ABRUPTO

6.10.03


SOBRE A EDIÇÃO PORTUGUESA DE DESGRAÇA


O nosso editor reage mal sempre que uma edição da Dom Quixote é criticada, e isso é natural. Não gostou da comparação que fiz entre a edição portuguesa e a inglesa de Coetzee, que a sua editora teve o mérito de publicar. Mas agora, que vai ter que reeditar os livros por causa do Nobel, valia a pena corrigir alguns aspectos da edição portuguesa de Desgraça.

Para que fique registado, este é o texto de contracapa da edição portuguesa da Dom Quixote do Desgraça, de Coetzee:

Desgraça ~ o retrato de uma nova Africa do Sul e dos seus também novos problemas, um retrato que, em (última análise, nos fala da beleza e do amor. Um romance inteligente, fértil, calmo e brutal que confirma Coetzee como um dos grandes romancistas do nosso tempo.”

Ora se há coisa que o livro não é, é isto. Um dos críticos ingleses falou de “narrative darkness”, o que sintetiza muito bem o estilo de Desgraça e a sua história. “Calmo”? A escrita de Coetzee é depurada, não há uma palavra a mais, mas nada é “calmo” no livro.

“Beleza”? Num livro que explora exactamente a falta de beleza, a aridez, onde nada aparece como belo – paisagens desencantadas, personagens gastas, envelhecidas, no limite da fealdade física – é assim que Lucy , a filha da personagem principal David Lurie – é descrita. Tocada por uma certa fealdade, feiosa, como uma palavra terrível diz em português. .

“Amor”? Num sentido quase ontológico, não há livro que não fale de amor. Mas o que há em Desgraça, é “desgraça” , a perda de sentido de todas as relações, a usura da vida num momento de mudança social e política que se manifesta pela violência inscrita por todo o lado. Mesmo em actos como a aceitação do filho da violação (por parte de Lucy), há mais expiação do que amor. Há culpa, todo o livro está mergulhado em culpa, e por isso é que ele pode ser lido de forma “politicamente correcta” (que não fique, no entanto, a dúvida que o considero uma grande romance, sobre o qual escrevi quando ganhou o Booker Prize, e não na altura do Nobel).

A personagem principal recusa a culpa na questão da “conduta desapropriada” na universidade, mas aceita a culpa colectiva dos brancos. Aceita que na criminalidade haja uma espécie de vingança trágica pelas violências que o apartheid provocou na comunidade negra. Há metáforas do amor, o cão, por exemplo que tão bem ilustra a capa inglesa, mais expressiva do que a portuguesa. Mas olhem para a capa inglesa e vejam o mundo do romance, o cão ferido, os canos com ferrugem, a “narrative darkness”, a imensa tristeza da história.

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© José Pacheco Pereira
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