LENDO VENDO OUVINDO ÁTOMOS E BITS de 3 de Fevereiro de 2007
Hoje no Diário de Notícias Sarsfield Cabral faz uma pergunta interessante, embora capciosa na forma como a desenvolve:
"Ora, se a ética é afastada numa sociedade amoral, porque não, então, legalizar a poligamia (e também a poliandria, para ser politicamente correcto), onde ela ocorra com alguma frequência? Na Holanda foi recentemente tentada a criação de um partido pedófilo..."
Duas precisões. Uma, a pergunta sobre a poligamia (mais do que sobre a poliandria, que não parece ter muitos exemplos no mundo, se exceptuarmos as muito controversas teses de Margaret Mead) não implica qualquer ilação de que só possa ser colocada quando " a ética é afastada numa sociedade amoral". Porquê? Tanto quanto se sabe a poligamia é legal em muitas partes do mundo, em particular em terras do Islão, e não me parece que tal se deva a qualquer "amoralidade" especial. Os bons, crentes e tementes a Deus, mórmons praticavam-na e praticam-na (às escondidas) sem que isso signifique que não pautem a sua vida por rigorosos e estritos padrões morais. Também não me parece que a poligamia implique qualquer instabilidade social própria, e o Utah é um estado particularmente pacífico e próspero. A pergunta sobre a legalização da poligamia (ou da poliandria) tem pois sentido e pode ser formulada sem qualquer quebra do tónus moral da sociedade.
A segunda afirmação, sobre a "a criação de um partido pedófilo" na Holanda, é evidentemente capciosa, pois nada há que permita comparar a poligamia com a pedofilia. É que entre outras coisas (sem diminuir a complexidade da questão da pedofilia que não é tão simples como se pensa) um dos principais problemas morais da pedofilia prende-se com a violência do poder dos adultos e da sua sexualidade sobre as crianças e com a incapacidade destas de livre arbítrio e auto-determinação individual. Ora indo por aqui na questão do aborto, falando de livre arbítrio e auto-determinação individual talvez não se chegue onde Sarsfield Cabral queria chegar...
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Também li o artigo de Sarsfield e permita-me discordar. Na minha opinião a questão da pedofilia está muito mais perto da questão do aborto que a questão da poligamia / poliandria.
Quer no aborto quer na pedofilia está em causa o poder de quem já atingiu a maturidade (ou pelo menos uma fase mais andiantada de maturidade) sobre um Ser (reforço o S grande) que ainda não a atingiu (ou pelo menos está numa fase mais atrasada). Aqui os valores morais de cada sociedade reflectidos nas respectivas leis e práticas regulam esta diferença de poderes.
A poligamia / poliandria entre adultos nas sociedades democráticas é livre. Se é reconhecida socialmente e dispõe de mecanismos de protecção, é outra questão. Ninguém está proibido de viver e/ou fazer sexo c/ mais do que um parceiro do sexo oposto. Que eu saiba não há nenhuma disposição legal em Portugal que o proíba. Se é aceite socialmente (ou deveria ser) que alguém chegue a um evento social e apresente 2 companheiras(os) / namoradas(os) aos restantes convivas é outra questão. Se, a exemplo do casamento heterosexual, há (ou deveria haver) mecanismos legais para a sua oficialização, respectiva protecção jurídica e eventuais apoios sociais, isso é outra questão.
Há que separar o que são proibições e respectivas penalizações a certas acções individuais do que são protecções jurídicas e aceitação social a certas opções individuais de vida.
(Miguel Sebastião)
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Pelo contrario, acho que Sarsfield Cabral chega perfeitamente onde quer chegar e que a comparacao aborto/pedifilia e muito apropriada, porque em ambos os casos, como bem diz, existe "a violência do poder dos adultos e da sua sexualidade sobre as crianças e com a incapacidade destas de livre arbítrio e auto-determinação individual."
A unica questao aqui e saber se o embriao/feto deve gozar dos mesmos direitos do que a crianca.
(Pedro Domingos)
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Não sei se a pergunta de F S Cabral é assim tão pertinente. O casamento é um contrato civil a que só adere quem concorda com as suas cláusulas. Aliás, é um bom exemplo de separação entre lei (que permite uma sucessão ilimitada de casamentos e divórcios) e moral cristã (que só permite casar uma vez e para sempre). Fora do contrato civil casamento, a “poligamia”, o ter múltiplos namorados, parceiros, engates, em simultâneo, é perfeitamente legal e, inclusive, aceite por alguns dos seus intervenientes.
(Mónica Granja)
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Há um cuidado especial que deve ser tido com as edições em linha e que mesmo uma edição mais cuidada (como a do Público) não tem. Por exemplo, hoje,
Cruzaram-se em Timor-Leste - uma das causas de Pedro Bernardo de Vasconcelos. Juntou-os o Direito, de que ela é hoje professora na Nova de Lisboa (privado) e ele professor na Universidade de Minho (público). Sobre o referendo as visões não podiam estar mais distantes. Por Adelino Gomes"
Quem é "ela"? "Ele" está identificado, "ela" não se consegue saber no texto que está em linha qual é a sua identidade. (Depois há um "Bernardo" onde devia haver um "Bacelar", mas isso é o menos...)
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A propósito de cuidados que não se têm nas notícias, em particular nesta do Público, a Nova de Lisboa é uma Universidade pública!
(Maria Helena Cabral)
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Na notícia do Pedro Bacelar de Vasconcelos diz-se também que ele foi Governador Civil do Porto aquando da questão da comunidade cigana, quando na verdade era Governador Civil de Braga.
LENDO VENDO OUVINDO ÁTOMOS E BITS de 2 de Fevereiro de 2007 (2) No noticiário da SIC das 20 horas uma peça muito pouco rigorosa sobre o aquecimento global, que incluía a afirmação de que os efeitos do aquecimento são idênticos aos de uma lareira numa sala fechada que "aquece tanto que até se pode morrer" (mais ou menos estas palavras). A não ser que a lareira pegue fogo à casa, morre-se é devido a envenenamento por monóxido de carbono e não pelo calor. Não pode ser...
LENDO VENDO OUVINDO ÁTOMOS E BITS de 2 de Fevereiro de 2007
Notícias da frente: Jimmy Wales fundador da Wikipedia fala do seu novo projecto Wikia. En passant, vendo esta pequena conferência, normalíssima, sem formalismos, dada numa aula de Evan Korth, num curso intitulado "Computer’s and Society" na NYU, percebe-se como funcionam as universidades americanas.
History has to live with what was here, clutching and close to fumbling all we had-- it is so dull and gruesome how we die, unlike writing, life never finishes. Abel was finished; death is not remote, a flash-in-the-pan electrifies the skeptic, his cows crowding like skulls against high-voltage wire, his baby crying all night like a new machine. As in our Bibles, white-faced, predatory, the beautiful, mist-drunken hunter's moon ascends-- a child could give it a face: two holes, two holes, my eyes, my mouth, between them a skull's no-nose-- O there's a terrifying innocence in my face drenched with the silver salvage of the mornfrost.
Há um aspecto do debate sobre o aborto que está muito presente nas tomadas de posição do "sim" e, particularmente, no "não": a impregnação do debate por palavras com um sentido cultural, político e religioso determinado, apresentadas como se fossem universalmente aceites e semanticamente unívocas. Como se o significado que lhes damos fosse universal e estivéssemos todos de acordo. É o caso da "liberdade" no argumentário do "sim" e da "vida" no do "não". Ambas as palavras são utilizadas correntemente como se fossem neutras, como se uns e outros tivessem que as aceitar pelo seu valor facial, como se não quisessem dizer mais do que o dizem na linguagem corrente.
Na verdade nenhum dos termos é "inocente", nenhum aponta para coisas que todos reconheçam, mas, pelo contrário, remetem para uma longa história cultural, política, filosófica e religiosa, que numas vezes é comum, noutras se distingue e se diferencia. Como num debate político ganha quem consegue impor um léxico que controla, na imposição e na aceitação de um ou de outro significado da palavra enganadoramente comum está também presente uma questão de poder. É muito nítido este problema quando se fala de "vida", quando numa manifestação se grita "viva a vida", o que por si só deveria levar de imediato a pensar que a "vida" que se vitoria é uma determinada interpretação da vida e não a vida tout court.
No vocabulário do "sim", a palavra "liberdade" é normalmente caracterizada, ou de "liberdade de escolha", ou de "liberdade do corpo", ou de "liberdade de consciência", remetendo para uma tradição derivada de uma ética laica, civil, jurídica e societal, que é a típica das sociedades ocidentais europeias e americanas dos últimos duzentos anos. Remete para a "felicidade terrestre" de que falava Saint-Just, e para toda uma história do pensamento que nos acompanha desde a Grécia clássica e que se tornou a ética civil dominante, como resultado de um complexo processo que nos deu os direitos humanos, a condenação da pena de morte e da tortura, o casamento civil e o divórcio, o "registo civil", a democracia política, a separação do Estado e da Igreja, a tolerância entre posições políticas, credos e culturas. Por muito que isso custe a muitos católicos, a Igreja não teve um papel central em nenhum destes adquiridos, que hoje aceita como natural ou mesmo civilizacional. Bem pelo contrário, combateu-os com veemência e foi só nas últimas décadas que abandonou a posição "antimoderna" de muitos dos seus papas entre meados do século XIX e XX. Foi em bom rigor só depois da Segunda Guerra Mundial, devido aos esforços de muitos teólogos e hierarcas da Igreja, incluindo o presente Papa, que se aceitou a modernidade como não sendo hostil ao munus religioso, que se aceitou a modernidade como benéfica, mesmo que problemática.
Este adquirido civilizacional de uma sociedade civil, de que fazem parte as Igrejas, mas que não é dominado pelas Igrejas, resultou de um processo em que participaram correntes contraditórias, jacobinas e liberais, nuns casos resultado da fundamentação da liberdade política no direito à dissidência religiosa (EUA), noutros das ideias da Revolução Francesa. Em ambos os casos, mesmo com tradições muito distintas, o resultado foi o mesmo: a predominância do "terrestre" na "felicidade" e na criação de sociedades que não têm nenhuma teleologia comummente aceite. Dentro dessas sociedades as religiões e as Igrejas tem um papel decisivo, em particular as grandes Igrejas matriciais do Ocidente, a católica apostólica romana, a ortodoxa grega, a reformada, a anglicana, mas esse papel varia não só em função do peso da instituição na "Igreja" como também pela laicização das sociedades civis, que no fundo aplicou a afirmação cristã de que se deve dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Dentro desse princípio, que molda o mundo em que vivemos, deve a vida (a vida e não a "vida") pertencer a César ou a Deus? Esta é a questão que está em causa neste referendo e está longe de ser simples a não ser para aqueles que consideram que existe na vida uma presença divina, uma "alma", um "sopro divino", que permanece intangível desde a fecundação, porque é "em potência" um ser humano. Muitos católicos envolvidos neste debate e a própria Igreja têm esta posição hoje. Mas só para se perceber que não é simples esta definição de "vida" há que lembrar que, por exemplo para alguns budistas e hindus, o mesmo "sopro divino" não se limita aos humanos, mas também está presente nos animais, que nós matamos sem respeito pela "vida" e eles não.
Mesmo para a Igreja esta interpretação da vida é relativamente recente. O Catecismo da Igreja Católica admitiu na sua primeira edição a pena de morte, e mesmo na aprovação das excepções previstas para o aborto na actual lei, aceites por muitos católicos, já há uma cedência à intangibilidade da "vida" como princípio.
O ensino tradicional da Igreja não exclui, depois de comprovadas cabalmente a identidade e a responsabilidade de culpado, o recurso à pena de morte, se essa for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto.
Se os meios incruentos bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a ordem pública e a segurança das pessoas, a autoridade se limitará a esses meios, porque correspondem melhor às condições concretas do bem comum e estão mais conformes à dignidade da pessoa humana. (Catecismo da Igreja Católica)
Na verdade, esta posição sobre a "vida" tem muitos pressupostos que são intrinsecamente religiosos e de fé, e que ou são aceites ou não, mas não podem ser considerados auto-evidentes para quem não tem fé. Implica, por exemplo, a ideia de que existe uma "alma" - chamemos-lhe o que quisermos vai sempre dar aí -, uma presença espiritual que está para além do corpo, um Logos de natureza radicalmente alheia à mecânica do corpo, que não se reduz a ele, que está para além dele, que é imortal. A "vida" a que se bate palmas nas manifestações é mais do que a do corpo, é a da criação divina, e compreende-se que, sendo entendida como pertencendo a Deus, não se queira dá-la a César, ao Estado moderno.
A forma como se discute a questão do aborto obscurece o facto de que o aborto não é um problema de fundo nas sociedades actuais. O que é um problema de fundo é o planeamento "familiar". Não custa admitir que, a prazo, com a evolução das técnicas anti-conceptivas, com a possibilidade da interrupção da gravidez quando estas falharem, com uma melhor educação sexual, com melhores serviços de planeamento "familiar", com uma melhor educação, acesso aos medicamentos e melhores condições de vida, o aborto se torne residual, se torne excepcional, deixe de ser um problema social para se tornar uma patologia individual. Pelo contrário, o controlo pela mulher, pelo casal, da maternidade permanecerá uma questão central da possibilidade de se garantir a cada um viver a vida que deseja. A ilicitude, com a carga de humilhação. dificuldade e preço que comporta, mantém o problema como sendo social, logo impede a sua mera assunção pelo Estado como sendo um problema individual, como sendo um problema de consciência no qual imperam apenas convicções próprias, ou uma moralidade assente na fé.
E se eu não acreditar que há uma "alma" e me basta o código genético, e se eu for materialista e entender o corpo como uma máquina aperfeiçoada apenas pela evolução natural e resumir o Logos a um produto dessa mesma máquina, e se eu entender que verdadeiramente tudo tem a ver com o "egoísmo" dos genes e for sociobiológico, será que tenho que aceitar esta visão da "vida" mesmo sem fé? E se eu considerar que não há "vida" passível de ser descrita pela ciência a não ser como excepção temporária e precária à segunda lei da termodinâmica e entender que para perceber essa violação da entropia que é o metabolismo, a que chamamos vida, não preciso de qualquer princípio vital? E se eu no meu laboratório não encontrar nem Deus nem a "vida", mesmo desejando encontrá-los, será que me coloco fora dos valores civilizacionais? E se eu considerar que uma coisa é esta "vida" divina e outra é a vida, mais modesta, menos programática, mais humilde, menos pretensiosa, mais "terrestre", que inclui não apenas a criação mas o desejo da criação, que implica mais do que o código genético, ou o acto da fecundação, mas a vontade de a criar, exigindo um "programa" que inclua a vontade dos seus progenitores, coloco-me à margem dos nossos valores civilizacionais? A "vida" a que se bate palmas é apenas uma das muitas interpretações da vida como valor, que assenta numa fé de carácter religioso e numa interpretação que depois extravasa para a aceitação selectiva de determinadas doutrinas éticas e "científicas" que estão longe de ser as únicas e de serem incontroversas.
A construção de uma ética social aceitável como um adquirido comum é obviamente muito complexa e implica contribuições de muitas origens com relevo para as tradições culturais com origem na religiosidade, que moldam muito uma sensibilidade profunda "popular", mas inclui sempre "práticas" que lhe escapam porque envolvem "problemas" que, sendo societais, são resolvidos em conflito com a norma religiosa ou civil. O aborto é claramente um desses casos. Reduzi-lo na lei a uma norma puramente religiosa-filosófica será sempre inaceitável ou porque redutor da realidade "vivida", ou porque colide com outras tradições culturais, políticas ou religiosas cujo estatuto ético não pode ser considerado menor.
Um outro problema consiste em querer fundar uma ética social monista reflectida na lei, como se fosse possível traduzir uma interpretação da "vida" num sistema de ilícitos e de penas. Essa interpretação está presente - aceito que um dos dilemas do acto de abortar tem a ver com um sentimento de mutilação, com um acto "vivido" também como de morte, por isso a questão da "vida" não pode ser afastada da discussão do aborto - mas não pode pretender dominar solitariamente a legislação. A tradição do cristianismo na convivência com as sociedades modernas do Ocidente implicou o abandono de algo parecido com a sharia, uma das dificuldades do Islão se adaptar à modernidade, pela dificuldade de conceber um Estado que seja de César, mesmo com Deus presente.
Mais: fundar uma ética social aceitável como reflexo de uma interpretação "espiritual" da vida, não seria muito distinto de querer fundar uma ética baseada na selecção natural, um darwinismo social, uma posição igualmente ancorada na tradição da nossa cultura ocidental.
Assim não nos entendemos porque me pedem que acredite, e acreditar não está ao alcance de todos. O que é que sobra? Um terreno comum entre a sociedade civil laica e a tradição cristã: a consideração da pessoa humana (também um conceito construído), um personalismo mínimo, que abrange realidades metapolíticas e metassociais mas não é metafísico, esse sim, produto comum da nossa história civilizacional que une laicos e crentes. É isto uma defesa do relativismo? Bem pelo contrário: nenhum relativismo vale quando se trata de pôr em causa a pessoa humana, mas a pessoa humana, cuja noção de "dignidade" une muito dos que defendem o "sim" e o "não", é uma coisa bem diferente da "vida" a que se bate palmas nas manifestações. Ah! e admite o aborto, sem lhe retirar todos os dilemas morais e religiosos, tal como está legislado na maioria dos países europeus e nos EUA, que foram feitos pela nossa civilização. Somos nós a excepção, não eles.
É, por isso, necessária muita prudência ao usar as palavras como valores civilizacionais comuns, quando o que é civilizacional é a convivência de diferentes entendimentos das mesmas palavras e não tanto uma determinada interpretação, muito menos imposta por lei, muito menos pretendendo o monopólio da moral e da civilização.
(No Público de 1 de Fevereiro de 2007)
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Quando no seu texto refere que o Catecismo da Igreja Católica admitiu a pena de morte, não deve esquecer-se – aliás, cita-o no passo seguinte – que o fez num conflito de valores, entre o valor da vida e o da justiça («culpado», «agressor injusto»). Nunca, pelo menos nos tempos modernos, a Igreja aprovou a morte como meio legítimo, especialmente a morte intra-uterina, mesmo em situações extremas.
Aliás, quanto diz que muitos católicos aprovaram e concordam com a actual lei – a qual, diga-se, é um dado adquirido e poucas ou nenhumas vezes foi e tem sido sequer discutida como uma concessão à morte – tem razão ao sublinhar que isso corresponde a uma cedência à intangibilidade da vida como princípio, constituindo algo com o qual os católicos convivem mal e com algum desconforto. Uma das características da Igreja é o radicalismo dos seus princípios. Não se trata de radicalismo no sentido “mau” e obtuso do termo, mas sim no de que existem valores relativamente aos quais não se pode transigir. A Vida, com ou sem aspas, é um desses valores. Eu sei que choca ouvir que mesmo em caso de violação a mulher deve levar a gravidez até ao fim, mas numa análise crua e desprovida de emoção, é, na verdade, a única posição consentânea com a tradição da Igreja e os valores por si defendidos. O que me incomoda no debate acerca do tema é a falta de tolerância que existe – de parte a parte – embora francamente me pareça existir mais da parte do “sim” do que do “não” (apesar dos primeiros dizerem precisamente o contrário), relativamente às posições contrárias. Dizer a um católico convicto que, ao defender “a outrance” a ilegitimidade do aborto está a ter uma posição bárbara face aos direitos das mulheres e da sua condição social, para além de ser retrógrado, não alinhado com os países (que, não por acaso, são nestes casos sempre chamados de democracias) avançados, etc., é estar a ofendê-lo e descentrar o debate do que verdadeiramente interessa.
As convicções de cada um neste debate não estão em causa, nem são referendáveis. O que deve ser referendável são as implicações e consequências que têm uma e outra posição. Parece-me que, com pequenas excepções, isso tem sido afastado, resta saber se deliberadamente.
(Rui Esperança)
Concordo com os cuidados a ter no debate sobre o aborto. Mas não podemos fugir aos limites da comunicação quando queremos debater temas como o aborto. Não podemos fugir aos significados assimétricos que as facções em debate atribuem aos conceitos de ‘vida’ e ‘liberdade’ e a outros que frequentemente são lançados na tentativa de demarcar a fronteira entre o certo e o errado, entre o bom e o mau, por qualquer uma das partes, o ‘sim’ e o ‘não’ (que são eles próprios os demarcantes mais ineficazes e imprecisos de todos!, afinal sim ou não a quê?, à vida?, à ‘liberdade’?).
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O que pretendemos deste debate?
Queremos de facto encerrar a demarcação definitiva do que é a ‘vida’, a ‘felicidade’, a ‘liberdade’ ou a ‘alma’? Depois do referendo, estes conceitos continuarão a ser interpretados de forma diferente e continuaram a ser âncoras da opinião, armas de arremesso ou trincheiras morais. Serão sempre instrumentos da comunicação e sempre que necessário. Por isso, quando o referendo se realizar, os cinzentos continuarão a ser cinzentos, não se terão desenlaçado em preto e branco.
Depois do referendo, num contexto legal que as penaliza ou não, as mulheres que decidirem interromper por sua vontade uma gravidez não desejada continuarão a fazê-lo. Continuaremos a tomar as suas decisões como certas ou erradas, boas ou más. Continuaremos a julgá-las ou não, a compreendê-las ou não e a ajudá-las ou não. Porque as leis não encerram a capacidade de mudar definitivamente os homens e as mulheres. Nem demarcam definitivamente o que é de César do que é de Deus.
(Dinis Martins)
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(...) quanto à questão que agora nos ocupa, a do SIM ou NÃO, quereria dar a minha achega:
Tanto os dum lado como os do outro declaram, por um lado, que o que querem é o bem e, por outro, que o aborto é um mal. Mas, se queremos ser coerentes até ao fim, pergunto: poderemos enveredar pelo caminho do mal com o objectivo de dele tirar um bem, sem termos de assumir as últimas consequências da aplicação deste princípio? Será que os fins justificam os meios, tout court?
A verdade é que, antes disto, está a questão de avaliar o que é o mal. Mas esta questão, pergunto: poderá reduzir-se a um mero problema de cultura e de civilização? Esqueçamos por agora as religiões; não estamos antes perante um problema filosófico?
Poderemos nós resolver o problema básico de saber o que é o homem, se nos limitamos a nadar em filosofias de cariz idealista ou meramente existencialista? Não precisaremos de dar o salto que dê firmeza ao valor da razão em ordem a chegarmos a uma verdade objectiva? Ou teremos, pelo contrário, de nos resignar com ficar no campo do cepticismo, não importa sob que formas mais ou menos ilustradas?
NUNCA É TARDE PARA APRENDER: A "CULPA" É MESMO DE LEO STRAUSS?
Duvido, duvido muito e depois de ler este livro ainda duvido mais. A "culpa", esclareça-se, é a "culpa" do "império", de Bagdad, da hostilidade anti-árabe, de responsabilidade dos "neo-cons", essas personificações modernas do Dr. Strangelove.
Este é um daqueles livros que numa ou noutra página, conseguem mostrar uma grande qualidade analítica e depois falhar o ponto essencial: mostrar até que ponto existe uma relação entre os ensinamentos de Leo Strauss, o seu grupo de discípulos e o chamado neo-conservadorismo que teria dominado a presidência "imperial" de Bush filho. É um livro muito bem escrito, fluente, rápido, cheio de insights e pequenas histórias académicas típicas do mundo das grandes universidades americanas, mas está longe de corresponder à tese do título.
Não é que não haja relações e influências entre Leo Strauss e os seus alunos "imperialistas", como aliás acontece com outros autores e académicos europeus e americanos, só que nunca é clara no livro a relação de causa. O ponto é tanto mais falhado quanto sempre que Anne Norton vai mais fundo no pensamento de Strauss (por exemplo na importância que atribuía a autores como Maimónides ou al-Farabi na construção de uma ciência política) mais distante este aparece do neo-conservadorismo dos seus alunos. Strauss, um judeu fugitivo da Europa, como Hannah Arendt, sempre se preocupou com a difícil junção entre a Atenas racional e a Jerusalém da revelação, com o estado totalitário nazi e comunista, e isso foram antídotos contra tomar à letra a dicotomia "amigo/inimigo" como fundadora da política, que importara de Schmitt. Talvez seja por isso que o livro é mais sobre os "straussians", descritos quase como uma seita maçónica, do que sobre Strauss.
Sobre os "straussians", Anne Norton, ela própria aluna de Joseph Cropsey, autor com Strauss da History of Political Philosophy, consegue uma leitura que oscila entre uma atracção que não consegue evitar, tal o brilhantismo e a seriedade intelectual e académica de muitos deles, e a recusa da sua política, ou do que interpreta como sendo a sua política. É nessa contradição que se encontram as melhores páginas deste livro, como quando escreve sobre o papel da guerra
"Strauss saw, as Nietszche had before him, hazards in the softness and civility of modern life.(...) Such a life, as Nietszche, Schmitt. Strauss and Kojève feared, was a life of small pleasures and small ambition, few risks and few achievements, few dangers and little greatness of soul. The old virtues of courage and daring would be lost. people bred to so quiet life would be as cats are to tigers, tamed and diminished."
e, logo em seguida, em resposta, Norton escreve uma apologia do "Last Man" da democracia, "ordinary people who will take on the burdens of greatness at need (...) Democracy has thaught them that honour is greater than glory". Analisando o conservadorismo americano das últimas décadas, Norton revela bem algumas das suas contradições e algumas das suas peculiaridades especificamente americanas - o seu "revolucionarismo", por exemplo, muito pouco conservador, e que chocaria os seus congéneres europeus se os houvesse - mas não escapa à amálgama e à facilidade como quando compara alguns autores como Perle, Kristol e Wolfovitz ao pensamento da Al-Qaida e ao fundamentalismo muçulmano. (E no entanto quando fala da jihad, quase que acerta porque o conceito islâmico é bem menos simples do que se pensa e aplica-se como uma luva a alguns textos neo-conservadores...)
LENDO VENDO OUVINDO ÁTOMOS E BITS de 30 de Janeiro de 2007 Acho obscena, assim mesmo: obscena, a utilização de crianças e adolescentes em programas como o Prós e Contras de ontem para falarem ou se manifestarem sobre o aborto. Tal me parece ser da mesma exacta natureza que o inquérito sobre os costumes sexuais dos pais, que tanta condenação suscitou e bem. Antigamente, no tempo em que os animais falavam, havia uma regra deontológica dos jornalistas que impedia entrevistas a menores sobre estes temas. Caducou?
NOTA: A Fátima Campos Ferreira informou-me que nenhum dos entrevistados tinha menos de 20 anos. Fica feita a correcção e apresentadas as desculpas devidas. Quanto à presença no programa de adolescentes, que se manifestaram como se de uma claque se tratasse, quer neste quer no anterior programa sobre o aborto, ela é incontroversa. Reitero no entanto, a referência a entrevistas a crianças e adolescentes sobre o aborto, em noticiários da RTP, como aquele em que se cobriu uma manifestação "pela vida". A questão deontológiva que pretendi levantar permanece váilida.
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Um sinal de como as coisas estão para além da nossa enganadora vaidade futebolística: petição para manter o português na Universidade de Cambridge.
To: University of Cambridge At present, papers on Portuguese Language, Linguistics, Literature, History and Culture of Portugal, Brazil and Portuguese-speaking Africa, covering periods from the 16th century to the present day are taught as a full Tripos language in the University of Cambridge. The Portuguese government grants 30 000 euros (about £ 20 000) to the University of Cambridge for their teaching of Portuguese, via the Instituto Camões which sponsors Portuguese language and their teaching worldwide. Portuguese in Cambridge is a thriving and growing subject. It is vigorous in terms of research and publications and has been growing exponentially in student applications. Past postgraduates all now hold academic posts either in Russell Group universities or in major universities in the USA. Portuguese has been twice singled out for praise by University Reviews of the Faculty of Modern and Medieval Languages, and it is officially regarded by the Faculty and by the University as one of its success stories. The Faculty of Modern and Medieval Languages has now endorsed the proposal to suspend Portuguese as a full Tripos language on financial grounds. This proposal was initiated not by the University but by the Department of Spanish and Portuguese, under no pressure and at no suggestion from either the University or the Faculty of Modern and Medieval Languages, and with total disagreement from the University Teaching Officer in Portuguese. If this proposal goes ahead, no student, whether undergraduate or postgraduate, will emerge from a degree in Cambridge with more than a reading knowledge of Portuguese. A postgraduate degree attempted by anyone with reading but no written or oral command of the language, would almost certainly be doomed to failure. This would also entirely discredit scholarship in that subject as well as the institution that purported to grant it. If the University lacks the funding it has not been because of lack of payment by the Instituto Camões, and therefore it can be hardly understandable. This situation is a shame and it brings the University into disrepute. Portuguese is the fifth most spoken language in the world (about 232 000 000 native speakers), and a language of the European Union. It's the language of one of the world's largest and growing economy (Brazil). Portuguese as a language has an irrefutable role in World's History and Literature. If you wish to object and express your views on the proposed closure of Portuguese at Cambridge, please sign this petition.
Sincerely, The Undersigned
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A petição para manter o ensino do português em Cambridge faz naturalmente sentido e assinei-a. Contudo, gostaria de fazer um par de comentários, espero que construtivos. Primeiro, talvez fosse útil apresentar simultaneamente o texto da petição em português, já que nem todas as pessoas interessadas em lê-la dominarão necessariamente o inglês e todas as assinaturas são importantes. Segundo, o texto diz que "o governo português disponibiliza 30.000 euros (cerca de 20.000 libras) à Universidade de Cambridge pelo seu ensino do português, por via do Instituto Camões" e, mais adiante, "Se a Universidade tem falta de fundos, ela não se deve a falta de pagamento por parte do Instituto Camões e, como tal, é dificilmente compreensível." Não será este raciocínio um pouco simplista, podendo mais tarde fornecer razão à Universidade de Cambridge para dar pouca importância à petição? Se as referidas 20.000 libras são uma contribuição anual do governo português (o texto não especifica), parece-me bem magra, não chegando sequer para cobrir o salário dum docente. E se esta é a única ou uma das principais fontes de financiamento do ensino do português na Universidade, então é afinal compreensível (o que não quer dizer louvável) que se considere a hipótese de lhe pôr fim... Julgo que a questão fulcral é a de como deve ser dividida a responsabilidade de financiamento do ensino da língua, entre uma Universidade estrangeira e o governo português. Assim, pergunto-me se a Universidade de Cambridge será o único destinatário óbvio duma petição como esta.
(Pedro Gomes)
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Após ter recebido o tal email enviado pelo Sr. Pedro, decidi responder detalhadamente acerca da sua questão. Recebendo agora este último email que transcrevi pensei que seria igualmente adequeado dar uma resposta mais correcta e coerente sobre o que se está a passar com o curso de Português em Cambridge. Respondendo à primeira pergunta, a sociedade lusófona de cambridge decidiu expor esta petição como forma de divulgar mundialmente através da rede o que se está a passar. Naturalmente, esta petição é dirigida à Vice-Reitora e ao conselho da Universidade, pois são estas pessoas que ultimamente, vão decidir o destino do curso de Português. Expor o texto também na língua portuguesa seria apenas desperdício de tempo. Pelo volume de assinaturas já obtido, não vejo que o texto em Inglês seja um problema. Mais que isso, demonstra que países pequenos como o nosso conseguem ter um nível de ensino de línguas bastante positivo sem ter universidades mega-financiadas como a de Cambridge. Relativamente ao Instituto Camões, há que notificar que é das poucas instituições a financiar um curso específico dentro da universidade e não um departamento. Suficiente ou não, penso que seja, pois o Instituto não financia exclusivamente a universidade de cambridge e tem investimentos em pelo menos 5 insituições britânicas incluíndo Oxford, que curiosamente, tem um departamento exclusivo de português e estudos lusófonos. Se adicionarmos os valores investidos noutros países lusófonos onde são enviados professores de português, vemos que o montante investido largamente ultrapassa os 2 milhões de euros (estando a arredondar muito por baixo!). A questão central, não é a do montante investido pelo Instituto nem é se o governo investe bem ou mal na divulgação da língua portuguesa, visto que o Português é falado em vários países e nenhum deles financia nenhum curso no estrangeiro segundo sei. Isto não tem rigorosamente nada a ver com o governo português nem com Portugal. Fico bastante triste ao ler certos comentários expostos na petição a culparem o governo português por isto (qualidade que, infelizmente, é característica do nosso povo). Tirando o óbvio do caminho, passarei a explicar o que se sucedeu concretamente com esta situação. Há já vários anos que o curso de Português (chamado de Tripos, que deriva de tripartido, portanto um ano tronco comum português-espanhol, segundo de especialização, 3º residencia num país nativo da língua a aprender, e 4º tese e estudos aprofundados da língua e literatura) tem sido um patinho feio do departamento de espanhol e português pois, com muito menos recursos, conseguiu atingir um elevado número de alunos, excelente qualidade de pesquisa reconhecida pela RAE (a instituição britânica que qualifica o nível de pesquisa) e os seus pós-graduados, (doutorados e mestres) conseguiram postos em universidades de renome nos estado unidos e Reino Unido. Tal como diz a petição, já foi distinguido como caso de sucesso. Ora bem, o director e sub-director do departamento de espanhol e português, curiosamente ligados ao ensino de espanhol, decidiram, por si próprios e sem a consulta prévia da University Teaching Officer do curso de Português, "restruturar" o tripos português. Restruturar, significa acabar com o estatuto de tripos (licenciatura) e apenas leccionar uma cadeira no 2º ano do curso de espanhol que é uma introdução básica ao português, equivalente ao nível que se ensina a crianças de 7-8 anos em Portugal, cadeira essa que já existe e é leccionada prefrencialmente a pessoas de outros cursos de línguas como opcional. Ora, a decisão desta "restruturação" foi ditada por "motivos financeiros". Isto, sem qualquer incitação por parte da faculdade de linguas ou da universidade. A proposta foi aceite pela Faculdade porque partiu do próprio director... Tudo isto sem: anunciar aos alunos que estava uma proposta na mesa para a tal restruturação. Esta foi anunciada como "fait acompli"; nem uma palavra ao instituto camões (portanto, queriam continuar a receber o dinheirinho sem haver nada para financiar), sendo este informado primeiramente, veja só, pelo jornal dos estudantes de cambridge o Varsity. Ultimamente, tudo feito pela "porta do cavalo" sem respeitar maioria das regras da universidade no que toca a término de licenciaturas. A esperança do departamento de espanhol e português, era que, acabava-se com isto, é português ninguém se interessa, faz-se pouco barulho e continua-se a receber o dinheirinho para sustentar o espanhol. Óbviamente, especulo, mas sem dúvida que, pelos procedimentos apresentados, foi este o raciocínio dos professores de espanhol que lideram o departamento. Felizmente, há muitos alunos de espanhol que estão a apoiar totalmente a luta contra o fecho de português. Explanado mais ou menos o historial do que se passa, aqui vai em grosso modo, o comunicado oficial da pro-vice-reitora para a educação: A "restruturação" acontece para "salvar" o ensino de língua portuguesa na universidade. O curso tem corrido com problemas de staff pois estes têm uma sobrecarga horária que não é permitida pelo EXCESSO de alunos a tirar o curso. Finalmente, as razões para fechar não são totalmente financeiras... Bem, tire as conclusões que quiser, mas pelos vistos, o curso vai fechar porque é popular demais! Para mim, faria mais sentido abrir um departamento de português independente e financiá-lo correctamente com mais docentes do que acabar com o curso. Felizmente, o conselho para a educação da Universidade constituído por 10 membros, ouviu os alunos, concordou e classificou a proposta do departamento como "chocante" e sem fundamento. 9 dos 10 votaram para revisão da proposta, isto é, vai para trás para ser reformulada e refeita, pois os argumentos apresentados não são minimamente válidos para acabar com uma licenciatura (ora que grande surpresa...).
(Deve-se) tentar organizar o máximo número de personalidades para contactar a universidade e mostrar o desagrado. Isto é diplomaticamente grave e o governo e partidos políticos só podem ajudar para que a proposta renovada nunca seja aceite. Deixo desde já, a morada e contacto da Vice-Reitora da Universidade de Cambridge:
Prof. Alison Richard, Vice-Chancellor, University of Cambridge, The Old Schools, Cambridge CB2 1TT United Kingdom
(André Almeida B.A. (cantab hons) Mphil Student Department of Biological Anthropology, Leverhulme Centre for Human Evolutionary Studies, Fitzwilliam Street Cambridge U.K.)
L'hiver, nous irons dans un petit wagon rose Avec des coussins bleus. Nous serons bien. Un nid de baisers fous repose Dans chaque coin moelleux.
Tu fermeras l'oeil, pour ne point voir, par la glace, Grimacer les ombres des soirs, Ces monstruosités hargneuses, populace De démons noirs et de loups noirs.
Puis tu te sentiras la joue égratignée… Un petit baiser, comme une folle araignée, Te courra par le cou...
Et tu me diras : "Cherche !", en inclinant la tête, - Et nous prendrons du temps à trouver cette bête - Qui voyage beaucoup...
Há muitos anos que não ia à casa de Camilo em S. Miguel de Ceide e fiquei preso na memória de uma imagem da casa meio abandonada, sem mobiliário (o pouco que tinha sobrevivido ao incêndio, ou que tinha a fama de ter sobrevivido, porque havia a suspeita de que quase nada de original sobrava), a árvore, o fantasma do suicida, num dia apropriado de chuva e cinzento. Como as imagens da memória são poderosas pensava que ia encontrar tudo quase na mesma, lá bem no meio do Minho ruralíssimo e "camiliano"... Engano, claro.
Agora voltei lá para apresentar o habitual pas de deux "um livro-um filme" e só fiz escolhas bizarras, to say the least. Escolhi um livro de que não há edição decente em português (Do Androids Dream of Electric Sheep? de Philip K. Dick) e um filme, Blade Runner de Ridley Scott, que não podia estar mais afastado do fantasma habitante da casa. Eu lia as frases da exposição que estava no anexo do Siza e só me saíam frades e fidalgos e viúvas e estudantes e malfeitores, enterrados nas quintas minhotas ou nos penhascos do Marão. Bem me esforcei para pensar um único momento da dúzia de romances de Camilo que li (sempre são duzentos e muitos títulos) que pudesse ter alguma coisa a ver com os andróides do filme, ou com máquinas. Nada. Só me vinha à memória o elevador do palacete do Jacinto, que também tinha vontade própria, mas lembrar o Eça na Casa de Camilo podia ser funesto.
Atravessando o largo em frente, numa noite glacial, com todas as estrelas no seu sítio, entre o granito da capela e o alinhamento das janelas do casarão antigo, lembrando o meu Deckard e a minha Pris, desisti de todo de juntar o que não podia ser junto. E lá comecei com a pergunta "o que é o homem?" que Dick disfarçou dentro do teste de se saber se também os andróides sonham com carneirinhos eléctricos. Sonham eles e sonhamos nós.
APRENDER COM CAMILO CASTELO BRANCO: "HÁ-DE CHORAR AINDA QUE LHE CUSTE"
"A todos os que lerem É uma historia que faz arrepiar os cabelos. Há aqui bacamartes e pistolas, lágrimas e sangue, gemidos e berros, anjos e demónios. É um arsenal, uma sarrabulhada, e um dia de juízo! Isto sim que é romance! Não é romance; é um soalheiro, mas trágico, mas horrível, soalheiro em que o sol esconde a cara, (...)
Há aí almas de pedra, corações de zinco, olhos de vidro, peitos de asfalto? Que venham para cá. Aqui há cebola para todos os olhos; Broca para todas as almas; Cadinhos de fundição metalúrgica para todos os peitos. Não se resiste a isto. Há-de chorar toda a gente, ou eu vou contar aos peixes, como o padre Vieira, este miserando conto. (...) Tenha paciência; há-de chorar ainda que lhe custe."
Camilo dirige-se assim aos seus leitores prevenindo-os que O Que Fazem Mulheres, um "romance filosófico", tinha "cebola para todos os olhos". Ou choravam, ou ele ia pregar aos peixes. Excelente leitura para estes tempos em que o pathos escorre das paredes, blogues e ecrãs (a mesma coisa aliás) e o mundo se torna pegajoso de tantos sentimentos à solta e tanto amor a pingar por todo o lado. Bem sei que é o "espectáculo", - Camilo também sabia, chamava-o "soalheiro" -, o pano de fundo da superficialidade moderna e dos Pequenos Homens (e Mulheres) de quem Nietzsche não gostava. O que se há-de fazer senão fortalecer "almas de pedra, corações de zinco, olhos de vidro, peitos de asfalto" e sorrir?
(E ler Camilo que tem vindo a ser publicado numa excelente edição da Caixotim, já com doze livros cá fora.)
Arise my body, my small body, we have striven Enough, and He is merciful; we are forgiven. Arise small body, puppet-like and pale, and go, White as the bed-clothes into bed, and cold as snow, Undress with small, cold fingers and put out the light, And be alone, hush'd mortal, in the sacred night, -A meadow whipt flat with the rain, a cup Emptied and clean, a garment washed and folded up, Faded in colour, thinned almost to raggedness By dirt and by the washing of that dirtiness. Be not too quickly warm again. Lie cold; consent To weariness' and pardon's watery element. Drink up the bitter water, breathe the chilly death; Soon enough comes the riot of our blood and breath.
A turbulência vinda das bancadas parlamentares do PSD e do CDS contra as respectivas direcções partidárias só surpreende quem não conheça o modo como elas são constituídas e a mecânica que as rege. Habitualmente pacíficas e obedientes, as actuais bancadas da oposição parecem escapar à regra dessa placidez. Mas o mesmo que as faz sossegadas fá-las agora turbulentas. É a primeira lei da termodinâmica de uma bancada parlamentar: os deputados fazem tudo que é possível para assegurar que voltam a ser escolhidos pelos seus partidos para lugares elegíveis. É uma lei da conservação do lugar, que em períodos fartos implica estarem muito quietos para ficarem na fotografia (como no PS), noutros mexerem-se para ajudarem a correr qualquer direcção partidária que os possa afastar, o supremo poder de uma liderança partidária em tempos de vacas magras.
Para as bancadas do CDS/PP e do PSD é óbvio que a lei da conservação dos lugares passa por garantir que nem Ribeiro e Castro nem Marques Mendes estejam no seu cargo daqui a um ano e possam condicionar as escolhas dos deputados. Para isso tem que se mexer e muito e desde já. As bancadas parlamentares do PSD e do CDS/PP são bancadas da derrota: constituídas na sua maioria pelos deputados que foram escolhidos, com considerável sectarismo partidário, nas direcções de Paulo Portas e Santana Lopes, e que são um símbolo vivo do desastre eleitoral de 2005. Ambos sabiam que iam perder as eleições e que o seu poder dentro dos partidos poderia ser contestado, logo construíram bancadas de fiéis que lhes assegurassem um poder alternativo. É evidente essa situação no CDS/PP, e nas notícias de fontes anónimas da bancada parlamentar do PSD de que desejariam Santana Lopes como Presidente do Grupo Parlamentar. É tudo muito transparente e vai ser tudo muito mais turbulento. Estamos só nos preliminares e como é uma luta de matar ou morrer (pelo lugar) promete ser feia.
LENDO VENDO OUVINDO ÁTOMOS E BITS de 28 de Janeiro de 2007
Mais absurdos: no sítio do Diário de Notícias (ou deveria dizer do Papagaio Amarelo?)
O Diário de Notícias, promove o seguinte "inquérito":
"Concorda com a pena de seis anos de prisão imposta ao pai adoptivo da criança de Torres Novas?"
Eu, simples cidadã que gosta de emitir sentenças, principalmente sendo absolutamente irresponsável pelo resultado,e ainda por cima num caso que "puxa ao sentimento", fiquei mesmo satisfeita. Vou votar, vou julgar.
Com uma declaração de voto que é também uma pergunta: concorda que jornais nacionais de créditos firmados provoquem deliberadamente equívocos, desinformem, se aproveitem da especial emotividade de factos que eles transformam em "notícia", para induzir os leitores na doce ilusão de que têm uma palavra a dizer num processo judicial cujos elementos desconhecem e para os quais não estão habilitados a decidir?
(RM)
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Será que ninguém acha estranho, para não dizer ilegal, que se conheçam em detalhe "planos do ministério público", opiniões do PGR através de "fontes", deliberações do Tribunal Constitucional que é suposto ainda não terem sido tomadas, decisões futuras negociadas (como, com quem, com que base legal?) entre "agentes da justiça" e "especialistas", que permitirão esta ou aquela "solução", a propósito do chamado "caso Esmeralda", todas no sentido de "libertar" o "pai do coração" da prisão, e de entregar a criança à família "do coração"? É difícil encontrar melhor exemplo da degradação da lei, do direito, da justiça, ao sabor de uma "justiça mediática" feita pela vox populi, do que o que se pode ouvir em notícias como as que o Telejornal da RTP está a dar. Passou tudo na lei, no direito, nos tribunais a ser plástico, moldável, adaptável, desde que haja uma campanha de opinião e uma causa popular.
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Os militantes, soldados de causas e de partidos, não compreendem que, independentemente do mérito das suas causas e do valor dos seus partidos, as suas prioridades não são as das pessoas comuns.
Todo o debate sobre o aborto está inquinado pelo que interessa aos militantes, pelos ganhos que os militantes querem levar para o exército de que são soldados no dia 12 de Fevereiro..
No concurso dos Grandes Portugueses são os militantes que votam em Salazar e Cunhal. Se ganhar um ou outro haverá brilho nos olhos em muitos locais de trabalho. "Ganhar" por interposta figura faz bem aos egos dos militantes.
Nos blogues há muitos militantes.
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Concordo consigo que quem vota em Cunhal e em Salazar são os militantes. Mas não acha que o numero de votos de cada um (19 000 e 12000) é mais um prova que a militância está em baixa ?
His little trills and chirpings were his best. No music like the nightingale’s was born Within his throat; but he, too, laid his breast Upon a thorn.
II. The Pretty Lady
She hated bleak and wintry things alone. All that was warm and quick, she loved too well- A light, a flame, a heart against her own; It is forever bitter cold, in Hell.
III. The Very Rich Man
He’d have the best, and that was none too good; No barrier could hold, before his terms. He lies below, correct in cypress wood, And entertains the most exclusive worms.
IV. The Fisherwoman
The man she had was kind and clean And well enough for every day, But, oh, dear friends, you should have seen The one that got away!
V. The Crusader
Arrived in Heaven, when his sands were run, He seized a quill, and sat him down to tell The local press that something should be done About that noisy nuisance, Gabriel.
Vl. The Actress
Her name, cut clear upon this marble cross, Shines, as it shone when she was still on earth; While tenderly the mild, agreeable moss Obscures the figures of her date of birth.