ABRUPTO

14.7.03


LUGARES DA DECADÊNCIA 2

Livraria Aurore , “antiquaire marxiste-leniniste”

A livraria “Aurore”, do nome do couraçado, é uma das últimas sobrevivências de uma espécie em extinção: a livraria marxista-leninista. Havia várias em Paris, uma atacada à bomba em 68 ou 69, uma em Londres muito conhecida a Banner Books and Crafts em Camden Town, etc.

Esta é em Bruxelas , no meu bairro, e foi uma grande surpresa encontrá-la nas minhas primeiras explorações pedestres. Fica em frente de outro alfarrabista com o nome curioso de Ecrit Vint, que, não tendo muitos fundos antigos, é boa para comprar mais baratos livros relativamente novos.

A livraria é pequena, pouco mais do que uma sala com uma pequena bancada inacessível. A porta é sólida, recordação dos tempos em que era suposto uma livraria destas ter portas blindadas. A sua montra, há muito tempo por pintar, está praticamente coberta de livros e só uma pequena parte deixa passar a luz para o interior. Já de fora se tem a impressão de um espaço muito pequeno, literalmente coberto de livros e outra parafernália política, discos, cartazes, revistas, pins, bandeiras, etc. Depois, lá dentro, há pouca luz e muito pó.

Há pouco espaço livre e quando se entra, à esquerda, o que sobra, é dominado por uma secretária antiga, sólida, atrás da qual está o dono da livraria, tão robusto e sólido como a secretária. É um flamengo atarracado e muito encorpado, (pode ser maior mas nunca o vi de pé), com uma enorme barba ruiva, talvez com mais de cinquenta anos um pouco disfarçados . Está muitas vezes de calções, não parece um intelectual, mas talvez um antigo operário. Espero que ele nunca leia isto, mas é muito parecido com um dos bóer que foi morto no Bophutatswana, num incidente nos últimos dias do apartheid sul-africano. O homem cumprimenta os seus raros clientes e recebe com frequência amigos, “camarades”, com quem conversa longamente sobre reuniões, comícios, manifestações, e outros “camarades” . Uma vez estava a falar de um encontro em que estiveram os “camarades portugais”, que deviam ser da UDP. Eu vou lá algumas vezes, quando os horários são compatíveis, porque a livraria está quase sempre fechada, compro bastantes coisas e ele deve achar que eu sou ou grego, ou espanhol e talvez português, as tribos emigrantes do bairro. Os árabes não vão lá, concentram-se nos cafés à volta.

A livraria foi “marxista-leninista”, mas há muito deixou de o ser. Hoje tem publicações anarquistas, conselhistas, “revisionistas”, e um número considerável de obras de Trotsky, o que nenhuma livraria dos bons tempos ultra-sectários sonharia ter . Depois há aquilo que se pode esperar. as obras de Lenine, os velhos livros da Maspero, Gorki, publicações sobre o movimento operário belga em flamengo, Henri de Man, discursos de Fidel, cartazes do Che, discos com a Varsovienne , a Carmagnole e a Internacional.

O que para mim tem mais interesse são as publicações anteriores aos anos sessenta. Para o meu trabalho são exactamente esses livros e folhetos os mais interessantes, porque praticamente nunca chegaram a Portugal. Textos de Thorez , Duclos, Garaudy do imediato pós-guerra, publicações periódicas dos partidos comunistas francês , belga, da Internacional nos anos trinta, livros sobre a Resistência, e as revistas literárias e “culturais” comunistas como as Recherches Internationales à la Lumiére du Marxisme ou a Litterature Soviétique .


O tempo gerou este ecletismo, à medida que o couraçado foi saindo do Museu da Revolução e entrando para o museu dos navios antigos. São apenas livros? Não só. É uma história terrível que está lá dentro, com um rastro de milhões de mortos, e o flamengo a velá-la, na sua pequena sala bruxelense, onde quase ninguém entra.

(Na série dos “lugares da decadência” está a 12 de Julho um texto sobre um casino em Baku)

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© José Pacheco Pereira
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