ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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2.8.03
UMA VELA
Aqui, fica-se sempre. Como a vela que Yuri observou na rua, num principio de noite russa, tão precoce, tão cedo e tão tarde. Como no poema de Pasternak que vem no Dr. Jivago, que traduzi a seguir. O poema resulta de um olhar casual: “Quando passavam na rua Kamerger, Yuri reparou numa vela que tinha derretido uma abertura na camada de gelo de uma das janelas. A luz parecia querer dirigir-se para a rua, quase conscientemente, como se estivesse a observar as carruagens que passavam ou esperando por alguém. “Uma vela arde na mesa, uma vela arde …” murmurou para si próprio – o princípio de alguma coisa confusa, informe, que esperava que assumisse uma forma. Mas nada lhe surgiu” O que mais gosto no poema é o toque chekoviano, algo que só a literatura russa do principio do século XX era capaz de dar, uma delicadeza infinita a tratar das coisas humanas, sem exageros ou dramas, só a frase simples e leve e terrível. Nos momentos mais difíceis, quando tudo soçobrava à nossa volta, lá ficava a vela ardendo na fronteira entre o quarto e a rua, na “noite de Inverno”. A presença da vela é a última esperança, a da persistência. Todas as tempestades Cobrem a terra. A vela arde em cima da mesa A vela arde. Como no Verão, as traças são empurradas Para a chama, Os flocos de neve batem Contra a janela. No vidro, anéis brilhantes de neve E fios de água escorrem. A vela arde em cima da mesa A vela arde. No teto iluminado As sombras oscilam. Braços e pernas, Cruzados pelo destino. Duas botas caem no chão Fazendo barulho, E lágrimas de cera Tombam no vestido. O nevoeiro de neve Não nos deixa ver. A vela arde em cima da mesa A vela arde. Um sopro vindo do canto Faz tremer a vela, Duas asas cruzam-se Como num anjo. Nevou muito durante Fevereiro Como é costume. A vela arde em cima da mesa A vela arde. (url)
© José Pacheco Pereira
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