ABRUPTO

2.8.03


UMA VELA

Aqui, fica-se sempre. Como a vela que Yuri observou na rua, num principio de noite russa, tão precoce, tão cedo e tão tarde. Como no poema de Pasternak que vem no Dr. Jivago, que traduzi a seguir. O poema resulta de um olhar casual:

Quando passavam na rua Kamerger, Yuri reparou numa vela que tinha derretido uma abertura na camada de gelo de uma das janelas. A luz parecia querer dirigir-se para a rua, quase conscientemente, como se estivesse a observar as carruagens que passavam ou esperando por alguém.
“Uma vela arde na mesa, uma vela arde …” murmurou para si próprio – o princípio de alguma coisa confusa, informe, que esperava que assumisse uma forma. Mas nada lhe surgiu


O que mais gosto no poema é o toque chekoviano, algo que só a literatura russa do principio do século XX era capaz de dar, uma delicadeza infinita a tratar das coisas humanas, sem exageros ou dramas, só a frase simples e leve e terrível. Nos momentos mais difíceis, quando tudo soçobrava à nossa volta, lá ficava a vela ardendo na fronteira entre o quarto e a rua, na “noite de Inverno”. A presença da vela é a última esperança, a da persistência.


Todas as tempestades
Cobrem a terra.
A vela arde em cima da mesa
A vela arde.

Como no Verão, as traças são empurradas
Para a chama,
Os flocos de neve batem
Contra a janela.

No vidro, anéis brilhantes de neve
E fios de água escorrem.
A vela arde em cima da mesa
A vela arde.

No teto iluminado
As sombras oscilam.
Braços e pernas,
Cruzados pelo destino.

Duas botas caem no chão
Fazendo barulho,
E lágrimas de cera
Tombam no vestido.

O nevoeiro de neve
Não nos deixa ver.
A vela arde em cima da mesa
A vela arde.

Um sopro vindo do canto
Faz tremer a vela,
Duas asas cruzam-se
Como num anjo.

Nevou muito durante Fevereiro
Como é costume.
A vela arde em cima da mesa
A vela arde.

(url)

© José Pacheco Pereira
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