ABRUPTO

2.8.03


UMA VELA

Aqui, fica-se sempre. Como a vela que Yuri observou na rua, num principio de noite russa, tão precoce, tão cedo e tão tarde. Como no poema de Pasternak que vem no Dr. Jivago, que traduzi a seguir. O poema resulta de um olhar casual:

Quando passavam na rua Kamerger, Yuri reparou numa vela que tinha derretido uma abertura na camada de gelo de uma das janelas. A luz parecia querer dirigir-se para a rua, quase conscientemente, como se estivesse a observar as carruagens que passavam ou esperando por alguém.
“Uma vela arde na mesa, uma vela arde …” murmurou para si próprio – o princípio de alguma coisa confusa, informe, que esperava que assumisse uma forma. Mas nada lhe surgiu


O que mais gosto no poema é o toque chekoviano, algo que só a literatura russa do principio do século XX era capaz de dar, uma delicadeza infinita a tratar das coisas humanas, sem exageros ou dramas, só a frase simples e leve e terrível. Nos momentos mais difíceis, quando tudo soçobrava à nossa volta, lá ficava a vela ardendo na fronteira entre o quarto e a rua, na “noite de Inverno”. A presença da vela é a última esperança, a da persistência.


Todas as tempestades
Cobrem a terra.
A vela arde em cima da mesa
A vela arde.

Como no Verão, as traças são empurradas
Para a chama,
Os flocos de neve batem
Contra a janela.

No vidro, anéis brilhantes de neve
E fios de água escorrem.
A vela arde em cima da mesa
A vela arde.

No teto iluminado
As sombras oscilam.
Braços e pernas,
Cruzados pelo destino.

Duas botas caem no chão
Fazendo barulho,
E lágrimas de cera
Tombam no vestido.

O nevoeiro de neve
Não nos deixa ver.
A vela arde em cima da mesa
A vela arde.

Um sopro vindo do canto
Faz tremer a vela,
Duas asas cruzam-se
Como num anjo.

Nevou muito durante Fevereiro
Como é costume.
A vela arde em cima da mesa
A vela arde.

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VERÃO ANTIGO


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A CATÁSTROFE DO DIA SEGUINTE É SEMPRE MAIOR DO QUE A DO DIA ANTERIOR

Não obtenho qualquer informação dos noticiários da comunicação social, em particular nas televisões, sobre os fogos. O mesmo já acontecia nos anos anteriores. Desde que começaram os fogos, os do dia seguinte são sempre piores do que os do dia anterior. É a única constante. Para além disso é sempre tudo uma “catástrofe”, sempre tudo descrito de uma forma tão hiperbólica, tão dramática, tão excitada, que, a uma dada altura, as palavras estão tão gastas que não servem para nada. Não há dados objectivos, áreas, mapas, dimensões, é tudo a olho. A combinação entre a excitação para o espectáculo, a ignorância daquilo que se fala, e a lógica do sempre novo, sempre maior, sempre mais dramático, destrói qualquer conteúdo informativo.

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FÍSICA E MATEMÁTICA – NOVOS COMENTÁRIOS ADICIONADOS NA 2ª série

Há novos comentários adicionados na 2ª série um pouco mais abaixo no blogue. O debate sobre a educação cíentifica é um dos mais importantes que se pode ter no Portugal de hoje e a qualidade e o conteúdo das intervenções dos leitores do Abrupto demonstram essa necessidade. Os textos são mais longos do que o habitual para este meio, mas o seu interesse justifica o agrupamento numa entrada única.

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VER A NOITE - INCÊNDIO

Tenho um incêndio a quinhentos metros, atrás de uma curva de estrada , numa ravina coberta com mato. Não oferece perigo nem a pessoas, nem bens porque está uma noite sem vento. Os bombeiros não terão dificuldade em impedir que atravesse a estrada. Com vento seria indomável e subiria sem tréguas.

Um enorme clarão vermelho vulcânico ilumina a própria nuvem que produz. Ouve-se crepitar e o cheiro intenso penetra em tudo. É irónico que este festival de destruição produza um cheiro magnífico, à urze, ao mato queimado. Os carros de bombeiros passam sem as sirenes, desnecessárias porque não há trânsito. Uma agitação silenciosa perpassa nas pessoas, apanhadas na sua maioria já a dormir, pequenos grupos de vizinhos juntam-se a ver, a vigiar, inquietos.

Desci ao sítio das chamas junto do local onde os bombeiros esperam que o fogo se possa combater. O poder do fogo é enorme, uma coluna de chamas sobe e desce em altura conforme os arbustos que apanha, atirando línguas de fogo para o próximo ramo, para a erva seca. Atrás fica um círculo negro do que já ardeu, claramente delimitado por um risco de chamas.

É ainda um pequeno incêndio, sem perigo previsível, mas ajuda a perceber o que se tem passado.

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VER A NOITE

não é possível. O fumo dos incêndios espalha-se e tapa tudo. Não há estrelas, nem planetas, nem a jovem Lua se mostra. “Que farei quando tudo arde?” , perguntaria o meu mestre Miranda no canto superior esquerdo, no sítio onde Marte se deveria estar a mostrar.

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1.8.03


DE PARTIDA


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FÍSICA E MATEMÁTICA – COMENTÁRIOS - 2ª série (Actualizada)

NOTA: O Abrupto não tem comentários pelas razões já expostas. Através do correio electrónico recebe contribuições dos seus leitores, que são muito bem-vindas. Em função da economia geral do blogue e de regras editoriais de bom senso, serão aqui publicadas todas as contribuições para o debate, independentemente da minha concordância ou discordância com o seu conteúdo. Os textos estão publicados em ordem inversa da data de recepção.

"(...) o lançamento dum debate sobre o assunto, num país com reduzida tradição científica, e com muito pouca vontade para a construir.

O país em que Cultura-com-c-grande-nos-jornais-e-na-tv é sinónimo de Eça, Emmanuel Nunes, Vieira da Silva (só para mencionar alguns dos nacionais unânimes), mas nunca de Arquimedes, Galileu, ou Newton. Um país em que é escandaloso os alunos chegarem ao fim do 12º ano sem saberem quanto cantos tem "Os Lusíadas", mas não é escandaloso os mesmos alunos não compreenderem(!) que, desprezando o atrito, duas pedras de massas diferentes, lançadas simultaneamente da mesma altura atingem o solo ao mesmo tempo. Um país com uma intelligentsia que delira com Eduardo Prado Coelho ou Boaventura Sousa Santos mas ignora as calamidades pseudo- científicas que estas "talking heads" propagam nos anfiteatros da indústria de professores do Ensino Secundário. Um país que não compreendeu que Cultura Científica é, antes de tudo, questionar, criticar, experimentar, verificar e compreender, atitudes fundamentais para a cidadania nas sociedades democráticas.

(…) existe concerteza uma deficiência estrutural no sistema educativo nacional, mas esta deficiência é mental, e do sistema social português. Em comparações internacionais, os países asiáticos lideram sistematicamente os rankings da Física e da Matemática. Nestes países, o conhecimento é fortemente valorizado socialmente. Aprender Ciência, ensinar Ciência, fazer Ciência, são actividades com prestígio social, que os pais incentivam os filhos a prosseguir, o equivalente nacional a "fazer" a capa de revista cor-de-rosa, participar no próximo reality-show da tv, ou ser transferido para o futebol italiano. Os nossos valores são definitivamente diferentes dos valores sociais dos países que deram o salto do desenvolvimento científico e tecnológico.

E os nossos governantes têm tentado alterar esta atitude nacional? Numa lógica contabilística tudo indica que sim: escolaridade obrigatória alargada, melhores condições físicas nas escolas, e mais alunos nas escolas (em todos os níveis de ensino). Com que preço? Basta percorrer as escolas secundárias e falar com os professores e com os alunos. O sentimento generalizado é desmotivação. O nível médio de exigência dos programas é baixíssimo, fruto da pressão massificadora, e a escola substitui a família de forma indiferenciada e uniforme. Sucessivas reformas baixaram os padrões de exigência e automatizaram a promoção de multidões de analfabetos conceptuais a detentores da escolaridade obrigatória. A nova reforma do Ensino Secundário mantém esta bela tradição de inovação, sendo possível um aluno chegar a uma Escola de Engenharia sem ter tido Física e/ou Química nos três anos finais do Ensino Secundário (ver parecer do Instituto Superior Técnico sobre a reforma do Ensino Secundário). Todo este cenário torna-se ainda mais perturbador na Física ou na Matemática, em que a ausência de docentes com formação científica específica nestas áreas é quase total.Pergunta JPP: porquê estes resultados com a Física e a Matemática e não com as outras disciplinas? A resposta encontra-se subtilmente escondida no seu texto ("... o edifício da educação científica ...").

A Matemática, a linguagem das ciências "duras", é uma disciplina que exige um saber cumulativo, como bem descreveu Nuno Crato em intervenção televisiva recente. A sua aprendizagem não se compadece com lacunas na formação precedente e portanto supõe continuidade e estabilidade, características que raramente encontramos na composição do corpo docente das escolas públicas. Como qualquer linguagem, é exigente: o seu domínio implica muito treino e muito trabalho. A Física é um pouco diferente: compreender a linguagem matemática é fundamental, mas não é suficiente. A Física, como ciência experimental, obriga(-nos) a pensar e a confrontar a realidade, não se compadece com o saber sem compreender, o saber sem saber fazer, o saber-livresco-com-cheiro- a-mofo que impregna a nossa herança cultural francófona. Em qualquer dos casos, o nível de exigência e rigor das disciplinas é elevado e a qualificação científica dos docentes é crucial, sempre aliada à capacidade de transmitir o encanto e o prazer da Ciência. Muito deste prazer não se aprende no dia-a-dia de um estudante universitário. Encantamo-nos quando fazemos Ciência.

O contacto dos futuros professores com esta realidade é, em geral, reduzido e fortemente limitado: o estado, através das regras de financiamento, não incentiva as universidades que fazem Ciência, não incentiva a integração dos alunos em projectos de investigação e penaliza o ensino experimental/ laboratorial. Incentiva o ensino massificado, "barato" e com muito papel e lápis, a antítese da atitude que é necessário transmitir aos alunos do ensino secundário.Não existem soluções novas para descobrir a pólvora.

A teoria é unânime e do domínio público. Substâncias tão simples como trabalho, motivação, exigência, responsabilização, valorização e recompensa são, regra geral, suficientes. Contudo, não é óbvio que Nação/governantes/"opinion makers"/ professores/pais/alunos estejam preparados ou motivados para esta mistura explosiva. Citando um dos melhores conhecedores da psique lusa, Alexandre O'Neill, "Na prática, a teoria é outra."Nem tudo está perdido. Todos os Setembros encontro novos (e excelentes) alunos de Física à minha frente, acabados de sair do liceu, cheios de sonhos de cientistas e engenheiros, motivados para unificar as interacções fundamentais, compreender os buracos negros, resolver o problema energético da humanidade, desenvolver novos materiais, construir aceleradores de partículas. E de Setembro a Julho trabalho em deslumbramento ("awe" é o termo correcto) com as questões (e com as respostas) destes 45. O seu segredo é simples: motivação e dedicação. Como muitos noutros domínios científicos e tecnológicos, acabam por percolar para o resto da sociedade e transportar consigo a paixão pela Ciência e valores tão simples como a exigência, o trabalho e o rigor. Será aí que encontraremos algumas das respostas para o futuro."


Luís O. Silva

*


"Sou professor de Física e Química há cerca de 10 anos, neste momento frequento um mestrado na área da pedagogia de Física e Química. Lendo algumas opiniões, conhecendo a situação e vendo o estado dos actuais exames, aqui ficam algumas opiniões pessoais:

- Creio que a nota de matemática se deveu à crónica deficiência na área. A nota de física sempre foi baixa, este ano os exames foram excepcionalmente mais difíceis, daí a nota ter baixado, e só por isso deu nas vistas (até agora era a segunda nota mais baixa e já ninguém falava dela). Apesar destas notas, gostava que se reparasse que as médias das outras também não são propriamente alta...

- Como ciências de ponta, onde todos os factores têm importância, é natural que estas disciplinas revelem mais as deficiências do sistema que as outras. Creio, que enquanto uma disciplina como física necessita de um bom acompanhamento de um professor e de um domínio mais completo da matemática, do português e da física, outras disciplinas como a história ou a filosofia podem ser abordadas muitas vezes na solidão da casa, com o estudante apenas munido de livros.

- Os métodos de ensino existem, têm resultados e são passíveis de ser aplicados. Conheço colegas com graus de sucesso e que pretendem ensinar os seus alunos. Mas também conheço o contrário... e aqui reside um dos grandes problemas da estrutura excessivamente corporativa dos professores. Este ano fiquei a lecionar numa escola secundária em que me entregaram uma das disciplina mais fáceis e menos influentes das químicas. Se lá continuasse iria lentamente a receber disciplinas cada vez mais complexas até o dia em que poderia lecionar o 12º. Noutras escolas, colegas minhas com menos experiência receberam desde logo os 12º anos porque os professores mais velhos não queriam ter «o trabalho» nem «a responsabilidade». Esforce-me a ensinar os meus alunos, ou falte metade do ano, sei que vou progredir na carreira da mesma forma e ganhar o mesmo ao fim de x anos. É assim que o sistema funciona.

- Claro que os alunos não estudam, claro que é difícil a sua preparação. Mas talvez seja a hora de explicar que nem todos tem capacidade de serem neurocirurgiões ou físicos nucleares. Quando o ministério fala de prolongar o ensino obrigatório para o 12º eu penso na via profissional, no regresso aos cursos de carácter mais técnico. Espero que assim seja, porque sinceramente não percebo para que temos de obrigar os nossos alunos a ler os Maias ou a entender os campos magnéticos, quando sabemos de antemão que o futuro de muitos deles é ler «A Bola» ou trocar msgs de telemóvel enquanto esperam na fila para a entrevista de emprego, ou do autocarro.

Há muito para mudar e repensar, já agora uma observação interessante: Num país de maus estudantes e maus resultados, temos um físico como João Magueijo, uma pessoa que curiosamente não percorreu o caminho tradicional do estudante português para chegar ao fim do 12º. Mero acaso?"


Emanuel Ferreira

*

"Os fracos resultados obtidos a Matemática e a Física pelos estudantes do Ensino Secundário não se devem, obviamente, a um único factor. Mas antes de abordar algumas causas que me parecem estar por trás desse fraco desempenho, parece-me que é de realçar um facto tão ou mais preocupante do que este, nomeadamente que em testes feitos a nível da União Europeia (o Estudo Internacional PISA) os estudantes portugueses ficaram muito mal colocados. Temos então que averiguar não só porque é que os alunos do Ensino Secundário têm, nos exames a nível nacional, classificações tão inferiores às que lhes foram atribuídas pelos seus professores, como também porque é que são os piores da União Europeia no que se refere à Matemática.

Creio que é melhor começar por descrever uma aula de Matemática do Ensino Secundário a que fui assistir há sete anos atrás. A aula foi de uma hora, era dirigida a alunos do décimo ano e tratou-se de uma aula normal dada a uma turma normal. A única coisa que foi feita na aula foi a resolução de uma série de exercícios, todos do mesmo tipo, e que consistiam em aplicar uma técnica que já fora dada na aula anterior. Durante uma hora a professora ia propondo exercício atrás de exercício (todos iguais, com ligeiríssimas variações) e, após dar algum tempo aos alunos, mandava um deles resolvê-lo no quadro, corrigindo-o eventualmente em caso de necessidade. Foi-me explicado que ainda se continuariam a fazer exercícios do mesmo género na aula seguinte.

Imagine-se agora toda a matéria de Matemática e de Física do Ensino Secundário a ser leccionada deste modo, anos e anos a fio. A que é que isto leva? A uma situação ainda pior do que a simples análise des médias dos exames nacionais pode levar a supor. De facto, o que acontece é que:

1) A percepção com que a maioria dos alunos fica da Matemática e da
Física é de se tratar da uma matéria para a qual «conhecimento»
equivale a saber fazer uma série de exercícios padrão ou, pior
ainda, aplicar cegamente uma série de fórmulas. Naturalmente, isto
leva a alunos a quem se pede para calcular uma área, dão como
resposta uma quantidade negativa e depois queixam-se a quem os
quiser ouvir que os professores descontam imenso só por causa de
um erro num sinal.

2) Os alunos mais inteligentes e dotados de iniciativa intelectual
sentem muitas vezes repugnância por esses assuntos precisamente por
causa da percepção acima descrita.

3) Um grande número de alunos fica com a impressão de que até têm
queda para aqueles assuntos, ingressando por isso em cursos
universitários dessa área para depois terem um «despertar» muitas
vezes brutal. Tive uma vez alunas do primeiro ano de uma
licenciatura em Matemática a queixarem-se de que «a Matemática no
Secundário é tão fácil que até é chata»!

Mas porque é que as notas dos exames nacionais são tão inferiores àquelas que os alunos costumam ter no final dos anos lectivos? Porque cada vez mais o ensino é compartimentado em pequenas unidades estanques e as boas notas são devidas a testes que são feitos ao longo do ano para examinarem os conhecimentos obtidos nessas unidades. Mas há uma causa mais profunda e mais perturbadora: é que os professores que reprovem um aluno têm que elaborar um relatório a explicar detalhadamente porque é que o aluno em questão não teve aproveitamento e que métodos alternativos de ensino foram empregues. Nestas circunstâncias não deixo de compreeender (embora censure) os professores que optem por baixar a fasquia. Note-se que ninguém incomoda os professores que dêem sempre notas muito altas nem muito menos os professores que não proponham exercícios mais estimulantes aos melhores alunos.

E isto leva-me a mencionar aquela que considero como a maior perversão de todo o sistema, que é aquela que consiste em chamar «insucesso escolar» à taxa de reprovação. Ou seja, ter sucesso não é ter obtido novos conhecimentos, ter integrado os conhecimentos já obtidos numa estrutura coerente ou ter desenvolvido novas competências. Não: «ter sucesso» é «passar de ano» e nada mais. O símbolo torna-se na coisa em si. E esta é a linguagem empregue no Ministério da Educação.
"

José Carlos Santos

*

"Infelizmente a Matemática e a Física são apenas a face mais visível do problema.

O que se passa hoje em dia no sistema educacional é escandaloso. Quer no ensino liceal, quer no ensino superior. Antes de mais vejamos alguns exemplos verídicos: em 2002, no Instituto Superior Técnico, à cadeira de Análise Matemática I, base da formação matemática de todos os cursos daquela universidade, passaram 3% dos inscritos. Na mesma cadeira, mas na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, de cerca de 500 inscritos, só 33 foram aprovados.

Estes são só alguns exemplos de um panorama nacional ultrajante e degradante. Será que só temos escolas que não servem para nada? A continuar assim, apenas nos andamos a enganar e a enganar os outros; são anos e anos da suposta preparação, em que se gasta tempo e muito, muito dinheiro, que de pouco vai servir. São recursos mal alocados, num sistema lento ineficaz e enganador.

Ora vejamos: em primeiro lugar está a escolaridade básica e obrigatória que nada mais é que uma fantochada. Se por acaso tivéssemos como colegas, alunos interessados e trabalhadores e bons professores, talvez o sistema até funcionasse. Porém não podemos partir do princípio que todos os alunos são interessados e trabalhadores, principalmente quando a práctica nos diz que são poucos. E quanto aos bons professores? Nem sempre os professores são bons, mas são injustas a maioria das críticas que a opinião pública e muitas vezes o próprio ministério faz aos professores. Um bom professor faz-se não só por ele próprio, mas também pelos alunos que têm. Que ânimo terá então qualquer professor, bom ou mau, se os seus alunos não se interessam minimamente e se não dispoem de um mínimo de ferramentas que lhe permitam aumentar a exigência? A verdade é que nos tempos que correm, é muito, mas mesmo muito raro alguém chumbar até ao 9º ano. Vêem-se alunos passar com mais de duas negativas e muitas vezes até com reprovação às disciplinas de Português e Matemática, que antigamente eram os dois monstros sagrados, a que ninguém podia chumbar simultâneamente.

Que estímulo terá então um professor que por tão maus que sejam os seus alunos os vê passar para o ano seguinte, sem que pouco possa fazer? Sim, porque os procedimentos para se chumbar um aluno são tão complicados, que a própria burocracia se encarrega de o fazer passar. E que vontade de fazer um esforço extra tem o aluno que já não é muito dado aos livros e que sabe que se não se esforçar passa na mesma? Que ânimo dá isto aos bons alunos que no fim de um ano de trabalho são apenas premiados com a aprovação dos colegas que nada fizeram para a merecer? Com este sistema, só as estatísticas ganham e mais nada.

No ensino secundário, o percurso deixa de ser tão facilitado, mas a base é a mesma: os níveis de exigência são um pouquinho superiores mas ainda assim os professores de hoje em dia foram amputados dos mais básicos meios de contolo e exigência, como por exemplo os trabalhos de casa, que muitos alunos, simplesmente abstêm-se de fazer. Os liceus são hoje em dia uma salganhada, uma mistura de escola para os alunos que pretendem ir para universidade e de jardim-escola para uma grande percentagem de desorientados que não sabe bem o que há-de fazer da vida, mas que por lá vai passando o tempo até se decidir.

E chegando ao ensino superior? Bem de tanta liberdade há alunos que se dão ao luxo de chumbar todas as cadeiras do primeiro semestre. Há elevadíssimas percentagens de reprovações nos primeiros anos e também de alunos que nesses dois primeiro anos mudam de curso, universidade, ou que abandonam mesmo a vida de estudante.

Estes são apenas alguns dos problemas que afectam a educação nacional, a nível do percurso académico e formação dos alunos. Concerteza haverá quem diga que também os encontramos no conteúdo da informação fornecida aos estudantes, bem como nas saídas profissionais, no acesso ao ensino superior e até mesmo nas infra-estruturas. Não digo que não, mas em minha opinião grande parte do problema da educação nacional poderia ser resolvido solucionando os problemas cujas manifestações acima descrevi. Para tal apresento algumas soluções, que, a meu ver, contribuiriam muito, caso fossem aplicadas.
Em primeiro lugar é absolutamente necessário exigir. Ninguém trabalha se não se exigir, se não existirem patamares de qualidade e de obrigatoriedade. Exija-se e premeie-se os trabalhadores. Crie-se não só uma cultura de trabalho e produção como de louvor e exaltação desse mesmo trabalho. Não se pode permitir o desleixo nem o eterno desafogo, que permitem aos alunos, mesmo não trabalhando, continuarem a progredir no seu percurso escolar. Notas negativas existem e são para se dar quando merecidas, assim como as notas elevadas, se os alunos o merecerem.

A cultura da mediocridade não pode continuar e portanto não se pode nivelar por baixo. Advogo a separação entre maus e bons alunos. Não por descriminação mas pelo facto de que, em turmas mistas, ou se acompanha o ritmo dos bons alunos, o que torna ainda mais difícil a aprendizagem dos alunos mais fracos, ou se procede conforme as capacidades dos mais fracos, o que pode provocar o desinteresse dos bons alunos e um subaproveitamento das suas capacidades. Assim ninguém aproveita. A meu ver, seria portanto favorável criar-se turmas adequadas ao nível de cada grupo de alunos.

A escolaridade obrigatória é, sem dúvida, uma conquista preciosa e necessária a toda a população. Mas escolaridade obrigatória não é sinónimo de infantário ad aeternum, ou de depósito de crianças e muito menos de parque de diversões. Sai muito caro ao estado manter um aluno quer no ensino básico, secundário ou superior e portanto não se deve permitir o autêntico estado de sítio em que muitas instituições vivem. Os alunos reprovam uma vez, duas vezes, três vezes, até quatro... e continuam a poder estudar como todos os outros. Tal não deveria acontecer: são permitidas um número limitado de reprovações e partir de então, caso voltasse a chumbar o aluno deveria ser obrigado a financiar a sua própria educação. Aconteceria uma de duas coisas: ou abandonavam a escola, - o que nunca é agradável - ou acabaria o regabofe. Nos dias que correm ao permitir-se que os alunos reprovem como reprovam, permite-se que se roube ao Estado, que se roube aos pais e educadores que têm de sustentar mais tempo os seus filhos em casa e permite-se ainda que as escolas e universidades sejam povoadas por ociosos que têm exactamente os mesmos direitos que os trabalhadores.

É necessário compreender-se e fazer-se compreender que para se alcançar o sucesso não é obrigatório passar-se pela universidade, nem que seja só pelo simples facto de que há pessoas que não foram feitas para estudar. E para tal é também preciso criar alternativas dignas e de qualidade que permitam o acesso à via profissional e também o colocamento na vida activa do país. Um país só de doutores é um país que não sabe reparar canos furados, não tem pessoas capazes de construir casas, nem móveis e que não cultiva os seus campos. E a educação também passa por apoiar e patrocionar (e isto não significa apenas dar subsídios) jovens artistas, músicos, pintores, escultores, escritores e tantos outros necessários a uma boa saúde cultural do país.

Quem faz um país são os seus habitantes. E um bom país precisa em primeiro lugar de cidadãos e depois de cidadãos educados, cultos e bem formados. Isso não significa que todos necessitem de ir à universidade, nem que passem anos infindáveis sentados em carteiras de escola. Significa apenas e só que lhes seja dado o direito de receberem uma formação útil, de qualidade e adequada às necessidades futuras, sendo-lhes exigido um esforço, dedicação e trabalho necessário à produção de um processo de aprendizagem de qualidade e exigente.

Não podemos continuar a formar indivíduos medíocres, nem a enganar tudo e todos sob o bom nome da nobre acção de educar."


Francisco Delgado


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PERCA

O Terras do Nunca lembra-me que no “EARLY MORNING BLOGS 22, onde está a palavra perca seria preferível estar perda. O primeiro termo é uma versão popular, mas a verdade é que, enquanto substantivo, corresponde a uma espécie de peixe.” Neste caso não era nem erro, nem gralha, era voluntário (no entanto, fiz a substituição pedida).

É daquelas palavras a que uma pessoa, uma escrita, se agarra há tanto tempo que não sabe dizer certas coisas sem elas. Faço esta nota porque me permite recordar uma amiga que já morreu, M.J.A., e que também nos idos da ditadura me lembrou que não se usava “perca”. Num texto qualquer clandestino , eu com o nome de “Rui” ou “Carlos” já não me lembro, usei a palavra “perca” e M.J.A. que se chamava então “Saúl”. lembrou , em devida comunicação ao “organismo superior” (que era eu) , que o uso dessa palavra poderia identificar o “camarada Rui”…
É por isso que eu resisto em perder a perca.

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FÍSICA E MATEMÁTICA – COMENTÁRIOS (Actualizado)

"Algumas considerações rápidas sobre a questão do ensino da física e da matemática:

1. O objectivo do ensino não deve ser preparar os alunos para um exame, mas ministrar os preceitos da ciência em estudo. Só assim se cria o espírito críto tão importante para o desenvolvimento intelectual e para o avanço da própria ciência.

2. Os exames não têm nem devem reflectir a qualidade do ensino. Um exame deve ser um seleccionador, ou seja, permitir distinguir os melhores, os que têm maior aptidão, os que conseguém ir além da norma. Só assim se pode incentivar a meritocracia e a competição. Caso contrário, e considerando a pouca qualidade no ensino nacional, acabaremos por ter uma massa uniforme de alunos em que todos aparentam ter competências equivalentes.

3. O ensino nacional é de facto muito mau e está completamente ultrapassado. O estudo de ciências naturais ainda continua a ser feito à custa de tediosos manuais quando deveria recorrer cada vez mais à experimentação, ao trabalho de campo e à investigação. A física é a ciência que interpreta as leis da Natureza. Logo, o seu estudo deveria iniciar-se na experimentação, só depois passando para a matemática. E a química? E a biologia?

Enfim... Pode ser que um dia alguém faça uma reforma do ensino. Até lá, teremos que viver com remendos!"
(Olindo Iglesias)


Acerca das más notas nos exames de matemática, eu tenho uma teoria (baseada na minha experiencia de há 11 anos atrás, logo já deve estar desactualizada):

Durante o secundário, os alunos fazem o teste, e depois o professor olha para o teste: se está tudo bem, o aluno tem a cotação toda; se está quase tudo bem, mas, a dada altura, o aluno trocou um "+" por um "-", tem parte da cotação; se o metodo de resolução de exercicio está mal de partida, o aluno tem "0" (nessa questão).

Não sei como é actualmente, mas há 11 anos, os exames eram por escolha múltipla, o que faz com que qualquer erro anule a questão, já que o aluno vai por a resposta no quadradinho errado. Inclusivamente, "trocas de sinais" acabam por ser mais penalizadas do que a ignorancia pura e simples, já que, quem não sabe, pura e simplesmente, não responde, tendo "0" nessa questão; quem comete um engano, muitas vezes acaba por
responder no quadradinho errado (até porque as "respostas alternativas" são feitas já a pensar nos erros mais prováveis), e logo, não só não tem cotação, como até vai descontar nas outras respostas.

Talvez seja essa a razão pelo qual alunos que foram sendo aprovados no Secundário "afundam-se" nos exames (mas não me pergunte qual dos dois sistemas é o melhor que eu não faço ideia)
.” (Miguel Madeira)


Como professor que sou, embora de história, tenho por hábito reflectir e tentar analisar o estado do ensino em Portugal.
Como se deve depreender, muito há para reflectir e analisar. Em relação ao seu comentário sobre as causas desta situação, considero que as duas que aponta são verdadeiras.
Por um lado, o ensino da Física e da Matemática não prepara os alunos para os exames. Por outro, os exames e respectivos de critérios de avaliação não têm em conta as condições reais de ensino.
Este problema pertence a vários intervenientes, e não podemos dele retirar os alunos. Basta ver que há muitos bons alunos, com óptimos resultados. Só que estas disciplinas não se compadecem com a falta de disciplina e de métodos de trabalho rigorosos e exigentes. Ora, por mais que os professores queiram, por mais qualidade que tenham, não conseguem motivar todos os seus alunos a trabalhar o necessário para atingirem os objectivos por todos pretendidos, os bons resultados.
Se é verdade que um professor tem que se esforçar ao máximo para que o maior número possível dos seus alunos atinja bons resultados, também é verdade que é praticamente impossível que todos o consigam.
Onde está a fronteira do possível? Se a maioria dos alunos tem resultados positivos o professor pode dar-se por satisfeito? Não.
Um professor nunca está satisfeito com os resultados que os seus alunos conseguem obter. Mas o que é certo é que os resultados que eles conseguem obter também não dependem apenas dele.
Dependem então de quê? De múltiplos factores como o professor actual, os professores anteriores, o esforço dos alunos, a adesão e motivação dos alunos ao ritmo de trabalho imposto, dos programas, dos critérios de avaliação, enfim, de uma quantidade enorme de factores a que não podemos subtrair as condições familiares, financeiras, emocionais, e outras. Nenhum destes factores é determinante, mas há uns mais determinantes que outros.
Na realidade, tudo gira, em última análise, à volta do professor e do aluno. Porquê então subtrair o aluno como factor importante a ter em conta?

Por todos estes factores, e por não me querer alongar mais, considero que isentar os alunos das suas responsabilidades não é uma boa resposta
.” (Fernando Reis)


José Carlos Santos chama a atenção para esta mensagem que surgiu no newsgroup pt.ciencia.geral:

Assunto: Sobre o ensino da ciência

Sou um aluno do ensino secundário e estou agora a preparar-me para os exames nacionais de física e matemática (da segunda chamada). São duas disciplinas difíceis, é verdade mas também tenho consciência que este ultima ano, o meu empenho foi mínimo. E há várias razões para isso.

Sempre tive um certo interesse por astronomia, magnetismo, electricidade quando isso era dado nas aulas ate ao 9º, i. e. eu gostava de física, lia livros de divulgação cientifica de qualquer da área. Arrastei me ao longo de 2 anos de físico-química do secundário. Apenas se davam forças e movimentos mas lá ia fazendo a disciplina. Chegado ao 12º ano, estava ansioso, a matéria mais abrangente toda a disciplina um pouco mais desafiadora, julgava que ia ser interessante.

Estava enganado. Ao longo do 12º ano não tive uma única aula de física! O que eu tive seria mais correctamente chamado de aulas de preparação para o exame de física do 12º ano. Da primeira á ultima aula, com tendência a aumentar a medida que nos aproximávamos do fim do ano, só se falava no exame. Em vez de nos ensinar física, explicaram nos como resolver "este tipo de exercícios de física, pois são típicos de exame!". A prof. lê alto do manual, propõe uns exercícios que acaba por resolver, os alunos entram no esquema e sabem com que formulas jogar para obter o resultado, e pronto. Hordas de colegas meus, chegam ao extremo de decorar, i. e., pôr na cabula, todas as formulas de todos os exercícios que já resolvemos na aula. Chegam ao teste e passam. E provavelmente repetem a proeza no exame. Isto faz me lembrar a ciência do culto da carga de que Feynman descreveu. As pessoas sabem resolver os problemas com recurso ás formulas sem fazerem a mínima ideia do que se esta a passar. Sabem as formulas de cor mas não sabem interpretar as formulas para explicar alguma coisa a luz daquilo que sabem. As pessoas SABEM mas não COMPREENDEM.

Dizem nos que há disciplinas das quais nunca mais nos vamos servir para o resto das nossas vidas, mas que servem para desenvolver o raciocínio. Mas, da maneira como supostamente se ensina a Física garantidamente não aprendemos a pensar, antes pelo contrario, ensinam nos a aceitar passivamente o que os profs. nos apresentam sem questionar sem perceber, afinal o que importa são os teste e um bom exame.

Quase tudo o que disse se aplica a matemática do 12º. As coisas caiem do céu e nós temos que as absorver para o grande exame.
-Para resolver este problema, que é típico de exame, usam este truque assim, assim...
-Mas stôr, qual é razão de isso funcionar?
-Ah isso não interessa, funciona e acabou-se.
De uma maneira geral a matéria caí do céu desconexa do resto da matéria.
-Número de Nepper serve para... para... têm muitas aplicações, não importa quais!

É assim que os professores respondem a muitas perguntas feitas por sincera curiosidade. Curiosidade essa que é frustrada, por que não contribui para fazer um bom exame. Como é que um sistema educacional assim quer cultivar o interesse pela ciência? Não é um paradoxo gastar dinheiro em projectos que aproximam os jovens da ciência quando na escola esse interesse é sistematicamente destruído?

Conforme se deduz do primeiro parágrafo o ano correu me mal. Não estou a culpar outros por aquilo que só eu sou responsável, estou a apontar um problema que penso ser grave. Numa sociedade onde um mínimo de espírito critico é necessário para nos protegermos de aparelhos que supostamente curam recorrendo a feixes de neutrinos e outras tretas, é triste ver em que estado esta o ensino da ciência que supostamente nos ensina a pensar. Corrijam-me se estou enganado
.” (David Asfaha)


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FÍSICA E MATEMÁTICA

O problema das notas de Física e Matemática dos exames do 12º ano revela uma deficiência estrutural gravíssima do sistema educativo português. São matérias em que não tenho qualquer capacidade de avaliação própria sobre os programas, mas em que entra pelos olhos dentro de qualquer amador que há algo de muito errado. Acresce que Física e Matemática são disciplinas estratégicas para qualquer sistema de ensino que pretenda um mínimo de qualificação e para a modernização do país. Sem elas todo o edifício da educação científica cai.

O sistema educacional público presta um serviço fornecendo aulas de Física e Matemática aos alunos do ensino secundário. Depois o mesmo sistema avalia-os e chega à conclusão que os seus resultados estão estatisticamente abaixo dos critérios mínimos. Segundo o Público, a média em Física na 1ª chamada é de 8,1 valores e 7 na segunda, e, em Matemática, respectivamente 9,3 e 7,4.

Uma de duas coisas está errada, ou as duas. Ou o ensino de Física e Matemática é ineficaz para preparar os alunos para o exame, ou os critérios de avaliação não correspondem à qualidade do ensino, mas a uma ideia abstracta de como ele deveria ser. Este é um dos casos em que claramente toda a responsabilidade está a montante dos estudantes que são as suas vítimas.

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EARLY MORNING BLOGS 22

Mário Filipe Pires do Retorta escreveu-me sobre as horas de actualização dos blogues nocturnos:

Acerca da entrada que fez com a imagem dos anjos, queria dizer-lhe que as aparências podem iludir.
Embora pense que a maioria dos sistemas não o permite, no meu caso o Typepad permite definir a data de publicação de uma entrada, quer no futuro, quer no passado.
No meu weblog visual Lumen, deixo as entradas programadas para serem publicadas por volta da uma e um quarto da manhã, quando eu já estiver fora do computador.
É esse sistema que me vai permitir deixar entradas definidas quando for para férias. No meu weblog principal não conto fazer isso, mas tanto no Estética-metrica como no Lumen assim farei.”


Esta e outras questões sobre a manipulação do real no virtual têm uma dimensão crescente pela cada vez maior importância do mundo virtual, e pela maior eficácia das ferramentas de manipulação do real. Horas, lugares, fotografias, textos, identidades, autorias, personae, tudo pode ser manipulado no mundo virtual para parecer o que não é. Mas será que já era aquilo que parecia? E como é que o nosso desejo se liga, “se linka” entre o real e o virtual? Só com perda? Talvez com ganho? Onde, em cada linha electrónica, feita do “azul eléctrico” de que falam os Reflexos está escondida a “Hot babe” da Carta Roubada?

Exactamente porque esta fronteira ficcional é cada vez mais débil e entra cada vez mais para dentro do mundo dos átomos, é que no mundo virtual se vai poder “escrever” (”ver”,”viver”) as mais absolutas das ficções. A arte do futuro vai viver ali, naquelas dimensões imateriais tornadas carne visível pela fragilidade dos nossos sentidos. Para a arte não é novidade, para o homem que vive entre os signos também não, mas para as massas é a nova forma da Catedral. Razão tinha o sr. Naphta na Montanha Mágica – o mundo vai ser colectivo para os pobres, individual para os ricos. Cada vez mais.

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ESTADO DO ABRUPTO (JULHO 2003)

Como todos podem ver o último contador, o mais recente mas o mais público, passou ontem os 100000. De facto, o número de “pageviews” desde 6 de Maio , ou seja há três meses, é bastante superior aproximando-se das 130000 ( pelo Bstats, o contador com a série mais longa).

No dia 2 de Julho atingiu 3700, o maior número de leituras registado. A média actual de “pageviews” diária é de mais de 2200 ( mais de 100 do que no mês passado) notando-se um decréscimo de médias desde valores à volta de 2500, na primeira quinzena, à medida que o mês de Julho entra na segunda quinzena. Tanto pode ser um efeito de férias, como uma perda de interesse dos leitores. Ver-se-á.

Nos outros elementos estatísticos – distribuição dos leitores no mundo por fusos horários, dias, horas de maior afluência, e origem dos visitantes - não há grandes variantes em relação a Junho.

As “acções” no Blogshares conheceram uma subida acentuada, seguida de um queda, seguida de uma outra subida vertiginosa (atingiram 432 dólares) para depois caírem de novo, abruptamente, para 124 o valor actual. Parece haver alguma especulação bolsista à volta do Abrupto.

Talvez a mudança mais significativa entre os dois meses seja a do número de blogues e de referências que se ligam ao Abrupto : segundo o Technorati há hoje 356 “inbound Blogs” e 492 “inbound Links” no blogosfera.

Estes números revelam que o Abrupto tem neste momento uma dimensão comparável a um pequeno órgão de comunicação, com um número regular e estável de leitores diários, muitos dos quais são exteriores à blogosfera. É uma comparação que não recuso, embora esteja longe de esgotar para mim o sentido do Abrupto.

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31.7.03


LUZES DO NORTE



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PEDIDO DE AJUDA RESPONDIDO, PROBLEMA RESOLVIDO

Muito obrigada a Carlos F., Carlos Campos, Blog Notas, João Miranda, Paulo Carmo, Jiminy Cricket, Smaug, Nuno Mendonça, José Carlos Santos e ao Hipatia pela resposta ao meu pedido de ajuda que me permitiu resolver o problema e abriu caminho a outras melhorias gráficas.

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30.7.03


UMA QUESTÃO TABU DO JORNALISMO E DA POLÍTICA

Um jornalista que tem fontes altamente colocadas na vida política, que lhe fornecem informações confidenciais que implicam quebra de segredo ou lealdade ou com o governo ou com o partido de que fazem parte, acaba por ter um ascendente sobre essas fontes. Por muito que exista uma troca de favores entre o político que assim fornece informações com intencionalidade (contra os seu adversários políticos, contra quem lhe faz sombra na carreira) e o jornalista que vê o seu jornal aumentar as tiragens pelos “escândalos” que publica e a própria carreira de jornalista subir de cotação , a verdade é que dada a natureza das suas funções e a distinção entre a penalização social dos dois comportamentos, é o jornalista que “manda”.

O que é que acontece quando o jornalista inicia uma carreira política e vai ter que partilhar o mesmo mundo com os políticos que o informavam? Como é que ele pode iludir que sabe, no mesmo gabinete, no mesmo partido, quem informa os jornais? Como é que as “fontes”, que sabem que ele sabe que foram eles que denunciaram X, ou forneceram o documento que incriminou Y, o tratam? Podem ter liberdade para criticar o homem a quem passavam informações? Podem deixar de sentir uma potencial chantagem sobre eles? Mesmo na melhor das hipóteses é uma relação particularmente doentia e ambígua.


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AGRADECIMENTO E PEDIDO DE AJUDA

Como é que controlo a largura da página do blogue , de modo a que os seus leitores não tenham que estar a deslocar o cursor para ver a parte de uma linha de texto que sai do ecrã?
Isto deve ser do ABC do HTML, mas queria resolver o problema com urgência e não tenho muito tempo para o estudar como devia.
Obrigado antecipado.

Aproveito também esta oportunidade para agradecer a todos os leitores do Abrupto que me têm corrigido os erros de ortografia, as gralhas, e outros lapsos do texto, com uma dedicação e uma gentileza inexcedíveis. Se não fossem eles a minha vergonha pública seria maior do que o que já é.

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DE NOVO SOBRE O RENDIMENTO MÍNIMO GARANTIDO

A nota que publiquei ontem sobre o RMG suscitou muito correio e muitos comentários em vários blogues. Tratava-se de uma nota que fiz a partir de uma realidade que conheço directamente, com um inevitável elemento “impressionista”, mas que não tenho nenhuma razão para pensar que não seja significativa. Apesar de circunscrita a uma parte da composição social da população abrangida, (admito que em Setúbal, por exemplo, haja realidades distintas que tenham que ser descritas doutro modo) , nem por isso deixa de existir e ter peso na avaliação do RMG.

Por isso, mantenho-me firme na afirmação da relevância dos casos que referi. Os exemplos que dei e que conheço bem estão longe de parecer excepcionais. Nem as pessoas, nem a terra, nem o contexto, têm qualquer excepcionalidade para eu poder concluir que o mesmo não aconteça em outras comunidades semelhantes. No fundo, é tudo tão normal, e esse é que é o problema.

Nunca utilizei a palavra “fraude”, porque acho que descrever estes efeitos do RMG está longe de poder ser assim classificado. As pessoas que se comportam como descrevi são condicionadas a fazê-lo não porque queiram enganar o estado, mas por que a lógica do RMG as empurra a actuar assim, lhes “sugere” que actuem assim. Um sistema de subsídios gera como efeito a adaptação criativa dos putativos recipientes à lógica desses subsídios, tentando maximizar o que se recebe e minimizar o esforço. É uma estratégia de adaptação inevitável.

Aqueles que vêem o RMG de um ponto de vista ideológico de “esquerda” é que acham que a esmagadora maioria o usa “correctamente” e só uma pequena minoria desviante é que comete “fraudes”. Ora esta distinção não tem sentido, dado que os comportamentos que descrevi são os comportamentos racionais, induzidos pelo sistema de subsídios, e não uma perversão do RMG. O mal não está nas pessoas, mas nas oportunidades que se lhes dá para se adaptarem a um limiar de apatia, que reproduz eficazmente a mesma exclusão que se pretende combater.

O que se passa, e isso é patente em muitas das críticas que vi sobre o meu texto, é que se fala do RMG a partir das suas boas intenções – dar um “mínimo” a todos de sobrevivência, de dignidade – e não a partir da realidade económica e social que a existência de um “rendimento garantido” gera. A isto soma-se a permanente ocultação da conflitualidade social que o RMG gera “em baixo”, o que também tem razões ideológicas – que haja “pobres” contra os “ricos” , muito bem, que haja “pobres” contra “pobres” não é aceitável.

Nota: estou a preparar uma síntese das opiniões recebidas pelo correio.

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EARLY MORNING BLOGS 21

Detalhe de um quadro de Stefan Lochner que está na Alte Pinakothek de Munique

Não, a pintura não está aqui por engano. São mesmo os anjos a cantar – é música o papel que têm nas mãos – numa nuvem de madeira qualquer do paraíso ou do topo de uma igreja. A voz dos anjos chega certamente a Deus e, como é música que cantam, só pode ser também para os homens porque a música é uma dádiva.

Não, a pintura não está aqui por engano. Olhando para a lista nocturna das vozes electrónicas que às duas, três, quatro, cinco, seis horas da noite se erguem do silêncio das casas, onde tudo dorme menos um, vozes amáveis ou zangadas, com esperança ou sem esperança, desejei-lhes uma qualquer virtual similitude com este coro, de uma inocência que já não conseguimos ter.
Não havia blogues se houvesse inocência, não é?


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29.7.03


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 18

A Ana escreve que “procuramos os objectos em extinção à procura do tempo perdido..“ Seguem-se mais alguns resultados dessa “procura”, enviados pelos leitores do Abrupto:

Uma imagem portuense, o Preto da Casa Africana, lembrado pelo Artur Carvalho:

Lembra-se de descer a Rua Passos Manuel e quase lá no fundo erguer a cabeça para um piscar de olhos ao Preto da Casa Africana? Lembra-se dele, pintado lá no alto das traseiras do prédio onde está instalada a loja? Pois saiba que a próxima vez que lá passar dará pela falta dele. Pintaram a casa e pintaram o Preto.E apagaram assim uma imagem que já fazia parte da história da Baixa. Algum esteta esclarecido deve ter achado, provavelmente com razão, que o edifício precisava de trincha e....zás! foi tudo a eito, Preto incluído.
É mais um sinal da suburbanidade que assalta a Baixa do Porto, vai tudo na varridela da ditadura ZARA e afins. Apaga-se a memória, e uma certa cidade não há-de demorar a torna-se num "objecto" de saudade. Em desuso já ela está há muito
.”

Outro portuense, o Paulo Pereira, lembra “O fiscal dos "troleis" que picava as senhas(aquilo fazia um barulho engraçado), e ia eu, no 9 ou 29 para o marquês e para o bolhão.

Da cidade para o campo, a Isabel do Monologo lembra “sem ser um "objecto", está em extinção por ter perdido a função social que desempenhava: o burro doméstico. Já não vai pertencer à "paisagem rural" do mundo meus filhos. Tenho pena.”

O Miguel Leal envia uma memória dos “testemunhos recolhidos das vozes e dos rostos de Arlindo , Maria e Manuela Rosa , habitantes da Cabanas de Torres -Alenquer.

A planta do milho é um objecto em extinção do ponto de vista do seu aproveitamento integral .Em tempos de penúria no vale da Serra de Montejunto, o fim do ciclo do milho denominava-se o TEMPO DA EIRA .Longe de se resumir à desfolhada ou descamisamento , esta actividade desenrolava-se em registos variados àparte a dimensão do trabalho e subsistência .Nele participavam todos os elementos da comunidade , com funções diferenciadas de acordo com género e escalão etário .
A maçaroca do milho é envolvida por umas folhas que se chamam capelos .Depois da secagem nas eiras , onde eram dispostas em círculos concentricos ou espiralados , as maçarocas eram "descamisadas", nome localmente atribuído ao processo de separar os capelos da maçaroca . Estes tinham várias camadas diferentemente aproveitadas conforme a sua textura . A camada externa , grosseira , servia como ração para os animais.A camada intermédia , mais fina , destinava-se depois de "escarapelada" , a encher colchões de pano onde as pessoas dormiam . Estes colchões tinham uma abertura central unida por três fitas , que era aberta todas as manhãs para compôr e alisar a camada de capelos revoltos por acção dos corpos na noite de descanso. A camada interior , frágil , aproveitava àqueles cujas posses eram insuficientes para o tabaco , servindo como mortalhas depois de desfiadas. O conteúdo da mortalha era resultante do aproveitamento da "barba do milho" que sai do topo das maçarocas maduras.Este expediente dos viciados era imitado como actividade lúdica pelas crianças que colaboravam no "descamisamento ".À barba do milho eram também atribuídas propriedades curativas , pelo que servia para fazer chá "para a bexiga".O milho era então malhado pelos homens no sentido de o separar da camada a que estavam unidos chamada o carolo . A malhagem não era suficiente e as mulheres jovens "escarolavam" , isto é , retiravam manualmente o milho que restava nos carolos . Num registo iniciático e conforme a cor do milho que lhes competia escarolar, assim teriam de beliscar ou beijar um rapaz à escolha do grupo . Ficava então o carolo que era igualmente aproveitado de duas maneiras : ou como combustível para aquecer os fogões ou , numa alquimia fumegante , juntamente com água e vinagre , transformado em pasta de sapateiro , fundamental para a aderência da sola ao cabedal.O pé do milho não era desaproveitado e juntava-se às camadas exteriores dos capelos como feixes para os animais.Aos jovens casadoiros , sedentos de aventura e afirmação cabia a guarda da eira durante a noite. Construiam palhotas com vime e aí permaneciam o tempo que necessário fosse.
São memórias de um tempo em que o oposto do desperdício era sinónimo de engenho , espírito inventivo e convívio solidário
.”

Francisco Delgado lembra a "licença de porte de isqueiro”, de que envia uma reprodução (será colocada no blogue que em Setembro se fará só para os objectos) chamando a atenção para “as regras de utilização, autuação e, sobretudo, delação “. Acrescento eu: quando queria explicar a um estrangeiro como era viver no Portugal de Salazar, a licença de isqueiro era o meu exemplo de espantar.

O nosso médicopara comemorar a recente façanha do Bloco de Esquerda que conseguiu institucionalizar a magia e o esoterismo (tão na moda!)” envia “uma lista de pequenos objectos médicos já extintos ou em vias de extinção”:

"1) três tipos de ventosas de vidro (extintas);
2) uma caixa de alumínio porta agulhas (extinta);
3) uma seringa de vidro (extinta);
4) um termómetro de mercúrio (em vias de extinção) e o respectivo utensílio para repor abaixo de 37º (extinto);
5) uma "garrafa" de soro em vidro de soro fisiológico (substituído por plástico);
6) uma ampola de clorofórmio e o seu invólucro em papelão (em desuso);
7) frascos de vidro para transporte de urina e sangue com rolhas de cortiça (substituído por plástico e tubos de ensaio especiais);
8) caixa de alumínio com uma ligadura engessada (invólucro extinto)”


(Manda também uma foto que acompanhará estes objectos no blogue que em Setembro se fará só para esta série.)


No Blogal há também uma lista suplementar de objectos em extinção.

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PARA A HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA EM PORTUGAL

Veja-se um excerto do trabalho de J. M. Leal da Silva sobre as fotografias da greve de 1943 nos Estudos sobre Comunismo. O autor, num trabalho dedicado de "detective fotográfico", identifica pela primeira vez com correcção o local onde foi tirada uma raríssima fotografia de um conflito social no Portugal da ditadura. O fotografo que a tirou é desconhecido, mas a fotografia é um retrato único dos tempos da repressão.


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NA PROVENÇA


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RENDIMENTO MÍNIMO GARANTIDO

O Rendimento Mínimo Garantido (RMG) foi (é, mesmo revisto) uma das maiores pragas sociais que o governo PS deixou e que o governo PSD-PP não alterou como devia e não pôde alterar como queria, dado o modo como funcionam os mecanismos dos “direito adquiridos” para manter o stato quo. O RMG tinha este efeito de não retorno, de deixar um rastro de efeitos que muito dificilmente podiam ser corrigidos pela natureza de facto consumado que estas leis têm.

O RMG é um mecanismo que agrava as desigualdades sociais, favorece a exclusão, consolidando-a, e gera um clima de conflitualidade social, ou seja, tudo ao contrário do que as boas intenções retóricas dos seus autores. Visto “por baixo” , numa pequena aldeia deprimida, sem actividade económica, o RMG traçou um risco de separação entre os pobres, separando os mais “espertos” e que não trabalham e vivem do subsídio, dos que, tão ou mais pobres, procuram ter um emprego e se vêm com muito mais dificuldades e com uma vida mais pesada, por terem optado pela via de não viverem do RMG.

O ódio social, as trocas de insultos, as apreciações pejorativas, a hostilidade entre pessoas que têm a mesma condição e que se dividem entre o grupo do subsídio e o grupo do trabalho (ou à procura do trabalho), é muito nítida, mas não chega aos gabinetes. O primeiro grupo é mais numeroso e organiza a sua vida de modo a maximizar o subsídio, o “rendimento”. Uma estratégia comum é a constituição de famílias que em condições normais teriam como base o casamento, mas que são uniões de facto para que as jovens mães tenham o estatuto de “mães solteiras” e assim possam receber o RMG. É uma estratégia comum, deliberada, construída numa base familiar estável, mulher, “marido”, filhos, apoiada por famílias onde muitas vezes já há outros recebedores do RMG. Grupos familiares inteiros criam-se assim à volta do RMG , com condições sociais que acabam por se tornarem melhores do que as dos que procuram trabalho , mesmo precário. Numa pequena aldeia isto divide muito, mesmo muito.



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EARLY MORNING BLOGS 20

Dizia-se de Kant que era tão regular no seu passeio Koenisberguiano que os burgueses da cidade acertavam o relógio por ele. Parece que só se atrasou no dia em que recebeu as Confissões (ou o Emílio?) de Rousseau.

O meu relógio na blogosfera é o Almocreve das Petas, regular como um relógio, o verdadeiro “early morning blog”, que chega com a sua carga de livros e outras antigualhas, víveres do espírito, dinamite cerebral, como diziam os anarquistas, alta madrugada quando já raia a bela aurora. Altura para fechar a loja das palavras e ir dormir.


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28.7.03


LUGARES DA DECADÊNCIA: ALEXANDRIA TROAS (TURQUIA)

Entre Assos e Tróia, fica Alexandria Troas, um desses sítios que nunca se esquecem. Alexandria Troas não existe, existiu.
Alexandria Troas, uma das “Alexandrias”, foi um importante porto de mar, e vem citada na Bíblia cinco vezes. As suas ruínas estão perdidas no meio de um campo, tendo sido apenas muito parcialmente escavadas. Esta parte da Anatólia não tem turistas, que ficam das estâncias à volta de Izmir para baixo, até Antalya. As ruínas estão longe de tudo, menos de umas aldeias de pescadores junto ao mar, bastante mais abaixo.

Paulo esteve aqui, junto com outros apóstolos, e fez milagres. Num deles, numa ironia pouco vulgar nos Actos dos Apóstolos, ressuscitou um rapaz que se chamava “com sorte” (Eutychos) e que caiu de uma casa abaixo. A Bíblia explica porque é que ele caiu:

"7 (…) Paulo, que havia de partir no dia seguinte, falava com eles; e prolongou a prática até à meia-noite.
(…)
9 E, estando um certo jovem, por nome Éutico, assentado numa janela, caiu do terceiro andar, tomado de um sono profundo que lhe sobreveio durante o extenso discurso de Paulo; e foi levantado morto. "

(Actos dos Apóstolos, 20).

Em Alexandria Troas, Paulo teve a visão que o levou da Ásia para a Europa, quando lhe apareceu “um homem da Macedónia” que lhe pediu:

"9 (…) Passa à Macedónia, e ajuda-nos.

10 E, logo depois desta visão, procuramos partir para a Macedónia, concluindo que o Senhor nos chamava para lhes anunciarmos o evangelho."

(Actos dos Apóstolos, 16).

Hoje só se percebe que existiu Alexandria Troas por um arco e meia dúzia de paredes. Quando a visitei só se chegava lá por um caminho de terra batida fora da estrada secundária que bordeja o Mediterrâneo. Como aconteceu a muitos portos antigos, Alexandria de Troas está hoje bem dentro de terra, com o mar ao longe. O que impressiona é ver este arco erguer-se no meio de uma vastidão de erva alta e seca, de urze, das mil e uma flores, arbustos, e árvores que cobrem os campos da “Grécia”, com o cheiro intenso, irreproduzível dos lugares mediterrânicos. Há abelhas e o ruído das abelhas, mais o vento do mar e o calor que faz crepitar o campo. Está lá tudo, parece um estereotipo de um poema de Teócrito.

O trabalho do tempo é feito ali de acumulações visíveis. O porto foi-se afastando do mar, perdendo as suas funções e abandonado. A terra movida pelas chuvas, foi sepultando colunas, casas, muros e deixando apenas ver a parte de cima das construções. Com a terra vieram as plantas, e com a morte das plantas, mais húmus, mais terra. O chão em que passamos hoje é o tecto dos alexandrinos. Sentei-me num dos muros, talvez o lintel de uma casa, e não pude escapar à sensação do “espírito de lugar”, do heimatgeist. . O que está debaixo dos meus pés? Estátuas, moedas, cacos, mortos? É natural que tenha havido pilhagens durante todos estes séculos, mas nem uma multidão gigantesca pode ter pilhado tudo, nestas terras onde a Jónia está sepultada.

Como seria Alexandria Troas à noite? Se houver fantasmas é aqui que estão. O “homem da Macedónia”, que chamou Paulo à Europa, ainda estará lá? Não sei. Não paguei para ver.


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TARDE


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EARLY MORNING BLOGS 19

Matérias que não entram nos blogues: pobreza, desemprego, levar os filhos à escola às oito da manhã, cozinhar (sem ser por prazer), trabalhos domésticos, trabalho de um modo geral com excepção de algum trabalho intelectual, doenças, quase todas as formas de escassez. Lugares que não entram: locais de trabalho fora de universidades, escolas, firmas de informática, telecomunicações, e jornais, nove décimos de Portugal e muito mais ainda.

Pelo contrário, os caminhos do Magnólia à FNAC do Chiado, do Lux ao Algarve ou ao Alentejo, estão tão trilhados nos Moleskines que até deixam um sulco como os carros de bois nas pedras antigas.Nesta matéria não há distinções nem políticas, nem ideológicas, nem esquerda , nem direita.

Não é um julgamento de valor, porque também não entram no Abrupto, é uma constatação, chamemos-lhe assim, social. Para que não percamos a nossa (a minha) medida.


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VER A NOITE

O Marte que está hoje no céu nunca o vimos assim e nunca mais o vamos ver assim, a não ser que se acredite na metempsicose ou na reencarnação. Carpe diem.

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MARGEM SUL

Dia na Margem Sul, assim mesmo, com maiúsculas. Porque não é a margem sul do Tejo, mas a Margem Sul da história social e política portuguesa, uma combinação sem paralelo do único projecto industrial português do século XX com dimensão europeia, de uma cultura operária que não existe em mais lado nenhum, de uma população que forjou a sua identidade contra o salazarismo tendo sido primeiro anarquista e sindicalista e depois comunista.

No meio de uma vista de Lisboa de tirar a respiração, estão os restos de tudo isto em 300 hectares de terreno, uma vastidão enorme. Está um cemitério de fábricas, linhas-férreas, oleodutos, cais, barcaças, guindastes, tubagens, depósitos, escórias, cinzas, sucata, está um mausoléu (de Alfredo da Silva) que podia estar na RDA ou na Alemanha nazi, está a casa humilde do patrão mesmo no meio das fábricas, estão os restos dos bairros operários, está um quartel da GNR. E depois há os velhos, os homens e, em particular, as mulheres, duros, face cerrada, com muita vida difícil atrás, trabalhadores de profissões quase desaparecidas: corticeiros, caldeireiros, operárias têxteis, ensacadores, serralheiros.

Para perceber o seu talhe, experimentem pensar no que é passar horas e horas numa grande sala a encher sacos de adubo, quando muito com uma máscara rudimentar. Adubo no ar, adubo nas mãos, adubo na boca, adubo no corpo. Ou viver numa terra que tinha uma Rua do Ácido Sulfúrico e onde se respirava uma emulsão que picava nos olhos. Onde se “via” o ar.

Muitos destes homens e mulheres tiveram e têm ideias terríveis e, se alguma vez chegassem ao poder, era daqui que viria a “muralha de aço” e essa “muralha” triturava-nos sem hesitação. Muitos deles encarnavam o pior daquilo que Simone Weil chamava a “arrogância operária”. Mas hoje, perdida a história com H grande, atirados para um anacronismo que lhes deve ser cruel, porque é a derrocada da esperança da sua vida toda, sobra a história que eles próprios fizeram, e não a que desejaram fazer. E essa história é a do seu sofrimento, da sua coragem e tenacidade em dias em que o exercício destas qualidades se pagava muito caro.


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27.7.03



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EARLY MORNING BLOGS 18

Os blogues de ciência “organizam-se”, (contrariando o “hiato da complexidade” da formiga de langton, que espero que volte rapidamente ao “enxame”), no Ciência na blogosfera portuguesa por iniciativa do Follow the White Rabbit. A julgar pelos nomes, entre mochos, coelhinhos e formigas, isto está animado nos laboratórios!

Esta noite deverá ser a grande noite marciana. Só que duvido que com os céus portugueses se veja muita coisa. No Em Expansão Vertiginosa estão elementos interessantes para se olhar para Marte com olhos de ver.

Hoje desço à terra do aço, do ácido, do adubo. A não ser nos Estudos, o meu blogue hard, não encontro traços daquela parte de Portugal e dos portugueses, que tão importante foi na nossa história real e mítica, nesta atmosfera electrónica. E , no entanto, parte de todos nós foi mais feita ali do que na Academia das Ciências. É um mundo póstumo e hoje vou visitar os mortos.

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© José Pacheco Pereira
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