Há um aspecto do debate sobre o aborto que está muito presente nas tomadas de posição do "sim" e, particularmente, no "não": a impregnação do debate por palavras com um sentido cultural, político e religioso determinado, apresentadas como se fossem universalmente aceites e semanticamente unívocas. Como se o significado que lhes damos fosse universal e estivéssemos todos de acordo. É o caso da "liberdade" no argumentário do "sim" e da "vida" no do "não". Ambas as palavras são utilizadas correntemente como se fossem neutras, como se uns e outros tivessem que as aceitar pelo seu valor facial, como se não quisessem dizer mais do que o dizem na linguagem corrente.
Na verdade nenhum dos termos é "inocente", nenhum aponta para coisas que todos reconheçam, mas, pelo contrário, remetem para uma longa história cultural, política, filosófica e religiosa, que numas vezes é comum, noutras se distingue e se diferencia. Como num debate político ganha quem consegue impor um léxico que controla, na imposição e na aceitação de um ou de outro significado da palavra enganadoramente comum está também presente uma questão de poder. É muito nítido este problema quando se fala de "vida", quando numa manifestação se grita "viva a vida", o que por si só deveria levar de imediato a pensar que a "vida" que se vitoria é uma determinada interpretação da vida e não a vida tout court.
No vocabulário do "sim", a palavra "liberdade" é normalmente caracterizada, ou de "liberdade de escolha", ou de "liberdade do corpo", ou de "liberdade de consciência", remetendo para uma tradição derivada de uma ética laica, civil, jurídica e societal, que é a típica das sociedades ocidentais europeias e americanas dos últimos duzentos anos. Remete para a "felicidade terrestre" de que falava Saint-Just, e para toda uma história do pensamento que nos acompanha desde a Grécia clássica e que se tornou a ética civil dominante, como resultado de um complexo processo que nos deu os direitos humanos, a condenação da pena de morte e da tortura, o casamento civil e o divórcio, o "registo civil", a democracia política, a separação do Estado e da Igreja, a tolerância entre posições políticas, credos e culturas. Por muito que isso custe a muitos católicos, a Igreja não teve um papel central em nenhum destes adquiridos, que hoje aceita como natural ou mesmo civilizacional. Bem pelo contrário, combateu-os com veemência e foi só nas últimas décadas que abandonou a posição "antimoderna" de muitos dos seus papas entre meados do século XIX e XX. Foi em bom rigor só depois da Segunda Guerra Mundial, devido aos esforços de muitos teólogos e hierarcas da Igreja, incluindo o presente Papa, que se aceitou a modernidade como não sendo hostil ao munus religioso, que se aceitou a modernidade como benéfica, mesmo que problemática.
Este adquirido civilizacional de uma sociedade civil, de que fazem parte as Igrejas, mas que não é dominado pelas Igrejas, resultou de um processo em que participaram correntes contraditórias, jacobinas e liberais, nuns casos resultado da fundamentação da liberdade política no direito à dissidência religiosa (EUA), noutros das ideias da Revolução Francesa. Em ambos os casos, mesmo com tradições muito distintas, o resultado foi o mesmo: a predominância do "terrestre" na "felicidade" e na criação de sociedades que não têm nenhuma teleologia comummente aceite. Dentro dessas sociedades as religiões e as Igrejas tem um papel decisivo, em particular as grandes Igrejas matriciais do Ocidente, a católica apostólica romana, a ortodoxa grega, a reformada, a anglicana, mas esse papel varia não só em função do peso da instituição na "Igreja" como também pela laicização das sociedades civis, que no fundo aplicou a afirmação cristã de que se deve dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Dentro desse princípio, que molda o mundo em que vivemos, deve a vida (a vida e não a "vida") pertencer a César ou a Deus? Esta é a questão que está em causa neste referendo e está longe de ser simples a não ser para aqueles que consideram que existe na vida uma presença divina, uma "alma", um "sopro divino", que permanece intangível desde a fecundação, porque é "em potência" um ser humano. Muitos católicos envolvidos neste debate e a própria Igreja têm esta posição hoje. Mas só para se perceber que não é simples esta definição de "vida" há que lembrar que, por exemplo para alguns budistas e hindus, o mesmo "sopro divino" não se limita aos humanos, mas também está presente nos animais, que nós matamos sem respeito pela "vida" e eles não.
Mesmo para a Igreja esta interpretação da vida é relativamente recente. O Catecismo da Igreja Católica admitiu na sua primeira edição a pena de morte, e mesmo na aprovação das excepções previstas para o aborto na actual lei, aceites por muitos católicos, já há uma cedência à intangibilidade da "vida" como princípio.
O ensino tradicional da Igreja não exclui, depois de comprovadas cabalmente a identidade e a responsabilidade de culpado, o recurso à pena de morte, se essa for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto.
Se os meios incruentos bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a ordem pública e a segurança das pessoas, a autoridade se limitará a esses meios, porque correspondem melhor às condições concretas do bem comum e estão mais conformes à dignidade da pessoa humana. (Catecismo da Igreja Católica)
Na verdade, esta posição sobre a "vida" tem muitos pressupostos que são intrinsecamente religiosos e de fé, e que ou são aceites ou não, mas não podem ser considerados auto-evidentes para quem não tem fé. Implica, por exemplo, a ideia de que existe uma "alma" - chamemos-lhe o que quisermos vai sempre dar aí -, uma presença espiritual que está para além do corpo, um Logos de natureza radicalmente alheia à mecânica do corpo, que não se reduz a ele, que está para além dele, que é imortal. A "vida" a que se bate palmas nas manifestações é mais do que a do corpo, é a da criação divina, e compreende-se que, sendo entendida como pertencendo a Deus, não se queira dá-la a César, ao Estado moderno.
A forma como se discute a questão do aborto obscurece o facto de que o aborto não é um problema de fundo nas sociedades actuais. O que é um problema de fundo é o planeamento "familiar". Não custa admitir que, a prazo, com a evolução das técnicas anti-conceptivas, com a possibilidade da interrupção da gravidez quando estas falharem, com uma melhor educação sexual, com melhores serviços de planeamento "familiar", com uma melhor educação, acesso aos medicamentos e melhores condições de vida, o aborto se torne residual, se torne excepcional, deixe de ser um problema social para se tornar uma patologia individual. Pelo contrário, o controlo pela mulher, pelo casal, da maternidade permanecerá uma questão central da possibilidade de se garantir a cada um viver a vida que deseja. A ilicitude, com a carga de humilhação. dificuldade e preço que comporta, mantém o problema como sendo social, logo impede a sua mera assunção pelo Estado como sendo um problema individual, como sendo um problema de consciência no qual imperam apenas convicções próprias, ou uma moralidade assente na fé.
E se eu não acreditar que há uma "alma" e me basta o código genético, e se eu for materialista e entender o corpo como uma máquina aperfeiçoada apenas pela evolução natural e resumir o Logos a um produto dessa mesma máquina, e se eu entender que verdadeiramente tudo tem a ver com o "egoísmo" dos genes e for sociobiológico, será que tenho que aceitar esta visão da "vida" mesmo sem fé? E se eu considerar que não há "vida" passível de ser descrita pela ciência a não ser como excepção temporária e precária à segunda lei da termodinâmica e entender que para perceber essa violação da entropia que é o metabolismo, a que chamamos vida, não preciso de qualquer princípio vital? E se eu no meu laboratório não encontrar nem Deus nem a "vida", mesmo desejando encontrá-los, será que me coloco fora dos valores civilizacionais? E se eu considerar que uma coisa é esta "vida" divina e outra é a vida, mais modesta, menos programática, mais humilde, menos pretensiosa, mais "terrestre", que inclui não apenas a criação mas o desejo da criação, que implica mais do que o código genético, ou o acto da fecundação, mas a vontade de a criar, exigindo um "programa" que inclua a vontade dos seus progenitores, coloco-me à margem dos nossos valores civilizacionais? A "vida" a que se bate palmas é apenas uma das muitas interpretações da vida como valor, que assenta numa fé de carácter religioso e numa interpretação que depois extravasa para a aceitação selectiva de determinadas doutrinas éticas e "científicas" que estão longe de ser as únicas e de serem incontroversas.
A construção de uma ética social aceitável como um adquirido comum é obviamente muito complexa e implica contribuições de muitas origens com relevo para as tradições culturais com origem na religiosidade, que moldam muito uma sensibilidade profunda "popular", mas inclui sempre "práticas" que lhe escapam porque envolvem "problemas" que, sendo societais, são resolvidos em conflito com a norma religiosa ou civil. O aborto é claramente um desses casos. Reduzi-lo na lei a uma norma puramente religiosa-filosófica será sempre inaceitável ou porque redutor da realidade "vivida", ou porque colide com outras tradições culturais, políticas ou religiosas cujo estatuto ético não pode ser considerado menor.
Um outro problema consiste em querer fundar uma ética social monista reflectida na lei, como se fosse possível traduzir uma interpretação da "vida" num sistema de ilícitos e de penas. Essa interpretação está presente - aceito que um dos dilemas do acto de abortar tem a ver com um sentimento de mutilação, com um acto "vivido" também como de morte, por isso a questão da "vida" não pode ser afastada da discussão do aborto - mas não pode pretender dominar solitariamente a legislação. A tradição do cristianismo na convivência com as sociedades modernas do Ocidente implicou o abandono de algo parecido com a sharia, uma das dificuldades do Islão se adaptar à modernidade, pela dificuldade de conceber um Estado que seja de César, mesmo com Deus presente.
Mais: fundar uma ética social aceitável como reflexo de uma interpretação "espiritual" da vida, não seria muito distinto de querer fundar uma ética baseada na selecção natural, um darwinismo social, uma posição igualmente ancorada na tradição da nossa cultura ocidental.
Assim não nos entendemos porque me pedem que acredite, e acreditar não está ao alcance de todos. O que é que sobra? Um terreno comum entre a sociedade civil laica e a tradição cristã: a consideração da pessoa humana (também um conceito construído), um personalismo mínimo, que abrange realidades metapolíticas e metassociais mas não é metafísico, esse sim, produto comum da nossa história civilizacional que une laicos e crentes. É isto uma defesa do relativismo? Bem pelo contrário: nenhum relativismo vale quando se trata de pôr em causa a pessoa humana, mas a pessoa humana, cuja noção de "dignidade" une muito dos que defendem o "sim" e o "não", é uma coisa bem diferente da "vida" a que se bate palmas nas manifestações. Ah! e admite o aborto, sem lhe retirar todos os dilemas morais e religiosos, tal como está legislado na maioria dos países europeus e nos EUA, que foram feitos pela nossa civilização. Somos nós a excepção, não eles.
É, por isso, necessária muita prudência ao usar as palavras como valores civilizacionais comuns, quando o que é civilizacional é a convivência de diferentes entendimentos das mesmas palavras e não tanto uma determinada interpretação, muito menos imposta por lei, muito menos pretendendo o monopólio da moral e da civilização.
(No Público de 1 de Fevereiro de 2007)
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Quando no seu texto refere que o Catecismo da Igreja Católica admitiu a pena de morte, não deve esquecer-se – aliás, cita-o no passo seguinte – que o fez num conflito de valores, entre o valor da vida e o da justiça («culpado», «agressor injusto»). Nunca, pelo menos nos tempos modernos, a Igreja aprovou a morte como meio legítimo, especialmente a morte intra-uterina, mesmo em situações extremas.
Aliás, quanto diz que muitos católicos aprovaram e concordam com a actual lei – a qual, diga-se, é um dado adquirido e poucas ou nenhumas vezes foi e tem sido sequer discutida como uma concessão à morte – tem razão ao sublinhar que isso corresponde a uma cedência à intangibilidade da vida como princípio, constituindo algo com o qual os católicos convivem mal e com algum desconforto. Uma das características da Igreja é o radicalismo dos seus princípios. Não se trata de radicalismo no sentido “mau” e obtuso do termo, mas sim no de que existem valores relativamente aos quais não se pode transigir. A Vida, com ou sem aspas, é um desses valores. Eu sei que choca ouvir que mesmo em caso de violação a mulher deve levar a gravidez até ao fim, mas numa análise crua e desprovida de emoção, é, na verdade, a única posição consentânea com a tradição da Igreja e os valores por si defendidos. O que me incomoda no debate acerca do tema é a falta de tolerância que existe – de parte a parte – embora francamente me pareça existir mais da parte do “sim” do que do “não” (apesar dos primeiros dizerem precisamente o contrário), relativamente às posições contrárias. Dizer a um católico convicto que, ao defender “a outrance” a ilegitimidade do aborto está a ter uma posição bárbara face aos direitos das mulheres e da sua condição social, para além de ser retrógrado, não alinhado com os países (que, não por acaso, são nestes casos sempre chamados de democracias) avançados, etc., é estar a ofendê-lo e descentrar o debate do que verdadeiramente interessa.
As convicções de cada um neste debate não estão em causa, nem são referendáveis. O que deve ser referendável são as implicações e consequências que têm uma e outra posição. Parece-me que, com pequenas excepções, isso tem sido afastado, resta saber se deliberadamente.
(Rui Esperança)
Concordo com os cuidados a ter no debate sobre o aborto. Mas não podemos fugir aos limites da comunicação quando queremos debater temas como o aborto. Não podemos fugir aos significados assimétricos que as facções em debate atribuem aos conceitos de ‘vida’ e ‘liberdade’ e a outros que frequentemente são lançados na tentativa de demarcar a fronteira entre o certo e o errado, entre o bom e o mau, por qualquer uma das partes, o ‘sim’ e o ‘não’ (que são eles próprios os demarcantes mais ineficazes e imprecisos de todos!, afinal sim ou não a quê?, à vida?, à ‘liberdade’?).
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O que pretendemos deste debate?
Queremos de facto encerrar a demarcação definitiva do que é a ‘vida’, a ‘felicidade’, a ‘liberdade’ ou a ‘alma’? Depois do referendo, estes conceitos continuarão a ser interpretados de forma diferente e continuaram a ser âncoras da opinião, armas de arremesso ou trincheiras morais. Serão sempre instrumentos da comunicação e sempre que necessário. Por isso, quando o referendo se realizar, os cinzentos continuarão a ser cinzentos, não se terão desenlaçado em preto e branco.
Depois do referendo, num contexto legal que as penaliza ou não, as mulheres que decidirem interromper por sua vontade uma gravidez não desejada continuarão a fazê-lo. Continuaremos a tomar as suas decisões como certas ou erradas, boas ou más. Continuaremos a julgá-las ou não, a compreendê-las ou não e a ajudá-las ou não. Porque as leis não encerram a capacidade de mudar definitivamente os homens e as mulheres. Nem demarcam definitivamente o que é de César do que é de Deus.
(Dinis Martins)
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(...) quanto à questão que agora nos ocupa, a do SIM ou NÃO, quereria dar a minha achega:
Tanto os dum lado como os do outro declaram, por um lado, que o que querem é o bem e, por outro, que o aborto é um mal. Mas, se queremos ser coerentes até ao fim, pergunto: poderemos enveredar pelo caminho do mal com o objectivo de dele tirar um bem, sem termos de assumir as últimas consequências da aplicação deste princípio? Será que os fins justificam os meios, tout court?
A verdade é que, antes disto, está a questão de avaliar o que é o mal. Mas esta questão, pergunto: poderá reduzir-se a um mero problema de cultura e de civilização? Esqueçamos por agora as religiões; não estamos antes perante um problema filosófico?
Poderemos nós resolver o problema básico de saber o que é o homem, se nos limitamos a nadar em filosofias de cariz idealista ou meramente existencialista? Não precisaremos de dar o salto que dê firmeza ao valor da razão em ordem a chegarmos a uma verdade objectiva? Ou teremos, pelo contrário, de nos resignar com ficar no campo do cepticismo, não importa sob que formas mais ou menos ilustradas?