo Azevedo faz a seguinte pergunta a propósito das anteriores considerações sobre a traição:

JPP : "Pedro parou à porta da traição. Como muitos dos homens do Novo Testamento mostrava a sua humanidade pela queda. Mas se continuasse a abjurar cairia na traição e a traição deixa uma mancha moral indelével."

Paulo Azevedo: “O que é que entende, neste caso, por 'continuar a abjurar'? 'Alargar' a renúncia ou insistir na abjuração feita? Por outro lado; será que a insistência na abjuração tem sempre como consequência o alargamento da renúncia e é isso que pode situar o abjurador às portas da traição?”

Vamos a um caso concreto que tem a ver com os interrogatórios da PIDE. Como em todos os casos concretos por detrás estão terríveis dramas pessoais. É uma coisa que convém não esquecer nunca, e que impede qualquer arrogância moral.

A PIDE (ou a Gestapo, ou a NKVD, ou o KGB) cometia violências sobre os presos para obter confissões. Não interessa agora saber de que tipo eram essas violências, se eram muitas ou poucas, se eram físicas ou psicológicas, - eram violências. Os presos, se confessavam, isso significava fornecer informações que ajudavam a polícia que fazia parte do regime que se pretendia combater. .Dessas confissões resultavam novas prisões e novas violências, muitas vezes sobre amigos e pessoas próximas. Isto durou quarenta e oito anos e destroçou muitas vidas.

O PCP teve desta situação uma experiência ímpar. Quem tiver curiosidade de ir mais longe encontra algumas reflexões na análise do texto, Se Fores Preso Camarada.. , na minha biografia de Cunhal, volume segundo.

A estratégia do partido face a esta situação evoluiu grosso modo assim:

- enganava-se a PIDE com uma historieta qualquer (esta era a atitude comum nos anos trinta) ; a polícia, como todas as polícias, não tinha dificuldade em perceber que estava a ser enganada e ia mais longe na violência, conforme lhe interessava e conforme a origem social do preso:

- o preso contava o que sabia e incriminava-se a si mesmo, ou confirmava o que a policia sabia , mas não dava elementos novos ; nos anos trinta este comportamento era aceitável e mesmo depois admitia-se como razoável, ainda que não se considerasse publicamente ser aceitável;

- a partir dos anos quarenta ou se falava ou não se falava ; podia não se falar negando toda a veracidade às acusações da PIDE, na maioria dos casos oriundas em confissões arrancadas a outros presos , ou afirmando-se a qualidade de comunista ou de opositor, seguida de uma negativa taxativa de fazer quaisquer outras declarações.

Aqui é que entra a questão da abjuração. Quando um preso seguia uma táctica de negar a sua qualidade de comunista ou opositor, afirmando nada ter a ver com as acusações, sendo inclusive obrigado a fazer declarações anticomunistas e ofensivas daquilo que realmente pensava, abria-se um espaço de colaboração com a polícia, uma situação de promiscuidade que levava, mais cedo ou mais tarde, a maioria dos presos a dizer tudo, a trair. Se o preso se dizia tão ferozmente anticomunista como podia ele recusar esta ou aquela pequena delação, esta ou aquela pequena colaboração com a polícia no local de trabalho. Era um terreno movediço e a polícia estava na mó de cima,

Quando um preso dizia, como os funcionários do partido eram aconselhados a fazer, “eu sou funcionário do PCP não tenho mais declarações a prestar” , a integridade psicológica do preso permanecia intacta e depois era apenas uma questão de resistir às violências. A PIDE quando já tinha torturado alguém e o preso tinha mantido o silêncio, muitas vezes aceitava a declaração e passava adiante sem repetir as torturas. Por isso era muito importante não fazer sequer uma declaração, por pouco importante que fosse, porque a partir daí a PIDE continuava a pressionar. Falar um pouco era apenas garantir mais torturas.


Não se caia aqui na simples dicotomia entre coragem e covardia. Esta era uma situação limite, em que o preso não tinha qualquer defesa, como dizia a PIDE “a lei não chegava lá” , estava solitário numa cela , acordado a qualquer hora, isolado, espancado, não sabendo o que tinha acontecido “lá fora” , insultado, com os seus familiares e amigos numa situação de risco.

Mas, como o PCP ( e Cunhal no seu texto percebeu), a abjuração era uma porta aberta à traição e quando mais se abjura mais perto se está de trair. A persistência na abjuração gera a promiscuidade com o inimigo, leva a uma identificação com ele. Há excepções , mas confirmam a regra.

*

Posteriormente Paulo Azevedo enviou-me o seguinte comentário:

"Penso que a contextualização que dá ao seu raciocínio é muito específica; sendo que o mesmo tema levantará, provavelmente, outras possibilidades de análise quando referidas a outras situações.
A identificação ao agressor de que fala no seu comentário é, na minha opinião, uma observação muito pertinente. Ao mesmo tempo que o agredido se identifica com o poder omnipotente do agressor para assim tentar controlar a angústia derivada da humilhação ou da constatação da sua fraqueza; tenta ainda neutralizar de forma eficiente o conflito moral gerado pela traição anterior, através do investimento num novo (suposto) vínculo de confiança. A catadupa de denúncias que se seguem (e de que nos fala no seu post) servem perfeitamente estes dois propósitos (poucas vezes conscientes)."



NOTAS CAMUSIANAS 3

Noutros planos, noutras traições, deixando agora estes exemplos reais para passar aos irreais.

Vale a pena analisar o “alívio do traidor” . O traidor pensa que escapa às circunstâncias da sua traição e ao que (ou a quem) traiu, aprofundando a sua traição, identificando-se cada vez mais com o objecto da sua traição, com as suas novas fidelidades. Puro engano. A traição não é mudança, não é evolução, mina por dentro. Manifesta-se pelos sentimentos larvares, pela melancolia do cansaço, pela nostalgia impotente, pela recordação constante de quando se era limpo e sem culpa e com esperança. Os traidores não têm esperança, porque desmereceram da que tinham. O passado persegue-os comendo-lhes as entranhas. Deixam de ter futuro, só passado e este é insuportável.

Falo dos grandes traidores, os pequenos passam bem.

Estudar os não traidores. Por exemplo Boécio e Dom Juan.

Dom Juan nunca traiu, permaneceu fiel a si mesmo, cantando a caminho do inferno.

O facto de Dom Juan não abjurar nem trair era o que mais incomodava os franciscanos. No projecto de peça de Camus, nunca terminada, os monges matavam Dom Juan e culpavam o Comendador. O objectivo era poderem dizer “Dom Juan converteu-se” .

Comentar aquilo de que Dom Juan não se queria “converter” .

O pai franciscano. - Vós não acreditais então em nada Dom Juan?

Dom Juan. - Sim, meu pai, em três coisas.

O pai. - Pode saber-se quais?

Dom Juan. - Creio na coragem, na inteligência e nas mulheres.

O pai. - Torna-se então necessário perder as esperanças em vós.

Dom Juan. - Sim, caso suponham necessário lamentar um homem feliz. Adeus meu pai.

O pai (já na porta). -Rezarei por vós, Dom Juan.

Dom Juan - Agradeço-vos muito meu pai. Pretendo ver nisso uma forma de coragem.

O pai (suavemente) - Nâo. Dom Juan, trata-se apenas de dois sentimentos que vós vos obstinais em desconhecer, a caridade e o amor.

Dom Juan. - Eu apenas conheço a ternura e a generosidade que são as formas viris dessas duas virtudes fêmeas. Mas adeus, meu pai.

O pai. - Adeus, Dom Juan.


(Camus, Cadernos, Lisboa, Livros do Brasil , s.d.)

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© José Pacheco Pereira
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