ABRUPTO

7.10.03


IMAGENS

de ontem: as montanhas são de Carl Rottman e erguem-se sobre o Ebsee, que não se vê no fragmento. Suspeito que a montanha ao fundo seja o Zugspitz, que tem quase 3000 metros de altura. O quadro está na Nova Pinacoteca de Munique e foi pintado em 1825. O lago continua lá, como se pode ver nesta fotografia actual.
A outra imagem é de uma série de Sara Rossberg sobre adolescentes e vida urbana, exposta na Nicholas Treadwell Gallery de Londres, do início dos anos oitenta. Sobre Sara Rossberg há mais informação aqui.

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EARLY MORNING BLOGS 57

Um poema de Sophia de Mello Breyner (lembrança de Rita Maltez), em que se fala da “verdade da manhã”,que , para a manter límpida , chega por hoje.


"Quando brilhou a aurora, dissolveram-se
Entre a luz as florestas encantadas
Arvoredos azuis e sombras verdes,
Como os astros da noite embranqueceram
Através da verdade da manhã.

E encontrei um país de areia e sol,
Plano, deserto, nu e sem caminhos.
Aí, ante a manhã, quebrado o encanto,
Não fui sol nem céu nem areal,
Fui só o meu olhar e o meu desejo.
Tinha a alma a cantar e os membros leves
E ouvia no silêncio os meus passos.

Caminhei na manhã eternamente.
O sol encheu o céu, foi meio-dia,
Branco a pique, sobre as coisas mortas.
Mais adiante encontrei a tarde líquida,
A tarde leve, cheia de distâncias,
Escorrendo de céus azuis e fundos
Onde as nuvens se vão pra outros mundos.

Um ponto apareceu no horizonte,
Verde nos areais como um sinal.

Era um lago entre calmos arvoredos
Não bebi a sua água nem beijei
O homem que dormia junto às margens.

E ao encontro da noite caminhei.



Bom dia.

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6.10.03


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES



"PAPEL HIGIÉNICO E LARANJAS PODRES, O MESMO COMBATE!"

É frequente aparecer na comunicação social notícias do género "Os estudantes do Técnico manifestaram-se contra...". É um abuso de linguagem. Tirando algumas raras ocasiões em que de facto há uma mobilização apreciável, em geral os referidos "estudantes do Técnico", não passam de algumas dezenas num universo de aproximadamente 9000 estudantes. Muitas vezes fui surpreendido, tal como vários colegas meus, por apenas ter sabido de tais manifestações pelas televisões, porque o seu impacto no interior do Técnico é quase sempre nulo.

E chamar aqueles jovens de estudantes é também um pouco abusivo. Porque em geral os estudantes encontram-se muito ocupados nas salas de aula, nos laboratórios, bibliotecas, estudando, fazendo trabalhos, relatórios, tirando fotocópias, etc. Aqueles jovens são, muitos deles, estudantes com um estatuto especial, que podem andar o ano inteiro em festas por todo país, teoricamente em representação da instituição. Podem fazer isso porque para eles existe uma época especial para a realização de exames, realizada mais tarde, em que as provas são tipicamente mais fáceis. A época especial de exames apenas deveria ser dada em casos excepcionais, mas é utilizada abusivamente por estes estudantes, que não apenas têm exames mais fáceis mas muitas vezes se isentam de apresentar trabalhos ao longo do ano em várias cadeiras. Isto quer dizer que podem apresentar as mesmas notas que outros com 1/10 do trabalho!

Mas estes estudantes, nem com tanto tempo livre o aproveitam para se cultivar um pouco. Não sabem que o Técnico não foi criado à imagem da Universidade de Coimbra, mas mais como a sua antítese. E não vou aqui escrever o que disse Voltaire sobre a Universidade de Coimbra por respeito à instituição. Houve uma altura em que chegaram a colocar uma capa negra na estátua de Duarte Pacheco, sem se aperceberem da barbaridade que cometiam. Mas uma coisa é certa. Estas manifestações, apesar de não serem minimamente representativas, conseguem ser bastante efectivas na comunicação social - nada é fruto do acaso."


(Mário Chainho)

"Sou estudante do Instituto Superior Técnico, mais exactamente do 4º ano de Engenharia Mecânica, e ao ler o seu post "Papel Higiénico e Laranjas Podres, o Mesmo Combate" percebi imediatamente que lhe teria de responder, pois há muito que penso aquilo que acabou de escrever. Também a mim me causa confusão o facto de vários colegas meus aderirem a este costume ressurgente do traje, ainda por cima numa faculdade com pouca ou nenhuma tradição ou espírito académico como é o caso do Técnico. É difícil detectar um padrão, visto que há rapazes e raparigas, bons e maus alunos. Inclusivamente, alguns colegas e amigos meus com os quais me dou muito bem usam o traje. Por outro lado – e falo do Técnico - as tunas, nas quais se usa o traje, são um óptimo local para a integração social de muitos alunos, especialmente dos mais novos, os "caloiros".

Por isso, nada tenho contra os trajes em si, nem contra a "tradição". Considero- me de direita e liberal, e respeito por isso as tradições, de um modo geral. Mas há que ver as coisas em perspectiva. O traje, tal como o conhecemos hoje, começou a ser usado em Coimbra e durante séculos apenas aí foi usado. Os trajes e as praxes são de facto uma tradição Coimbrã e nada mais. É curioso reparar que até durante o Estado Novo (regime que abomino) tais práticas nunca foram encorajadas nas nossas Universidades. No Técnico e noutros sítios eram proibidas. Em Coimbra, devido ao peso da tradição, eram toleradas, mas não mais
que isso.

Então porquê este ressurgimento do traje e das praxes (umas benignas, outras animalescas) nos últimos anos, num país livre? Tenho pensado algumas vezes nisto e não tenho respostas definitivas. Mas penso que você pôs o dedo na ferida ao referir a "altura do varapau, das rixas, das esperas, dos bordéis canalhas, da contínua bebedeira e (…) da poesia ultra-romântica". Aliás, eu não chamaria a "isto" de oitocentista, mas de Miguelista, pois é mais exacto.
Sinto-me confuso com este fenómeno. Quase 30 anos depois do fim da ditadura, num tempo em que seria suposto os estudantes serem mais maduros, abertos ao mundo, tolerantes e curiosos do que no seu tempo (como aliás são, não sejamos pessimistas), é com desilusão que vejo tantos colegas meus a desenterrarem usos (o traje) e formas de protesto (as laranjas e o papel higiénico) que os mostram como uma versão suburbana e ciganola da fidalguia marialva do tempo da senhora D. Maria I. Embora respeite, acho de facto surreal ver colegas meus andarem orgulhosamente assim vestidos com pelas ruas de Lisboa (e de Portugal em geral) em pleno século XXI. Às vezes interrogo-me até sobre o que pensarão os alunos estrangeiros do programa Erasmus que em cada vez maior número vêm a Portugal para estudar. Espero que conheçam um mínimo de Eça e de Camilo para compreenderem com benevolência a razão de ser desta pulsão Miguelista que tomou conta desta gente.

Para finalizar, queria dizer que apesar deste triste espectáculo, seria injusto julgar o Técnico e os seus estudantes por estas poucas dezenas de marialvas modernos que organizaram o ridículo protesto das laranjas podres. A esmagadora maioria dos estudantes não anda assim vestida e suspeito mesmo que não se identifique com estes "novos" velhos costumes. O mais trágico é que ao optarem por este folclore para Telejornal ver, estas agremiações (habilmente dominadas pelos partidos) estão cada vez mais a hipotecar o respeito, o carinho e o apoio que a sociedade civil devia ter pelos universitários e fazendo perder cada vez mais a paciência aos Poderes para que estes aceitem uma relação séria e madura com os estudantes. Terá isto um fim?"


(João Daniel Ramos Ricardo)



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SOBRE A EDIÇÃO PORTUGUESA DE DESGRAÇA


O nosso editor reage mal sempre que uma edição da Dom Quixote é criticada, e isso é natural. Não gostou da comparação que fiz entre a edição portuguesa e a inglesa de Coetzee, que a sua editora teve o mérito de publicar. Mas agora, que vai ter que reeditar os livros por causa do Nobel, valia a pena corrigir alguns aspectos da edição portuguesa de Desgraça.

Para que fique registado, este é o texto de contracapa da edição portuguesa da Dom Quixote do Desgraça, de Coetzee:

Desgraça ~ o retrato de uma nova Africa do Sul e dos seus também novos problemas, um retrato que, em (última análise, nos fala da beleza e do amor. Um romance inteligente, fértil, calmo e brutal que confirma Coetzee como um dos grandes romancistas do nosso tempo.”

Ora se há coisa que o livro não é, é isto. Um dos críticos ingleses falou de “narrative darkness”, o que sintetiza muito bem o estilo de Desgraça e a sua história. “Calmo”? A escrita de Coetzee é depurada, não há uma palavra a mais, mas nada é “calmo” no livro.

“Beleza”? Num livro que explora exactamente a falta de beleza, a aridez, onde nada aparece como belo – paisagens desencantadas, personagens gastas, envelhecidas, no limite da fealdade física – é assim que Lucy , a filha da personagem principal David Lurie – é descrita. Tocada por uma certa fealdade, feiosa, como uma palavra terrível diz em português. .

“Amor”? Num sentido quase ontológico, não há livro que não fale de amor. Mas o que há em Desgraça, é “desgraça” , a perda de sentido de todas as relações, a usura da vida num momento de mudança social e política que se manifesta pela violência inscrita por todo o lado. Mesmo em actos como a aceitação do filho da violação (por parte de Lucy), há mais expiação do que amor. Há culpa, todo o livro está mergulhado em culpa, e por isso é que ele pode ser lido de forma “politicamente correcta” (que não fique, no entanto, a dúvida que o considero uma grande romance, sobre o qual escrevi quando ganhou o Booker Prize, e não na altura do Nobel).

A personagem principal recusa a culpa na questão da “conduta desapropriada” na universidade, mas aceita a culpa colectiva dos brancos. Aceita que na criminalidade haja uma espécie de vingança trágica pelas violências que o apartheid provocou na comunidade negra. Há metáforas do amor, o cão, por exemplo que tão bem ilustra a capa inglesa, mais expressiva do que a portuguesa. Mas olhem para a capa inglesa e vejam o mundo do romance, o cão ferido, os canos com ferrugem, a “narrative darkness”, a imensa tristeza da história.

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HORA QUINTA


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IMAGEM

de ontem é de um óleo de 1882, da autoria de Willem Roelofs, uma pacífica paisagem dos Países Baixos, com vacas e tudo. Por falar em vacas, Bruxelas, como Londres há uns tempos, está cheia de vacas coloridas pelas ruas, incluindo uma decorada com moules, uma verdadeira ofensa ao bicho. Alguém deve ter encontrado esta nova forma de vender "mobiliário urbano" e gastam-se milhões para alimentar a nostalgia do campo. Mais dia, menos dia, chegam as vacas a Lisboa.

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EARLY MORNING BLOGS 56

Continuam a chegar muitas letras de músicas, que, a seu tempo, entrarão para a nossa manhã. Hoje, para que, na simplicidade, brilhem mais as palavras, apenas duas entradas. Uma de Bob Dylan, enviada por Miguel Castro Caldas “cantada (…) em 1970, no album "selfportrait", em plena fase Country. Mas foi escrita por G. Lightfoot. Como não encontrei a transcrição da letra, transcrevo eu apenas a primeira estrofe (a mais bonita) “:

"in the early mornin' rain
with a dollar in my hand
and an aching in my heart
and my pocket full of sand
I'm a long way from home
and I miss my love one so
in the early mornin' raiiin
with nowhere to go
"

Outra, a primeira entrada em prosa, de V.S. Naipul, enviada por João Gundersen, “uma achega a essas horas para mim tão difíceis. "A house for Mr Biswas", a sua primeira casa em Port of Spain, já jornalista do "sentinel", mas ainda ligada aos Tulsis..."

"The house faced east, and the memories that remained of these first four years in Port of Spain were above all memories of morning. The newspaper, delivered free, still warm, the ink still wet, sprawled on the concrete, down which the sun was moving. Dew lay on trees and roofs; the empty street, freshly swept and washed, was in cool shadow, and water ran clear in the gutters whose green bases had been scratched and striped by the sweeper’s harsh broom’s. Memories of taking the Royal Enfield out from under the house and cycling in a sun still cool along the streets of the awakening city. Stillness at noon: stripping for a short nap: the window of his room open: a square of blue above the unmoving curtain. In the afternoon, the steps in the shadow; tea in the back verandah. Then an interview at a hotel, perhaps, and the urgent machinery of the Sentinel. The promise of the evening; the expectation of the morning."


Bom dia!

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O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES (Actualizado)

SOBRE A PALAVRA DE HONRA, OS EXEMPLOS VÊM DE CIMA…, ETC.

"Começo esta missiva pela citação de escrito seu no "abrupto":

« É mais fácil mudar os ministros do que mudar os hábitos sociais, e é por isso que estas ondas de indignação são hipócritas até à raíz dos cabelos. Só se consegue manter uma sociedade baseada nas cunhas quando essa mesma sociedade tem estes sobressaltos self- righteous. A onda de indignação faz parte do mesmo fenómeno, é parte do mesmo atraso, nasce da mesma massa das cunhas.»

De facto, demitido que está o ministro, enviada que vai ser a filha do outro para o estrangeiro, e reclamada por uns a inocência e a honra do pai, enquanto que por outros a sua cabeça, não ouvi ninguém insurgir-se contra a lei que legaliza a excepção (ou antes, as excepções).
Porque no fundo, o que o director geral fez foi dar um parecer de extensão, de uma excepção legal, à forma de selecção na entrada na universidade. E esse regime de excepção que previligia os filhos de emigrantes, os naturais da Madeira e dos Açores e os Palops, mesmo em cursos onde a pressão de entrada é violenta como no caso da Medicina, não é contestado por ninguém.
De facto, como muito bem diz, «a onda de indignação faz parte do mesmo fenómeno, é parte do mesmo atraso, nasce da mesma massa das cunhas» e feito o alarido, a excepção vai manter-se para que outros privilégios e cunhas possam continuar a acontecer.
Afinal, obrigar o contribuinte português a financiar a formação em medicina do filho de um ministro de Angola, Moçambique, Cabo-Verde ou Guiné, é muito mais "justo e democrático" do que permitir que a filha do ministro português se torne uma excepção em si mesma."


(Francisco Santos)


Estou como o Senhor, no meu tempo (não será em todos os tempos) a palavra de honra era (é) um valor, é um contrato feito entre quem a diz e quem a ouve. Selado pela atitude e configurado pela idoneidade dos intervenientes acto.

Subentendo que esse “posted” tem a ver com o “pormenor” político que nos assaltou na semana passada. Pormenor, entendo eu, que apenas tomou as dimensões porque a comunicação social fez dele um caso e, porque os envolvidos lhe deram oportunidade para isso. Não era um caso nacional (refiro-me às proporções que tomou), era, pelo que os envolvidos disseram um caso de honra, resolúvel em sede adequada.

Tem razão quando diz que as demissões constituem hoje, parece, uma banalidade, uma reacção que dá jeito no desconforto criado a uma figura pública.

Perdeu-se o sentido de ver no pedido de demissão um acto de coragem, um ponto final numa situação insustentável, que tem por base duas premissas:

- Ou se é acusado injustamente e, é a saída para manter uma coerência na acção, na idoneidade e na dignidade da pessoa. É justificada pela impossibilidade de continuar a desempenhar uma função por falta meios e de confiança.

- Ou se reconhece uma conduta infeliz e irreparável e, assume-se o erro.

Não vejo outra justificação para as demissões mas, a dúvida em relação a um acto praticado não o é certamente.”


(Rui Silva)


O problema não é a honra do ministro. O problema é que um requerimento feito por um ministro, a outro ministério, deverá ser respondido por outro ministro, ou será que agora um director geral ou lá o que é o homem responde a um ministro que não é o dele? Para além do que está dito podemos voltar ao velho dito que diz que “à mulher de César não basta ser séria”…”

(F. Oliveira Dias)


A propósito de "os exemplos vêm de cima..." fez-me recordar que uma das primeiras coisas que aprendi com o meu avô foi a não dizer palavra de honra. Dizia-me ele, na sua infinita sabedoria, que palavra só há uma.
Nunca se deve dizer palavra de honra, porque, continuava ele, dá a sensação que temos mais do que uma.
Fiquei perplexo quando ouvi o nosso ministro de N. Estr. utlilizar a sua palavra de honra.
Será que ele também a emprega nas reuniões a que assiste ?

E discordo da sua caracterização da nossa sociedade como mergulhada em hábitos de patrocinato e clientela. Alguma parte dela sim, mas não podemos ser tão radicais. Nunca na minha vida profissional ou pessoal "meti" uma cunha. E como eu muitos outros que conheço, anónimos portugueses.

E também não é verdade de se perdeu a medida: o ex-ministro da Educação não a perdeu.
A questão de fundo, prezado Dr. Pacheco Pereira, que se está a tornar demasiado óbvia, é que o Dr. Durão Barroso não consegue encontrar gente de qualidade para fazer parte do seu elenco governativo. Será porque não há ? Não, é porque não querem.
E este não querer é que é o verdadeiro problema
.”

(João Costa)

O problema é mesmo esse, "O Poder"! Porque é que um Ministro ou Director Geral tem "O Poder" de decidir quem entra na Universidade? Não deveria ser "apenas" a lei a funcionar?

Porque é que "O Poder" é tão apetecível para que Directores Gerais, Embaixadores e outros bem instalados na vida, ponham em causa o seu bem estar, o bem estar da sua família, o não serem conhecidos pela Comunicação Social, para irem trabalhar (muito) mais e ganhar (muito) menos?

"O Poder" deixa-nos com vontade de fazer algo... A capacidade de intervir na vida das pessoas concretas (não falo aqui do poder legislativo que esse, penso, ainda pertence à Assembleia da República).

Não seria muito mais fácil que "estas coisas" não dependessem dum despacho dum Ministro qualquer? Caramba, não é difícil entender o drama de uma aluna que, mesmo sendo filha de um colega do Ministro, até ficou prejudicada por mais uma alteração da mudança de residência do pai (teoricamente, para continuar a servir o país...). O que vale mais? Passar 6 anos a "passear" de escola em escola no estrangeiro ou "apenas" acompanhar o pai no 12º ano?

O mal, penso eu, é o Ministro ter "O Poder" de compreender a injustiça desta excepção à lei.

O mal, foi a filha do Ministro não se ter quedado mais um "anito" lá por Madrid, como fazem todos os outros, mesmo que, assim, as suas notas piorassem devido à destabilização emocional motivada por viver sem a família aos 16/17 anos.

Porque foi compreensivo, decidiu intervir! Assim, demitiu-se. O Estado Português é que, conforme dizem, fica a perder. No mínimo, ficará com uma "segunda escolha" de Durão Barroso.

Por mim, até para evitar futuras tentações, as leis deveriam ser mais claras, mais acessíveis a todos, até para evitar que, aqueles que têm "O Poder" de recorrerem ao Tribunal Constitucional e "O Poder" de verem os seus recursos a serem decididos em tempo "normal" (anormal para a velocidade da justiça portuguesa), possam ver as nossas leis "adaptarem-se" aos seus casos específicos. Eu, como o Ministro, o Bastonário, alguns deputados e "opinion makers", compreendo aquilo que muita gente passa em Portugal, com as previsões preventivas, sem saberem de que são acusados, quanto mais ainda presumíveis inocentes.

Mas estas prisões preventivas, tão longas, apenas aconteceram agora?

Foi só neste caso que houve um despacho deste tipo, motivado pela compreensão da situação?
Ou anda alguém por aqui a "mexer uns cordelinhos", tentando afectar a credibilidade deste Governo, que quer mudar muita coisa em pouco tempo?

Isto faz-me lembrar uma afirmação interessante que ouvi há pouco tempo: "Nós, os portugueses, achamos que tudo está mal! Tudo! No entanto, quando desafiados para a mudança..."


(NM)


Sou docente do superior, e esta história dos ministros deixou-me tão sensibilizado ao ponto de pela primeira vez escrever assim a alguém.
Pode até existir um buraco na lei. Mas como posso confiar em alguém que se aproveita dos buracos na lei ? É o contrário dos princípios éticos que tentoo passar aos meus alunos. A dignidade perdeu-se...totalmente. Estou triste, nem sequer revoltado. Triste apenas com este meu país que me envergonha todos os dias.”


(AP)

*

Críticas a estas notas do Abrupto encontram-se em Mata-Mouros e Bloguítica Nacional, entre outros.


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5.10.03


PALAVRA DE HONRA 2

Há uma alternativa, que se tornará popular, à palavra de honra: o detector de mentiras.

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PALAVRA DE HONRA

Um homem que dá a sua palavra de honra é como um homem que jura: as suas palavras valem mais do que palavras, são um acto decisivo em que ele coloca como penhor de si próprio, e da veracidade do que diz, a sua identidade. É um acto grave e sem retorno. Eu sou da escola em que se acredita quando alguém fala assim.

(O Latinista Ilustre lembra e bem que, mesmo no estado republicano e laico, esta afirmação da palavra tem valor jurídico.)

Reconheço que vivemos num mundo que tão pequeno sentido dá a estes valores (até porque muitos os desrespeitam com a boca cheia de grandes palavras) que, quando um homem, goste-se ou não, enuncia que a sua palavra é a sua honra parece uma trivialidade ou um expediente. Eu sinto um calafrio porque naquele momento é ele o forte e eu o fraco nas minhas dúvidas.

Posso estar a ser enganado e o homem que invoca a sua honra não a tem? Sem dúvida, mas prefiro pagar esse preço para que os homens possam continuar, intactos, a nomear a sua honra como último penhor. A civilização é feita destas coisas.

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HORA SEXTA


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IMAGEM

de ontem é familiar aos parisienses e aos turistas de Paris. Aquele homem, andando sozinho, como muitas vezes se anda, “L´Homme qui marche”, é uma ilusão, um trompe l’oeil, pintado numa parede da fachada sul da central do ar condicionado, ao lado do Fórum Les Halles. Vemos e não vemos, o que vemos não vemos, o que vemos não é o que vemos.

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EARLY MORNING BLOGS 55

Tanta coisa que acontece pela manhã! Que a “manhã” é um meme diriam os nossos darwinistas dwakinianos, e que o meme da manhã infectou inúmeras canções e poemas, é incontestável. Aqui vai uma parte da colheita em inglês, enviada pelos leitores do Abrupto.

João Pedro da Costa manda uma das suas “favoritas morning songs (….). É de Nick Drake, e é o tema que fecha o belíssimo Pink Moon (1971).”

From the morning

"A day once dawned, and it was beautiful
A day once dawned from the ground
Then the night she fell
And the air was beautiful
The night she fell all around.

So look see the days
The endless coloured ways
And go play the game that you learnt
From the morning.

And now we rise
And we are everywhere
And now we rise from the ground
And see she flies
And she is everywhere
See she flies all around

So look see the sights
The endless summer nights
And go play the game that you learnt
From the morning."



Pedro Cordeiro lembra “uma pérola”, de Leonard Cohen:


HEY THAT'S NO WAY TO SAY GOODBYE

"I love you in the morning, our kisses deep and warm,
your hair upon the pillow like a sleepy golden storm,
yes, many loved before us, I know that we are not new,
in city and in forest they smiled like me and you,
but now it's come to distances and both of us must try,
your eyes are soft with sorrow,
Hey, that's no way to say goodbye.

I'm not looking for another as I wander in my time,
walk me to the corner, our steps will always rhyme
you know my love goes with you as your love stays with me,
it's just the way it changes, like the shoreline and the sea, but let's not talk of love or chains and things we can't untie, your eyes are soft with sorrow, Hey, that's no way to say goodbye.

I love you in the morning, our kisses deep and warm,
your hair upon the pillow like a sleepy golden storm,
yes many loved before us, I know that we are not new,
in city and in forest they smiled like me and you,
but let's not talk of love or chains and things we can't untie, your eyes are soft with sorrow, Hey, that's no way to say goodbye.
"


E Pedro Brás Marques “Empty Skies” do Springsteen, do álbum 'The Rising' – “um álbum que está bem longe de ser uma boa safra do 'Boss', mas passa...


Empty Skies

"I woke up this morning
I could barely breathe
Just an empty impression
In the bed where you used to be
I want a kiss from your lips
I want an eye for an eye
I woke up this morning to the empty sky

Empty sky, empty sky
I woke up this morning to an empty sky
Empty sky, empty sky
I woke up this morning to an empty sky

Blood on the streets
Yeah blood flowin' down
I hear the blood of my blood
Cryin' from the ground

Empty sky, empty sky
I woke up this morning to an empty sky
Empty sky, empty sky
I woke up this morning to an empty sky

On the plains of Jordan
I cut my bow from the wood
Of this tree of evil
Of this tree of good
I want a kiss from your lips
I want an eye for an eye
I woke up this morning to an empty sky

Empty sky, empty sky
I woke up this morning to an empty sky
Empty sky, empty sky
I woke up this morning to an empty sky
Empty sky, empty sky
I woke up this morning to an empty sky"


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4.10.03


ANOS SESSENTA

Na entrevista que deu ao Público, a propósito do seu livro passado nos anos sessenta, Olivier Rolin diz :

Quando tínhamos 20 anos a felicidade não nos interessava profundamente…”

o que é, para a época, uma grande verdade.

O problema é que não era só a nossa, mas também a dos outros, que “não nos interessava profundamente”. O que nos interessava, aos estudantes e intelectuais, era a lógica fria das ideias, por isso pouca importância se dava ao sofrimento que essas ideias causavam nas pessoas comuns. A atracção dos intelectuais no século XX pelo comunismo tinha a ver com esse último conforto das ideias: vê-las desfilar “organicamente”, ou “dialecticamente”, ou “empurradas pelo vento da História” em função do que pensávamos, mesmo que, sob os “pés” das ideias, estivessem muitos mortos.

Única e importante diferença em Portugal (como na Espanha ou na Grécia): havia uma ditadura, logo uma moral de “resistência”. Noutra altura falarei dessa diferença.

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OU OS EXEMPLOS VêM DE CIMA, OU NÃO VêM CERTAMENTE DE BAIXO



Para se reformar uma sociedade mergulhada em hábitos de patrocinato e clientela, nos “conhecimentos” e não no mérito, na excepção à excepção “para além da leis”, uma sociedade pré-burocrática, é fundamental o exemplo vir de cima. Aliás, se não vier de cima, não vem certamente de baixo. Esta é uma regra simples, cuja enunciação e aplicação basta: este tipo de procedimentos não é aceitável, implica violação grave do exercício de funções, e daí que tenha consequências para os que são responsáveis. (Veja-se nota no fim)

É mais fácil mudar os ministros do que mudar os hábitos sociais, e é por isso que estas ondas de indignação são hipócritas até à raíz dos cabelos. Só se consegue manter uma sociedade baseada nas cunhas quando essa mesma sociedade tem estes sobressaltos self- righteous. A onda de indignação faz parte do mesmo fenómeno, é parte do mesmo atraso, nasce da mesma massa das cunhas.

Nos Jaquinzinhos há uma nota intitulada "Portugalidade", que explica à saciedade o que se passa

"Rodeado de amigos à mesa de um restaurante, dizia o médico:

"Não há maneira de dar a volta a isto! Estes gajos mal se apanham com algum poder, abusam, isto é só cunhas, favores aos amigos, esta porra está enraizada na sociedade! Olha lá, Zé, eu passo-te o atestado por mais 2 dias e assim podes juntar a quarta ao fim-de-semana, está bem?"



Nota final:

Não sei se, em casos como este, a demissão é aceitável; isto é difícil de discutir a quente, porque já se perdeu toda a medida. Mas que se está a dar uma banalização da demissão, está. À mais pequena coisa, ela é pedida, e à mais pequena coisa, ela é concedida. E depois há toda uma enorme injustiça: à luz desta história, apesar de tudo uma pequena história, que gravidade não teriam os procedimentos “Modernos”?

Onde está a medida? A única que existe é a pressão mediática. Eu, quando ouço alguém dizer que dá a sua “palavra de honra”, aceito-o, mas isso também são hábitos pré-burocráticos.

Está-se a criar uma noção de “culpabilidade objectiva”, que vem dos media (e que tem encontrado em Marcelo Rebelo de Sousa, ele próprio um barómetro dos media, obcecado com o “parecer”, uma voz ouvida) , que introduz na política o princípio da presunção da culpa. Esta forma moderna de cinismo é uma variante do populismo. As massas pedem a “castração”, os jornalistas dizem-lhes todos os dias que é da natureza da política mentir ou encobrir, e as vozes juntam-se.

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IMAGENS

De ontem e anteontem são completamente distintas. Anteontem, apareceu um fragmento de um típico “gabinete”, cheio de antiguidades gregas e romanas – reconhecem-se alguns vasos gregos e reproduções, ou originais, de pinturas romanas. É um detalhe de um quadro de Pietro Fabris, mas a maior parte da pintura não está lá. Na parte ausente, está o primeiro Conde de Seaforth, na sua casa de Nápoles, num concerto para os amigos. A um canto, com o seu pai, tocando um cravo portátil, um rapaz chamado Wolfgang Amadeus Mozart.

A pintura de ontem, um jardim com um gato no meio, era identificável pelo gato como sendo de Beatrix Potter.



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3.10.03


AS NOSSAS ELITES

"Nas universidades, está-se no início do ano escolar, pelo menos no que diz respeito aos alunos do primeiro ano. E, consequentemente, está-se na época da recepção ao caloiro. Trata-se de um espectáculo degradante que deveria ser obrigatório para todas as pessoas que não se cansam de apregoar a «generosidade» da juventude. Talvez ficassem vacinadas para toda a vida, a menos que adoptem o ponto de vista de Miguel Portas, segundo o qual as recepções ao caloiro são encorajadas pelo docentes universitários com o objectivo de inculcar o mais cedo possível nos novos alunos terror e subserviência para com os seus superiores hierárquicos.

Quando observo as recepções ao caloiro lembro-me frequentemente do castigo medieval que consistia em manter uma pessoa presa num local público, de modo que quem passasse poderia dirigir-lhe insultos, lançar-lhe excrementos, etc. A diferença é que os caloiros não estão fisicamente presos; são, isso sim, vítimas de coação psicológica. Acima de tudo, não consigo deixar de pensar que os estudantes que gastam tempo e energia a fazer isto aos caloiros em vez de os ajudarem a adaptar-se a um ambiente totalmente novo são provavelmente os mesmos que protestam por o governo não investir o suficiente nas universidades
."

(José Carlos Santos)


"Na Sexta fui-me matricular na Faup (Faculdade de Arquitectura da U.Porto) e....mesmo antes de saber a módica quantia que temos a pagar de propinas...deparei-me com um “ADMIRÁVEL MUNDO NOVO”:
Ao longe via apenas a agitação própria de mais um dia de matriculas.
No átrio...tudo mudou: repentinamente os meus olhos são assaltados por uma aterradora visão negra. Por momentos julguei ter-me enganado na faculdade...senti-me atordoado: morcegos!! Aquilo a que, apesar de tudo, me habituei a chamar de Escola, estava agora invadida de morcegos saltitantes que se passeavam irritante e alegremente perante os meus olhos indignados. Apesar do meu estado de revolta interior, bastante visível exteriormente, todos pareciam lidar naturalmente com a situação.
Entrei na livraria para comprar os impressos e lá estavam eles “ajudando os caloiros” a preencher papelada: após anos de clandestinidade deliberada, surgem como cogumelos com suas pastinhas negras a pregar os “valores da tradição”. Onde estavam eles no passado? Escondiam-se, porquê?
Aqui a tradição é outra...!!!ou pelo menos era.
A liberdade de expressão e o direito à diferença é um valor que muito prezo...HAJA LIBERDADE ATÉ PARA O HISTORICISMO E A ESTUPIDEZ!
Apesar da abertura de espírito e tolerância que devemos ter... não consigo ser indiferente a mais um corte nos elos que nos uniam à ESCOLA. ESCOLA DO PORTO_ “(...) dos atelieres, às tascas, à escola, um certo estilo de estar juntos, a solidariedade anti-burguesa, mais nos gostos, uma atmosfera culta e progressista como se podia no Porto, ao som da banda de música no coreto de S.Lázaro com gosto a doce da Teixeira.(...)” António Quadros
"

(Luís Reis)

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A MEMÓRIA DO “SULISTA, ELITISTA E LIBERAL”

Li os extractos que o Correio da Manhã publicou do livro de Luís Filipe Menezes, em que se conta um dos incidentes que marcou o Congresso do PSD no Coliseu, quando Fernando Nogueira e Durão Barroso se confrontaram: a intervenção atribulada do “sulista, elitista e liberal” .

Acho bem que Menezes tenha escrito o que escreveu e relatado a sua versão. Faz falta ao conhecimento público esta dimensão mais pessoal da acção política, que tão importante e decisiva é. Claro que o relato de Menezes tem um aspecto de ajuste de contas (embora ele hesite em nomear certas pessoas), e hiper-valoriza o seu próprio papel e o do incidente no resultado final do Congresso, que tem outras explicações, nem todas muito dignificantes. Mas, mesmo assim, vale a pena lê-lo, porque é, no essencial, subjectivamente verdadeiro, tanto quanto uma só pessoa, no meio daquele vendaval, podia testemunhar os factos que directamente o envolviam.

Sou das testemunhas mais próximas do incidente. Menezes falava contra mim, depois de uma intervenção que eu tinha feito, e de cujo conteúdo ele nada diz, pelo menos no Correio da Manhã. Recordo-me de preparar mentalmente a resposta ao “sulista, elitista e liberal”, dizendo a Menezes que ele se tinha enganado em quase tudo, porque eu era “nortista, democrata e liberal”, e “liberal” era, para os “nortistas”, uma grande palavra, que vinha de Garrett e D. Pedro, do 24 de Agosto e de Passos Manuel… E já que estamos numa de memória, ainda pensei em uma maldade, a qual certamente não diria em público. Quando, na resposta, chegasse ao Passos Manuel, acrescentava “que, pelo menos, pelos nomes das ruas do Porto devias conhecer…” ; coisas de Congressos.

Mas caíu-nos o céu ou o inferno em cima (mais propriamente, do Luís Filipe Menezes). Fui um dos que, no meio da barulheira, falei com ele, estava Menezes mudo e paralisado no meio do palco. No palco e fora dele, esteve para haver confronto físico, tal era o ambiente de tensão que se vivia.

Ao ler as recordações de Menezes, mais uma vez, tive a forte impressão de como tão pouco se sabe da história política dos últimos anos, pelo menos daquela que eu pude testemunhar e nunca chegou às páginas dos jornais. O domínio, no relato jornalístico, das “intrigas que são contadas”, absorvidas com uma osmose perfeita, é tal, que estas tomam o lugar da descrição factual.

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HORA DECIMA


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EARLY MORNING BLOGS 54

A Formiga explodiu, tornando-se o primeiro blogue a desaparecer com grandeur no imenso espaço do futuro. Que tenha sido uma formiga e não a "colónia" (a “antcolony” que assinava as notas) explica a explosão. Como é que uma formiga se transforma num indivíduo? Se uma formiga se comporta com individualidade, que perturbações profundas gera no comportamento colectivo de que ela é uma peça? E vice-versa?

O escritor que mais cedo percebeu estes dilemas foi Kafka. As suas formigas nunca ganhavam verdadeira individualidade, mas apercebiam-se do poder do grupo, da “colónia”, do “colectivo”, porque o podiam ver de fora, podiam ver o seu mecanismo porque eram vítimas dele.

Porque é que elas viam e as outras não? Se Kafka se limitasse a contrapor individualidade / sociedade, na tradição do seu tempo (por exemplo, no teatro de Ibsen), não teria sido tão inovador como é. Não. A formiga “perde-se” da colónia por acaso, por um destino tão cego como as regras do grupo. A formiga K. é processada por erro burocrático, e, quer no Processo, quer no Castelo, nunca verdadeiramente sai do labirinto porque não há, no seu término, qualquer liberdade, logo nenhuma individualidade é possível. No início do século XX, Kafka percebeu o poder colectivo da burocracia moderna, o poder do “enxame” e como a sua força anónima podia levar a momentos como a “solução final”.


Agora que a Formiga morreu de morte inatural, transcrevo aqui uma das citações mais interessantes da blogosfera, que o seu autor repetiu agora , mas que já lá tinha posto há muito:

Major Tom - If Control's control is absolute, why does Control need to control?

HAL9000 - ... Control needs time.

Major Tom - Is Control controlled by his need to control?

HAL9000 - Yes.

Major Tom - Why is Control need Humans, has you call them?

HAL9000 - Wait ! Wait! Time are lending me...; Death needs time like a Junkie needs Junk.

Major Tom - And what does Death need time for?

HAL9000 - The answer is so simple ! Death needs time for what it kills to grow in!


(Dead City Radio, William S. Burroughs / John Cale , 1990)

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2.10.03


HORA SEPTIMA


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O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES

A correspondência e a colaboração dos leitores permitiam fazer um blogue ao lado. Entre os temas que suscitaram mais correio, encontra-se a questão do Muito Mentiroso, seu significado e seu fim, as propinas e a obsessão higiénica dos protestos, e a questão europeia. Logo que possa, vou ver se consigo fazer uma síntese das opiniões recebidas, organizada por estes temas. Vou também tentar, ao fim de semana, tornar regular este “Abrupto visto por…”

SOBRE ESTA PEDRA

Sobre Aquela Pedra não se senta, hoje, Pedro mas João. Este Papa é uma das figuras marcantes do último quartel do século XX e, porventura, ainda do XXI.
Foi protagonista e espectador dos acontecimentos da época referenciada; talvez mais protagonista que espectador.
Não analisarei aqui aspectos espirituais nem teológicos, pois não disponho de cultura nem formação para tal. Contudo, como homem que acompanha os ventos da história, filtrados pelo que os “media” querem que eu conheça, tenho algumas opiniões que gostaria de partilhar consigo.
O papa protagonizou (protagoniza) um conceito de ecumenismo alargado, sem atender a credos nem raças, como talvez nenhum outro o tenha conseguido fazer. Sob o lema de divulgador do evangelho peregrinou pelo mundo inteiro, deixando uma mensagem simples: o amor pelos outros, quer dizer a paz, quer dizer uma maior justiça social.

Foi tão simples passar a mensagem. Mas será que conseguiu?
Parece que não, porque nós os homens gostamos de ouvir (nestes tempos ver o espectáculo de como, quem e onde se diz é um “valor” da nossa sociedade), mas normalmente só ouvimos e não elaboramos sobre o que ouvimos.
Contudo, o Papa insiste na mensagem.

A lucidez e a clareza com que o faz, contrastam com a tibieza dum corpo frágil.
Mostra aos “olhos do mundo” a decadência do físico, num crescendo que nos sensibiliza e que, penso eu, nos recorda o que acontece aos outros, talvez só aos outros. Não sei se pode ou quer renunciar, mas não creio em tal.

Para terminar direi que, neste aspecto, é um exemplo. Acredita no que diz, faz da palavra uma arma de amor. Será que nós, os outros, conseguiremos acreditar no que dizemos? Ou só dizemos?”


(Rui Silva)

SOBRE O GALEGO: “A DELICADA CAMELIA DA NOSA FALA

Extracto de um artigo publicado por Fernám Velho no dia 1/10/2003 intitulado “A delicadeza do idioma” :

A delicada camelia da nosa fala verá ferido o seu corpo e a súa beleza polo salitre escuro dun derradeiro inverno. Non hai moito soubemos que por primeira vez en Galiza o número de persoas maiores de 65 anos, a maioría falantes en galego, superaba o número de menores de 15, a maioría falantes en castelán. E do mesmo xeito soubemos que esta Nai Terra de noso presenta xa unha das taxas de natalidade máis baixas do mundo.

Aquel sabio que foi Florentino López Cuevillas chegou a referirse ao pobo galego como "pobo estraño'': un pobo que fai todo o posíbel por desaparecer e que -velaí o seu drama- non o consegue. ¿Que aconteceu no país que un día, na alta flor medieval, foi monolingüe en galego e tivo a máis alta proxección en Europa con Santiago de Compostela como unha das principais capitais culturais de Occidente? Se deixamos agora que a auga esborralle o castelo de area (o idioma), comezaremos a ser nada. Seremos devorados polo mar do esquezo. Seremos a penas o túmulo resultante do noso propio fracaso.”



NOMES DOS AVIÕES

E porque não baptizam os autocarros? Em vez do 21, podia ser "vou apanhar ali o Eça". Ou melhor, para não haver a possibilidade de esquecimento do nome, "vou ali apanhar o Zé Maria". ;-)”

(Nuno Figueiredo)

UM TEXTO DE RUSHDIE

Voltei a descobrir um texto do Salman Rushdie que não via há alguns anos. Foi escrito antes do ataque aos EUA, da recente guerra contra o Iraque e Afeganistão. É um texto político, mas também (e ainda bem) literário, uma carta escrita por Rushdie ao bébé número 6 mil milhões que nasceu no nosso planeta, sobre como crescer longe dos moralismos dogmáticos. Queria partilhá-lo com alguém que se interesse por ideias, por isso aqui vai....”

(Cláudia)

LOMBADAS DOS LIVROS

o que me faz escrever hoje é um fait divers. falo das lombadas dos livros. quando "browsamos" por uma livraria fora, dobramos ligeiramente o pescocinho para a esquerda para ler as lombadas dos livros em parada.de repente, somos acordados naquela viagem porque algumas lombadas têm o texto a ler ao contrário. se os editores soubessem como isso é perturbador..."

(Eduarda Maria)

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IMAGEM

de ontem é um fragmento de um quadro de Léon Spillaert, "Le Point de Chemin de Fer", data de 1911, e está no Museu Real de Belas Artes de Bruxelas. Se não me engano, o comboio da imagem é a segunda máquina a entrar nos fragmentos do Abrupto, acompanhando um navio perdido, algures num oceano a sério.

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PODER E ESTÉTICA

Este livro, que saiu agora em paperback (Frederic Spotts, Hitler and The Power of Esthetics, , Londres, Pimlico, 2003), é um excelente instrumento para discutir Riefenstahl, junto com um ensaio já antigo de Susan Sontag sobre a componente sadomasoquista do nazismo. Contrariamente à percepção corrente, os nazis davam muita atenção às artes e não eram propriamente os brutos ignorantes que se imagina.

Nazis e comunistas consideravam que a criação estética era a última legitimação do poder e mostraram uma grande capacidade de entender a modernidade, principalmente quando ela servia para a propaganda. Hitler e Staline interessavam-se pela arquitectura, o cinema e a música, e ambos patrocinaram o equivalente aos actuais “ministérios da cultura”, que nenhuma democracia imaginava ter antes de Malraux.

Habituados a seguir o pós-Malraux, via Lang, consideramos hoje natural aquilo que seria completamente bizarro numa democracia no tempo de Hitler e Staline: que um governo pudesse “dirigir” a cultura, sem que isso fosse entendido como propaganda.

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EARLY MORNING BLOGS 53

Bom retorno do Socio[B]logue , boas leituras no Almocreve das Petas, o mais regular dos blogues nocturnos, com um retrato fabuloso de Aquilino por Cardoso Pires.

Um dia, conto o meu encontro, na província profunda, com um padre saído vivo dos livros de Aquilino, e das refeições que comemos juntos (lá não havia capões, os dois capões que me recordo de Aquilino contar que constituíam um pequeno almoço paroquial, mas havia bola de carne, trutas genuínas, carne assada com batatas, onde a carne é carne e as batatas são batatas – tanta gente que nunca comeu uma batata verdadeira! -, mais do que um doce, café e aguardente), e de como ele me contava que enganava as mulheres da serra, dizendo “Vade retro mulieris” em vez de “Vade retro Satanás”, quando elas lhe pediam para benzer o gado…

EARLY MORNING SONGS: Da verdadeira antologia matinal que me enviou José Manuel Figueiredo, escolho três clássicos:

Good Morning Blues (Ella Fitzgerald)

"Good morning blues, blues how do you do
Good morning blues, blues how do you do
Babe, I feel alright but I come to worry you

Baby, it's Christmas time and I wanna see Santa Claus
Baby, it's Christmas time and I wanna see Santa Claus
Don't show me my pretty baby, I'll break all of the laws

Santa Claus, Santa Claus, listen to my plea
Santa Claus, Santa Claus, listen to my plea
Don't send me nothing for Christmas but my baby back to me
"

Mary In The Morning (Elvis Presley)

"Nothing's quite as pretty as Mary in the morning
When through the sleepy haze I see her lying there
Soft as the rain that falls on summerflowers
Warm as the sunlight shining on her head


When I awake and see her there so close beside me
I want to take her in my arms,
The ache is there so deep inside me

Nothing's quite as pretty as Mary in the morning
Chasing the rainbow in her dreams so far away
And when she turns to touch me I kiss her fingers so softly
And then my Mary wake to love and love again

And Mary's there in summer days or stormy weather
She doesn't care how right or wrong the love we share,
We share together

Nothing's quite as pretty as Mary in the evening
Kissed by the shade of night and starlight in her hair
And as we walk, I hold her close beside me
All our tomorrows for a lifetime we will share"


Good Morning Good Morning (Beatles)

Nothing to do to save his life call his wife in
Nothing to say but what a day how's your boy been
Nothing to do it's up to you
I've got nothing to say but it's O.K.
Good morning, good morning...

Going to work don't want to go feeling low down
Heading for home you start to roam then you're in town
Everybody knows there's nothing doing
Everything is closed it's like a ruin
Everyone you see is half asleep.
And you're on your own you're in the street
Good morning, good morning...

After a while you start to smile now you feel cool.
Then you decide to take a walk by the old school.
Nothing has changed it's still the same
I've got nothing to say but it's O.K.
Good morning, good morning...

People running round it's five o'clock.
Everywhere in town is getting dark.
Everyone you see is full of life.
It's time for tea and meet the wife.
Somebody needs to know the time, glad that I'm here.
Watching the skirts you start to flirt now you're in gear.
Go to a show you hope she goes.
I've got nothing to say but it's O.K.
Good morning, good morning..."


Bom dia.

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1.10.03


SOBRE ESTA PEDRA

O Papa está a fazer uma coisa muito difícil, em que o “corpo é que paga”. Está a morrer diante de nós, depois de envelhecer diante de nós, restituindo a uma parte da vida, que escondemos em lares sórdidos para nosso conforto, uma dignidade essencial. É uma opção que muitos não compreenderam, porque têm o culto da juventude e da eficácia, da energia e da vitalidade, e não perceberam a última lucidez deste homem – a de nos devolver a integridade da vida toda.

O Papa é um dos homens de estado com maior influência na história do século XX, e, junto com Reagan, acabou com o império soviético. Mas não se ficou por aí: devolveu, pelo exemplo, à Igreja católica, uma imagem pública espiritual, que a burocratização do papado tinha perdido nos últimos séculos. A Igreja vai torná-lo santo rapidamente, mas desta vez o milagre está a ver-se todos os dias.

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ESTADO DO ABRUPTO (Setembro 2003)

Setembro foi o mês do Guiness. Mês com maior número de visitas (mais de 100.000 “pageviews” e 60.000 visitas), dia com maior número de visitas (23 de Setembro, com mais de 6500 “pageviews”), média por dia de 4100 “pageviews” e mais de 2600 visitas, tudo o que possam imaginar.

A esquizofrenia dos dois contadores acentuou-se, por razões que desconheço, para além da diferença da data de partida. Segundo o Sitemeter, o Abrupto tem neste momento mais de 286.000 “pageviews” , a caminho das 300.000.

A mais importante mudança está nos 667 “imbound blogs” e nos 938 “inbound links” na Technorati. . Se a lista dos Technorati Top 100 mundial estivesse actualizada, o Abrupto entraria para o fim, seria o 97. Exultate, jubilate. Sempre é um produto português numa lista de 100 em um milhão, numa pequena blogosfera, escrito em português. Vá, aqui também não se fala de país, mas de pátria, até porque tantas vezes se está longe.
Obrigado.


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HORA UNDECIMA


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ESTRANHEZA

de voar no “Natália Correia”. Não me importo de voar no “Alexandre Herculano”, no “António Sérgio”, no “Humberto Delgado”, mas na Natália, que eu conheci viva e fresca, e depois cansada e gasta, como o tempo nos fará a todos, levou-me a querer mudar de avião. Já não há respeito, na morte fazem-nos tudo, até Airbus.

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EARLY MORNING BLOGS 52

Voando sobre um ninho de blogues, encontrei um retrato de como o tempo passa sem darmos por ela, no quotidiano da Memória Inventada ; vi a chuva que invade a pátria no quadro de Caillebotte, que vem no Salmoura ; e acompanhei uma família portuguesa na ida à neve pelo Gato Fedorento, quando

um português de classe média, média-alta, paga mais de cem contos por semana para experimentar viver como um português de classe baixa.”

Se fosse só na neve….

EARLY MORNING SONGS: estão-se a tornar tão populares como foram os “Objectos em extinção”, antes destes passarem, eles próprios, à extinção.

Rui Almeida incluiu no seu blogue "um contributo para a colecção de "early mornig blues" (...) Os Led Zeppelin são uma das minhas descobertas da adolescência (…), num tempo em que os revivalismos ainda não estavam na moda, mas que me foi proporcionada pela convivência com pessoas da sua geração.”

Petronius, o Árbitro das Elegâncias , lembra, para quem não tivesse dado por isso, que a letra dos Alabama 3, álbum Exile on Coldharbour Lane, faixa “Woke Up This Morning”, que já aqui se publicou, é que abre os Sopranos, na viagem de Tony a caminho de casa. Lembram-se?

"You woke up this morning
The world turned upside down,
Things ain't been the same
Since the blues walked into town.
You've got that shotgun shine.
Born under a bad sign.
With a blue moon in your eyes
."

José Manuel de Figueiredo mandou-me uma verdadeira antologia matinal. Aqui vai um exemplo de Sinatra (depois dos Sopranos fica bem) :

In The Wee Small Hours Of The Morning

When the sun is high
In the afternoon sky
You can always find something to do
But from dusk til dawn
As the clock ticks on
Something happens to you

In the wee small hours of the morning
While the whole wide world is fast asleep
You lie awake and think about the girl
And never even think of counting sheep

When your lonely heart has learned its lesson
You'd be hers if only she would call
In the wee small hours of the morning
That's the time you miss her most of all

When your lonely heart has learned its lesson
You'd be hers if only she would call
In the wee small hours of the morning
That's the time you miss her most of all"


Renato Martins envia-me algumas sugestões em português. Uma delas é de Chico Buarque (também cantado por Caetano Veloso - Qualquer coisa, 1975) de 1969

Samba e amor

"Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã
Escuto a correria da cidade, que arde
E apressa o dia de amanhã

De madrugada a gente ainda se ama
E a fábrica começa a buzinar
O trânsito contorna a nossa cama, reclama
Do nosso eterno espreguiçar

No colo da bem-vinda companheira
No corpo do bendito violão
Eu faço samba e amor a noite inteira
Não tenho a quem prestar satisfação

Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito mais o que fazer
Escuto a correria da cidade, que alarde
Será que é tão difícil amanhecer?

Não sei se preguiçoso ou se covarde
Debaixo do meu corbertor de lã
Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã"


*

Bom dia.

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OUTRA IMAGEM

que, dada a magreza das notas, ainda se vê aqui em baixo , é parte de uma natureza morta de Georg Flegel de 1635. Quando , daqui a uns dias, eu colocar outra parte se verá como a intimidade acolhedora do pão, do vinho e do alho fancês, é enganadora e uma ameaça paira sobre a natureza. A da morte.

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© José Pacheco Pereira
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