ABRUPTO

6.12.03


IMAGEM (Actualizado)

de ontem, era um "interior dum aguafortista", de 1909, de Rik Wouters, e está em Antuérpia. Não sei se se diz em português "aguafortista", ou "aquafortista", do francês "aquafortiste". Mas "água-forte" (belo nome, daqueles que não se repara a não ser quando nos aparecem de repente) deve seguir "aguarela", aguarelista. Não tenho o dicionário para ver.

*

"Tentando suprir a tua falta de dicionários e como tenho quatro à mão, sou a informar-te que se pode escrever águafortista, de acordo com o Morais (Editora Confluência em 10 vol., 1945) ou água-fortista, segundo os mais recentes Houaiss (2002, 6 vol., Circ. Leitores) ou Universal (Texto Editora). Já não tive paciência para o da Academia (Verbo, 2001, 2 vol.) que no geral não tem vocabulário suficiente. Uma vez que, a cada um de nós é dada a possibilidade de escolher, prefiro de longe a versão sem hífen."

(Henrique Monteiro)

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GEOGRAFIA INTERIOR DOS BLOGUES

Ao escrever a nota sobre Wul, reparei como fazia a referência à localização da imagem: "aqui em cima", "aqui ao lado". Noutras alturas, para citar um texto que já está enterrado na parte não visível do blogue, escrevi "lá em baixo", no sítio do esquecimento. Uma das grandes diferenças dos blogues face às páginas pessoais está nesta presença de uma geografia territorial na página activa e de uma geografia temporal nos arquivos e páginas "em baixo". O olhar do leitor é o único que está sempre no presente, ou começa sempre do presente. Interessante, a desenvolver.

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BIBLIOFILIA 3


Morreu Stefan Wul, escritor desconhecido fora dos círculos da ficção científica (ver necrologia no Le Monde). Autor francês, dentista, profissão que exerceu toda a vida, destacava-se num mundo predominantemente anglo-saxónico, retratado nos primeiros e míticos cem números iniciais da Colecção Argonauta. Aí publicou vários livros que li nos anos sessenta e de que não me recordo nada. Ou melhor, recordo-me do conjunto da Colecção Argonauta, como se as histórias se sucedessem umas às outras, num contínuo de aventura e fascínio pelo desconhecido. Só me recordo de distinguir Ray Bradbury, Asimov, Simak e o livro de Rosny Aîné, A Morte da Terra, talvez o primeiro que li na Argonauta e de que me ficou uma memória quase integral e intacta. Mas o nome de Stefan Wul, e a imagem das capas, ficou individualizado, talvez porque o nome, neste caso um pseudónimo, na sua estranheza, também me parecesse de ficção.

A Argonauta, depois dos primeiros cem números, acompanhou a tendência psicologista da ficção cientifica americana e tornou-se menos interessante, menos imprevisível, menos fantástica. Pouco a pouco, fui deixando de a ler com a mesma intensidade e, quando os livros a azul e prateado se tornaram regra, até as capas, magníficas na primeira série, deixaram de ter interesse. Sic transit gloria mundi.

O Mundo dos Draags, aqui em cima, tem capa de Lima de Freitas e tradução de Mário Henrique Leiria.

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EARLY MORNING BLOGS 92

Em vez de “Nec spe, Nec metu” , pede-me um leitor que fale do “Dum spiro, spero”, “enquanto respiro, espero”, mais agradável à sensibilidade contemporânea. Falarei, mais tarde.

(Continua)

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5.12.03


PASSAMOS E AGITAMO-NOS DEBALDE


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EARLY MORNING BLOGS 91

Ainda, pela manhã, o vento negro da noite. No Abrupto, aberta a porta do “Nec spe, nec metu”, alguns poemas sobre aquela que é talvez a mais importante lição dos clássicos que não se transmitiu aos dias de hoje: a ideia da aurea mediocritas, a força da ataraxia. E não se transmitiu porque a barreira poderosa do romantismo a impediu de passar. Vamos pois para o grande clássico moderno destas coisas do tempo, da duração, da finitude, da permanência, do modo de viver, da esperança, da contenção na felicidade possível, Ricardo Reis (cortesia de Manuel Matos):


"Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.

Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.

Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.

Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?"


(Ricardo Reis)

*

Boa noite, eternidade! Bom dia, finitude!

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4.12.03


NEC SPE, NEC METU 2













Isabella d'Este, a mulher que prescindia da esperança, para além de Ticiano, foi também retratada por Leonardo. Merecia.

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PROMESSAS

de escrever sobre isto e aquilo, feitas no Abrupto, não estão esquecidas. Falta o jornalismo do Independente, o cinema francês, o Michael Moore, a TSF, etc. Falta continuar as notas camusianas e chekovianas, os escritos antigos em forma de blogue, as notas sobre a traição e sobre D. Juan. A seu tempo, se houver tempo, porque aqui segue-se a regra de que nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

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EARLY MORNING BLOGS 90

"ungarettianos", presos nos meus dias italianos. Retirado de L'Allegria - Il Porto Sepolto este

ATTRITO

"Con la mia fame di lupo

ammaino
il mio corpo di pecorella

Sono come
la misera barca
e come l'oceano libidinoso
."

(Giuseppe Ungaretti )


Bom dia!

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3.12.03


REGRESSO

Como é que se regressa em cima apenas de dois traços paralelos de vapor?

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NEC SPE, NEC METU

"Nem esperança , nem medo", o motto de Isabel d'Este, que conhecia bem os seus clássicos. Acho que hoje nem se percebe bem , porque não se quer perceber. "Sem medo", todo o pequeno revoltado romântico, que pensa que funda a sua individualidade sobre uma espécie de revolta que o torna dignamente indomável todas as noites ao adormecer, ainda vá que não vá. Mas a verdadeira coragem está no "sem esperança", ser capaz de não ter esperança, de viver sem esperança, aí sim é difícil. Os clássicos achavam que era assim que se vivia mais feliz. O que é que eles sabiam, que nós não queremos aprender?

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PALAZZO SCHIFANOIA
Outro palácio dos Este em Ferrara. Palácio da alegria, dedicado aos prazeres, ao otium. Nas paredes, "grotescos", símbolos herméticos, uns já herméticos na altura, outros nos dias de hoje, em que perdemos as referências detalhadas ao mundo mitológico clássico. Calendários, ciclos das estações. Uma selva de imagens, as raparigas muito jovens, na puberdade, os rapazes sempre com ar efeminado, os cabelos louros encaracolados, coelhos, cisnes, cavalos, touros, o sol espreitando por baixo de um touro (ou de uma cabra) desenhado por estrelas.






Qual é o equivalente moderno deste mundo? Só me lembrei de Tóquio ou Nova Iorque à noite, da publicidade a néon, brilhando. Tal intensidade de imagens, só nas ruas com os cartazes, a publicidade, as luzes, o "céu de cor de televisão".

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EARLY MORNING BLOGS 89 / "IL VENTO S'É LEVATO LEGGERO OGNI MATINA"

A manhã hoje é de Salvatore Quasimodo, o siciliano. Para os tempos "colore di pioggia e di ferro", que passa a pátria.

COLORE DI PIOGGIA E DI FERRO

"Dicevi:morte, silenzio, solitudine;
come amore, vita. Parole
delle nostre provvisorie immagini.
E il vento s'è levato leggero ogni mattina
e il tempo colore di pioggia e di ferro
è passato sulle pietre,
sul nostro chiuso ronzio di maledetti.
Ancora la verità è lontana.
E dimmi, uomo spaccato sulla croce,
e tu dalle mani grosse di sangue,
come risponderò a quelli che domandano?
Ora, ora: prima che altro silenzio
entri negli occhi, prima che altro vento
salga e altra ruggine fiorisca.
"

(Salvatore Quasimodo)

De longe, por onde passa o pequeno vapor, bom dia !

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2.12.03


CRUZ MALPIQUE, PROFESSOR

Curiosamente, a primeira vez que abri o seu ABRUPTO (23/11/03), encontrei uma referência a meu pai, o professor e escritor Cruz Malpique! Com efeito desde Luanda(onde foi professor,por ex.de Agostinho Neto entre tantos outros) ate ao Porto, passando por Macau,sempre encontrei pessoas que recordavam o prof. Malpique com a maior simpatia, com saudade desse tempo do liceu em que ficara gravada a memoria desse professor bem disposto,indulgente,ironico,com frases carismaticas,que lançava duvidas mais do que debitava certezas,que estimulava o debate de ideias,que nos exames deixava sempre que o aluno escolhesse o tema sobre o qual queria falar.

Nos seus livros e na educação das suas duas filhas,estimulou o dialogo e a curiosidade intelectual.Criticava azedamente o ensino que se fazia do Português e da Historia.Contra a Gramatica entendia que se aprendia a escrever, escrevendoEstimulou sempre a leitura e a escrita, a síntese oral do que se acabara de ler.Recordo~me das suas palavras: "se a leitura alimenta o pensamento, a escrita e um verdadeiro catalisador do pensar!"

Foi um apaixonado dos livros!E foi com desejo de continuidade desse amor pela leitura que legou ao Liceu Alexandre Herculano grande parte da sua biblioteca, numa sala que tem o seu nome. Propôs uma pequena colecta entre os alunos para aquisição de novos livros, e pediu que aquele fosse um espaço de leitura e dialogo mais personalizado entre professor/aluno.
Nâo sei que foi feito daquele espaço, mas doi-me que tenha sido abandonado…que nunca chegasse a ser utilizado como o professor Malpique pretendia! aquele espaço "faz falta"para meter mais e mais alunos,para nele transitarem professores "que dificilmente serâo recordados"porque mudam de 50 em 50 minutos e porque mudam de liceu quase todos os anos.Como diz Pacheco Pereira nâo deixam marca,nâo ficam como "personae".

A biblioteca que Cruz Malpique deixou ao Liceu Alexandre Herculano transformou-se num espaço morto,porque nunca se alimentou o espirito que lhe presidiu_ a leitura,o debate sobre a leitura,ou mesmo sobre o cinema, a TV ,a pesquisa na Internet, com ou na presença de um professor dialogante, sem programa obrigatório a cumprir.Um espaço/tempo dentro da escola, para alem das aulas e dos recreios,onde o contacto mais personalizado professor/aluno fosse possível.”


(Celeste Malpique)

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OUTRO FRUTO DOS ESTE




Nós, a gente, os comuns, os que vagueiam, os que transitam, os que passam ao de leve, os diletantes, olhamos para a Bíblia de Borso d’Este e percebemos que há dois mundos e que não pertencemos ao do livro em frente. As páginas brilham, o azul ultramarino e o ouro, estipulados com rigor nos contratos com os copistas e os caligrafistas porque eram caros, tão vivos como se fosse ontem, quando, milímetro a milímetro, foram aplicados nas páginas de um dos livros mais belos do mundo.

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A CORTE DOS ESTE


Ferrara, corte dos Este, condottieri e amantes das artes, tradicionalmente uma boa combinação. Sigismundo, Ercole, Leonello, retratado por Pisanello, Francesco, algumas mulheres de outras guerras, deixaram atrás de si uma floresta de símbolos como se quisessem conquistar o futuro através dos enigmas. Que faz ali aquele livro aberto? Aquela ave é um grifo? O leãozinho é Leonello? Porquê fazer um busto alla romana coberto de símbolos da paciência? Hércules transportando o mundo esculpido na couraça é Ercole? Por que razão a cidade ideal, nas proporções da perfeita perspectiva, não tem ninguém?

Semeadores de enigmas, os Este. Na pintura, na escultura, no teatro, na poesia, que pagavam com os lucros da sua mão firme nas batalhas.

Voltaremos a Ferrara.

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1.12.03


AMÁLGAMA IDEOLÓGICA

Recebi um convite para uma realização conjunta dos Institutos Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, ligados respectivamente ao PSD e ao PP, intitulada “O legado político de Francisco Sá Carneiro e de Adelino Amaro da Costa”, que me parece traduzir uma amálgama perigosa no plano político e ideológico.

A tendência para estender a coligação governamental à ideologia é não só descaracterizadora de ambos os partidos, em particular do PSD, como é uma falsificação do significado das posições daqueles cujo “legado político” se pretende discutir. Sá Carneiro tinha um pensamento muito estruturado, com raíz na doutrina social da Igreja e na social-democracia moderada, e Adelino Amaro da Costa partilhava a primeira fonte ideológica, o pensamento social da Igreja, mas não a segunda.

Tudo é uma floresta de equívocos neste colóquio. A amálgama faz-se a todos os níveis, a começar na oportunidade da iniciativa, ambígua transposição da coligação governamental para o domínio da ideologia, onde é suposto haver identidades e tradições muito distintas. Nem é sequer a junção de Sá Carneiro e Amaro da Costa, em si, e noutras circunstâncias, possível, é a ocultação de que há pouco de comum entre o pensamento de Amaro da Costa e o do PP de Paulo Portas.

Depois, os participantes, ou são pessoas sem qualquer obra política ou ideológica conhecida (João Almeida e Pedro Duarte) e cuja escolha não se compreende, a não ser de novo pela lógica governamental, ou tem pouco a ver com o legado que pretendem discutir. Não conheço o pensamento de Telmo Correia, para além da sua acção política pragmática, e o de Santana Lopes tem muito pouco a ver com o de Sá Carneiro, apesar da habitual invocação que faz do seu nome. O legado político de Sá Carneiro não está nos actos de risco e de ruptura que personificou (e que, retirados do contexto, ficam apenas coreografia política), mas nas razões que os motivaram. E aí encontramos um pensamento consistente e preciso, ancorando o PSD numa visão da sua necessidade para Portugal, num lugar então desocupado no espectro político: entre o centro-esquerda e o centro-direita, mas nunca na direita.

Uma iniciativa deste tipo só teria sentido se fosse o caminho de uma fusão, a prazo, dos dois partidos, que há quem deseje, mas não queira enunciar.

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POEMAS SOBRE O TEMPO

Sentimento del tempo (1931)

"E per la luce giusta,
Cadendo solo un'ombra viola
Sopra il giogo meno alto,
La lontananza aperta alla misura,
Ogni mio palpito, come usa il cuore,
Ma ora l'ascolto,
T'affretta, tempo, a pormi sulle labbra
Le tue labbra ultime.
"

Giuseppe Ungaretti

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NO EARLY MORNING BLOGS 88

Como não houve manhã, não há blogues pela fresca manhã. Volto mais tarde com a chuva na laguna e as nuvens sobre Il Redentore.

Bom dia , de qualquer modo.

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30.11.03


IMAGEM

de ontem , uma das mais belas fotografias de sempre, é de Man Ray e data de 1929. Chama-se “Hands on Lips”, um gesto que pode ser tudo na sua infinita delicadeza.

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QUE SOL?


Que Sol entrava nas estufas feitas com as centenas de milhares de negativos tirados durante a guerra civil americana e vendidos ao desbarato como placas de vidro?
Que luz ia, pouco a pouco, fazendo desaparecer as faces dos soldados, os grupos de amigos dum regimento confederado ou da União, as imagens de um banal campo de trigo cheio de sangue invisível, os montes de membros amputados a apodrecer ao lado de uma tenda de campanha? Como nos esquecemos? Tempus edax rerum.

É verdade que sobra o vidro, areia restituída a uma forma mais perfeita, mais eterna que uma rocha. Nem tudo o tempo come.

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EARLY MORNING BLOGS 87


Acordar com Borges será verdadeiramente acordar? Será que quem adormeceu é o mesmo que acorda? Ou os sonhos são uma espécie de body snatchers que cada noite nos colocam “del otro lado de su muro”?

El sueño

"Si el sueño fuera (como dicen) una
tregua, un puro reposo de la mente,
¿por qué, si te despiertan bruscamente,
sientes que te han robado una fortuna?

¿Por qué es tan triste madrugar? La hora
nos despoja de un don inconcebible,
tan íntimo que sólo es traducible
en un sopor que la vigilia dora

de sueños, que bien pueden ser reflejos
truncos de los tesoros de la sombra,
de un orbe intemporal que no se nombra

y que el día deforma en sus espejos.
¿Quién serás esta noche en el oscuro
sueño, del otro lado de su muro?
."


Jorge Luis Borges, 1964

(cortesia de João Costa)

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DRUM TAPS: A GUERRA CIVIL


Acabei finalmente de ver a longa série de episódios da The Civil War de Ken Burns. Junto com o Shoah de Lanzmann, com a qual tem aliás parecenças na economia de meios e na intensidade dramática que consegue com essa economia, representa o melhor que se pode fazer em documentário histórico, sendo eles próprios obras de grande qualidade estética.

É difícil dizer o que é melhor nesta história dos anos da guerra da Secessão: se o retrato das principais personagens, Lincoln primeiro, depois os grandes militares de ambos os lados, Grant, Lee, Sherman, Forrest, e incontáveis comandantes forjados no combate, se a longa sucessão de fotografias a preto e branco, parte do milhão de negativos tirados durante a guerra, ou se os comentários de grande proximidade afectiva de um escritor do sul, Shelby Foote.

Uma coisa a série faz com absoluta precisão: o uso das palavras, das frases, das cartas, dos discursos, das notas, dos diários, dando-lhe uma forte textura literária. E se nessas vozes, muitas vezes quase anónimas, emergem com grandeza as de Lincoln e Douglass, também é evidente que um enfermeiro voluntário de Nova Iorque, de nome Walt Withman e autor de um livro considerado ofensivo, estava a escrever páginas únicas sobre a experiência da dor e da guerra.

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© José Pacheco Pereira
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