Estamos hoje pior do que há
dois anos quando se pediu o resgate internacional: Portugal, a
democracia, a economia, as finanças, a sociedade. Claro que tudo isto é
muito relativo, visto que se trata apenas de graus de mal - estávamos
muito mal há dois anos, estamos pior agora. A última coisa que isto deve
consolar ou isentar é os autores do mal de há dois anos, mas também, em
nome desse mal, não se deve esconder o que piorou. O que piorou é que
um elemento essencial em democracia, a existência de margem de manobra,
ou seja, de escolhas, diminuiu exponencialmente nestes dois anos, sem
que nenhum problema de fundo tenha sido resolvido e sem que haja
qualquer melhoria que não seja tão frágil como o fino gelo em que
andamos.
Pior, nenhuma melhoria adquirida, mesmo que se aceitem
as melhorias enunciadas no discurso governamental (défice estrutural,
balança comercial, regresso tímido e apoiado ao mercado), é sustentável,
nem por persuasão democrática (o que me interessa) nem à força (o que
passa pela cabeça dos que defendem a ilegalidade em nome da "economia",
seja no abandono do primado da lei e do direito em nome do "programa"
seja na ultrapassagem da Constituição). É por isso que se está pior.
Explico-me.
Há dois anos, o ministro das Finanças de Sócrates, para impor o resgate
externo, mandou o recado para os jornais de que não havia dinheiro para
salários e pensões. Esta semana, o primeiro-ministro, Passos Coelho,
veio dizer o mesmo: ou prosseguimos as políticas que ele propõe, ou não
há dinheiro para salários e pensões. Descontando o elemento chantagista
do argumento, que é igual há dois anos e hoje, o que podemos concluir é
que nada foi adquirido e que estamos na mesma, vivemos a um mês de não
ter dinheiro para salários e pensões.
Se se aceita a veracidade
do argumento, a pergunta a fazer é que significado teve o sacrifício dos
portugueses nestes dois anos, em que cada pacote de austeridade foi
sempre apresentado como último, para ser logo a seguir anunciado um
novo, quando o Governo não conseguia os resultados que pretendia com o
anterior. Em finais de 2011, Passos Coelho, quando questionado sobre se
bastava o corte de meio subsídio de Natal, respondeu que sim. Logo a
seguir, quando do anúncio do fim dos subsídios de Natal e de férias,
quando questionado sobre se era suficiente, respondeu que sim. Em 2012,
quando subiram os impostos, questionado sobre se chegava, Passos Coelho
respondeu que sim. Em 2012, quando anunciada a subida da TSU,
questionado sobre se essa medida seria eficaz, Passos Coelho respondeu
que sim. Em 2012, quando se anunciou o "enorme aumento de impostos", que
seria apenas para 2013, Passos Coelho garantiu que sim. Em 2012 e 2013,
quando começou a falar da "refundação do Estado" e dos quatro mil
milhões, questionado sobre se isso resolvia o problema de adequar o
financiamento do Estado aos recursos que os "portugueses estariam
dispostos a pagar", Passos Coelho respondeu que sim, esta reforma era
"estrutural" e por isso fechava o "problema".
A cada pacote de
austeridade foi sempre pedido mais do que no pacote anterior e todas as
medidas estão a ser cumulativas, e as que eram provisórias para 2011,
2012, ou 2013 continuam em aplicação para 2014, 2015, 2016, 2017, e
algumas o ministro das Finanças aponta para 2020-2030. De medidas
destinadas a resolver a situação de emergência de 2011-4, passaram a
medidas para uma geração ou duas. Qualquer pessoa que tenha uma mínima
ideia do que é uma democracia percebe que isto é errado, ilusório,
mágico, milagroso, ou melhor ainda, um completo disparate.
Há
dois anos, o país tinha sido posto na bancarrota pelos delírios de José
Sócrates e pelo esbanjamento escandaloso dos seus "programas de
bandeira" e tivera de, in extremis, pedir ajuda internacional e
negociar o memorando. Não me interessam os pormenores da "narrativa"
socrática, porque com mais ou menos culpa da situação internacional e do
PSD, no essencial foi dele a responsabilidade. Porém, nessa situação de
"emergência", havia em democracia uma margem considerável de manobra e
os mecanismos democráticos podiam funcionar acrescentando factores
positivos à crise que se vivia, ou seja, "saídas".
Um desses
mecanismos foi as eleições, permitindo que o sentimento da primeira
grande manifestação "indignada", contra Sócrates, pudesse ter expressão
nas urnas. O eleitorado varreu Sócrates e o PS do poder com o mesmo
mecanismo de rejeição com que ele tinha varrido Santana Lopes, ambos em
resultado da interrupção de governos em funções. Acresce que dessas
eleições resultou uma maioria parlamentar do PSD-CDS, que, em abstracto,
era uma solução muito melhor do que a minoria do PS para gerir um
período de crise e dificuldades. O aspecto negativo foi uma campanha
eleitoral baseada no logro, embora o conhecimento público do memorando
da troika trouxesse aos eleitores algum sentimento de realismo sobre os tempos que aí vinham.
A
todos estes resultados - "actualização" excepcional dos sentimentos
populares pelas eleições, maioria parlamentar, mudança de pessoal
político - podia acrescentar-se por parte da maioria dos portugueses um
sentimento muito raro em democracia: de que seria legítimo pedir
sacrifícios, que estavam dispostos a fazer, desde que moderados, a prazo
e, acima de tudo, feitos com justiça e equidade. Por seu lado, no
sistema político, o PS fragilizado e recém-signatário do memorando,
estava comprometido com a governação, e as centrais sindicais abertas a
negociações, mesmo que, como a CGTP, não o dissessem. Havia por isso,
uma margem considerável de manobra política e social, em democracia. Ela
iria inevitavelmente conhecer alguma erosão com a austeridade, mas
existia em 2011 a seguir às eleições.
É à luz destes factos que o
Governo de Passos Coelho cometeu todos os pecados capitais que hoje paga
em termos de impasses e bloqueios políticos, com um isolamento parecido
com o de Sócrates terminal, e com uma perda de legitimidade e
credibilidade. Esses erros começaram na desvalorização da gravidade da
crise recebida, e na hipervalorização do memorando como instrumento de
engenharia social, económica e política. O Governo menorizava a
amplitude da crise, porque a considerava catártica e uma "oportunidade",
e estava felicíssimo com o pretexto que o memorando lhe dava para
"revolucionar Portugal".
O "memorando era o programa do PSD",
como disse Passos Coelho, impante da sua importância e papel como sendo
aquele que iria mudar a face do país, da economia, o grande
modernizador, que iria combater os "vícios do passado" e os maus hábitos
dos portugueses, cheios de direitos e "pieguice". O conteúdo das suas
declarações iniciais, utópicas e proféticas, encontrou em Gaspar o
típico executor burocrático que era suposto trazer a eficácia da
tecnocracia para a prossecução da "revolução". Gaspar acabou por ser o
Mestre e não o Executor, mas isso também era previsível.
As
opções radicais, milenares e proféticas, implicaram um excesso de zelo e
uma pressa de rolo compressor, tentando esmagar a "velha" economia e os
"velhos" hábitos o mais rápido e violentamente possível, para depois,
sobre as ruínas, se erguer o Portugal disciplinado, competitivo e
alemão. Por isso, nenhum acordo com o PS, nenhum sério envolvimento dos
parceiros sociais, nenhum esforço de "consenso" tinham sentido. Era um
programa para os fiéis sem dúvidas, obstinados e cegos a tudo o que não
fosse o "ir para além da troika", "custe o que custar". E os
fracos como o PS, os sindicatos e mesmo as confederações patronais,
tinham de ser postos à margem porque não eram confiáveis. Ficavam
apenas, dentro do círculo do poder, o sector financeiro, e a elite dos
"sempre os mesmos", que circulavam de governo para governo, da banca,
das consultoras financeiras e dos grandes escritórios de advogados. Mas
isso era natural, porque o "programa" da troika e de Passos Coelho era o deles.
A
recusa do "consenso" não foi o resultado de o Governo ser desajeitado,
ou demasiado convencido, ou um "erro de comunicação". Foi uma opção de
fundo inteiramente consistente com um radicalismo que exigia fidelidade e
zelo dos fiéis e dos convertidos, mas não tinha lugar para mais
ninguém. E assim se começou a destruir o espaço de manobra que existia
em 2011.
E esse é o segundo acto desta história. Fica para depois.
"Pedro Passos Coelho e Paulo Portas estiveram esta tarde reunidos com os deputados do PSD e do CDS, e apresentaram-se com discursos perfeitamente sintonizados, de acordo com fontes que assistiram à reunião, à porta fechada.
Nem um nem outro se referiu directamente às divergências dos últimos dias por causa da taxa sobre as pensões de reforma (...) À saída da reunião, os líderes das duas bancadas parlamentares sublinharam a "coesão desta coligação".
No parlamento, questionado por António José Seguro sobre a retroactividade das pensões, Passos Coelho diz-lhe que só responde a essa pergunta se Seguro falar das alternativas à política governamental. E depois o debate continuou normalmente. Normalmente Normalmente o parlamento coloca no mesmo plano um deputado que não tem nenhuma obrigação de responder a qualquer pergunta do Primeiro-ministro, com um Primeiro-ministro que "responde" perante o parlamento como sua obrigação institucional. Está tudo ao contrário, mas é assim que se vive nos dias de hoje.
(A propósito de um texto de Paulo Varela Gomes no cristóvão-de-moura. No Abrupto, lá para baixo, estão as outras duas partes.)
Interpretar a história como uma sucessão de actos únicos, sujeitos
apenas à vontade dos seus agentes, feitos para “além do bem e do mal”, é
bastante atractivo. O actual terrorismo apocalíptico vai aí buscar uma
das sua fontes, por via do “excesso” religioso, da ideia de “martírio” ,
não por acreditar na irracionalidade da história, mas por acreditar na
racionalidade do terror. É contraditório, mas muitas vezes é assim.
Eu não tenho a certeza que a história não seja fundamentalmente
irracional, até por outras razões. Basta que se abandone qualquer
transcendência, qualquer destino manifesto, qualquer variante hegeliana
da História com H grande, seja marxista, seja cristã (como em Teilhard
de Chardin) . Tira-se a teleologia e ficam os humanos com o ónus de
fazerem a história, ficando os humanos, é o que se vê.
Basta que se considere que o homem não tem qualquer garantia divina
para a sua sobrevivência, para se perceber que, desde que possui armas
termo – nucleares, tem elevadas probabilidades de se estourar a si
próprio – é só uma questão de tempo. Este é aliás o único problema
filosófico radicalmente novo que penso não estar presente na tradição
clássica grega. (Penso também, mas isto é um desvio, que foi a Bomba,
como se escrevia nos anos cinquenta, que dissolveu interiormente todas
as teorias da história triunfante com H grande.). Se nos podemos matar a
todos, numa esquina da história, toda a história fica,
retrospectivamente sem sentido, e é um gigantesco delírio do acaso, uma
absoluta irracionalidade face ao domínio da morte, da entropia.
Repito agora a frase anterior, com um acrescento para mim
fundamental: eu não tenho a certeza que a história não seja
fundamentalmente irracional, mas quero viver e actuar como se não fosse.
Não me interessa, a não ser do ponto de vista cientifico, o que a
história é ou pode ser, au grand complet , porque não pretendo
ter como programa de vida qualquer vazio, mas um mais humilde programa
de sobrevivência. Digamos que sou agnóstico quanto aos fins da história,
mas crente na sua racionalidade possível e fragmentária . Dito de forma
abrupta: eu não acredito que haja progresso, mas entre um mundo sem
anestesia e outro com anestesia , há para mim uma diferença abissal.
Isso talvez me torne numa espécie mais complicada do que os
voluntaristas brutos de PVG, num voluntarista cultural ou simbólico, que
actua perante as coisas por via de uma teatro, de uma ficção, que
resulta tanto mais quanto o maior número de pessoas aceite
representa-la, sempre sem qualquer garantia de sucesso final. Mas há uma
razão para que eu queira viver assim: é que se houver um número
significativo de pessoas a fazerem o mesmo, criam à sua volta uma
ecologia mais saudável, menos violenta, mais vivível e já não é mau que o
consigam em determinados espaços e durante determinados períodos de
tempo. Talvez haja uma massa crítica nestas coisas e se consiga tornar o
mundo melhor por pequenos períodos de tempo, para um cada vez maior
número de pessoas. Talvez.
É por isso que, do meu ponto de vista, posso decidir com a mesma
firmeza que PVG atribui às suas personagens nietzschianas, apenas
fundado numa filosofia pragmática, para tempos difíceis, sem pretensões
sistemáticas. Não preciso de grandes certezas, nem de especiais
“músculos da vontade”, mas apenas de um discernimento quase de bom
senso, uma filosofia mais do lado humilde da anestesia, pela anestesia,
por mil e uma pequenas anestesias, incluindo o bem-estar, a liberdade, a
democracia, a felicidade. Pode ser tudo precário, pode ser um
esbracejar ilusório, mas não troco e luto, se for preciso, para que não
me obriguem a trocar.
E isso diz-me que há “decisões” que, mesmo implicando em última
ratio a violência, não são “terroristas” porque são contra o mundo do
sistema da morte, contra o apocalipse now, a favor do império da anestesia e contra o do da kalashnikov.
Dante
tinha as sua razões em colocar o Inferno em baixo, o Paraíso em cima, e
o Purgatório no meio. A geografia do mundo acabava assim por ser uma
escala moral, entre a perdição e a salvação. E nós no meio. Bem no meio,
a sermos testados pelo último teste, ou se cai, ou se sobe. Aqui, em
Constância, no Centro de Ciência Viva, no Ano da Astronomia, sempre se
pode subir, sempre podemos, de vez em quando, dar-nos ao luxo de
escapar.
É escapismo, mas é escapismo bom. Olha-se para as
estrelas, de onde vêm sempre as mesmas mensagens: isto é demasiado
grande para a tua cabeça, isto tem demasiado tempo para o teu corpo,
isto é demasiado longe para teres esperança de cá chegar: Isto, no pleno
e absoluto sentido do termo, escapa-te e porque te escapa podes também
escapar-te para estas andanças, que nunca te perdes. Contempla, que já
não é mau. Há cem poemas bons sobre isto e umas centenas de milhares
péssimos, mas olhar para cima ainda vale a pena. Lá por baixo no
Inferno, as fábricas despedem, a gente empobrece, a verdade é espécie
rara, a mentira é oficial e oficiosa, a liberdade é escassa, anda tudo
ao seu e nós ao nosso, mas aqui reina uma verdade muito especial. Há
aqui algo que nos foge de uma forma muito radical, mas sem o qual não
somos o que somos. Eu sou muito pouco prometeico, mas se há fogo divino,
está nas estrelas, e se há pavor, está no espaço negro entre elas.
As
cúpulas dos telescópios voltam-se para o lado mais escuro, para a
encosta mais ventosa, para o friso negro das copas das árvores. Do outro
lado há mais luz, lembrando-nos que já quase não há lugar sobre a Terra
que seja escuro, onde os homens não poluam luminosamente o espaço. Não
está uma noite muito boa para observações astronómicas. A Lua já tem o
lado mentiroso bem saliente e diz que vai diminuir enquanto cresce. A
luz fria e metálica enche o céu, e só para longe dela se vêem estrelas.
Há névoa. Não se percebe sequer a Via Láctea, e muitas da melhores
constelações estão ou demasiado baixo já no ocaso ou no nascimento.
Oríon está já escondida, a Cassiopeia por nascer. As Ursas estão lá
sempre, mas é essa a sua condição.
O
nosso astrónomo residente, Máximo Ferreira, dedica-se ao seu ofício.
Abre as cúpulas para que se estabilize a temperatura dos telescópios e
os espelhos se habituem ao frio cortante. O vento rouba qualquer calor
residual nas faces e nas mãos. Isto da astronomia tem ofício, antes de
ter saber. Os aparelhos são especialmente delicados, têm que ser
ajustados, calibrados, os seus movimentos acompanhados pela ranhura da
cúpula. Um feixe de laser que parece ir directo da Terra a Saturno
aponta o alvo. Lembrei-me do Ícone da Escada Celestial de São João
Klimakos.
Saturno lá está com os anéis vistos de lado, como se
fossem uma linha que atravessa o planeta, na constelação de Leão. Alguns
satélites são visíveis no mesmo plano dos anéis. E por lá anda a sonda
Cassini, que nos últimos dias fotografou Dione e mapeou ainda com mais
detalhe Titã, com os seus lagos e rios (?) de metano. Chove metano em
Hotei Arcus em Titã, e isto é não-ficção científica. Em Encélado, a sua
jovem superfície brilha e nas cinquenta e duas luas que dançam à volta
de Saturno, há mil e uma coisas diferentes para estudar, compreender ou
desaprender. É como nos livros, nunca é maçador.
Depois
vê-se o M13, o objecto catalogado por Messier com o número 13, um
enxame de estrelas na constelação de Hércules. Já estamos no limite do
que se pode ver com o olho humano. Foi para este grupo de centenas de
milhares de estrelas, envelhecidas, com muita história para contar, que
nós tentamos falar em 1974 a partir do radiotelescópio de Arecibo,
dizendo coisas simples e complicadas ao mesmo tempo: que contamos de 1 a
10, que somos feitos a partir de um código inscrito no ADN, que somos
como somos, dois braços, pernas, cabeça, que vivemos num sistema à volta
do Sol e que falamos a partir de um enorme prato entre montanhas. Daqui
a 50.000 anos saberemos se há resposta. Podia ser pior, podia ser mais
longe.
Quando,
(...) escreveu que enviámos a informação de que «contamos de 1 a 10»,
bom... uma civilização capaz de enviar uma mensagem a outra civilização a
dezenas de milhar de anos-luz de distância é capaz certamente de fazer bastante mais do que contar de 1 a 10. O que lhes dissemos que trabalhamos em base 10.
(José Carlos Santos)
E,
por fim, a Lua, que não deixava os seus méritos por telescópios
alheios, enchia a ocular com cerca de 60 por cento da sua superfície
visível, mostrando o que 51 centímetros de abertura podem fazer. Os
mares e as crateras sobrepostas com uma perfeição geométrica, os tons de
cinzento e negro, parecem familiares vistos de longe. De perto, a gente
percebe que aquilo está bastante morto, já para não dizer que está
totalmente morto, que é uma coisa que não há na natureza. Mas bastante
morto, há.
Lá
em cima, no Alto de Santa Bárbara, a santa protectora contra as
tempestades, a senhora dos trovões, a Terra parece demasiado irreal. Ao
fim de ver a Lua em grande, a M13 e o seu enxame de estrelas, e o
glorioso Saturno, a noite parece outra coisa. Mas, como se sabe, tudo o
que sobe tem que descer. E cá em baixo não está Constância, nem o Tejo,
nem os pára-quedistas de Tancos, nem os tanques da Brigada Mista, nem os
agricultores das terras ribeirinhas, nem as recordações árabes do
Castelo de Almourol. Está o nosso primeiro-ministro mais o seu Freeport,
a guerra entre procuradores, a agitação em que andamos todos, o som e a
fúria que cresce dos subterrâneos do desemprego, os bancos vilões e os
banqueiros moralmente débeis, os demagogos do Bloco, a multidão de
economistas a explicar a "crise", as trivialidades da vida de todos os
dias, os acidentes na Segunda Circular, os engarrafamentos da Ponte, a
histeria das "causas fracturantes", o barulho dos blogues, o silêncio
dos que sabem de mais, a logomaquia dos que sabem de menos. Mas é assim,
somos o que somos. Descemos sempre mais do que subimos. Mesmo que, no
Ano Internacional da Astronomia, escapemos um pouco para longe. Faz bem.
Quantos portugueses (quantos europeus )
sabem que um grupo de deputados , escolhidos mais ou menos
confidencialmente pelas direcções partidárias , e um conjunto de
representantes dos governos , estão a escrever aquilo que , em princípio
, deveria ser o documento jurídico mais importante para todos os países
da UE - uma Constituição . A primeira e fundamental questão devia ser :
quem a pediu , quem a exigiu , que movimento de opinião consistente e
generalizado , mostrou a sua necessidade ? Ninguém , apenas uma elite
política europeísta e federalista a defendeu , debaixo de uma razoável
indiferença da esmagadora maioria dos europeus.
Começou como
quem não quer a coisa , por ser uma reflexão de "sábios" sobre a
"unificação e simplificação" dos tratados , depois era suposto ser um
"tratado constitucional" , hoje é uma Constituição e está a entrar na
fase final dos trabalhos . A Convenção que a está a preparar , funciona
sem votações e "por consenso" ( um absurdo revelador da sua composição
ideológica e o que mostra até que ponto não representa a heterogeneidade
das opiniões europeias ) . Esta Constituição pode muito bem vir a ser
aprovada sem ninguém dar por ela , por governos que de há muito fazem
tudo para retirar a discussão europeia da agenda política nacional , que
tem medo de consultas e referendos . No caso português , parece que
tudo se lhe rendeu , pelo efeito perverso de PSD , PS e PP terem hoje a
mesma comunidade de silêncios europeus . O Presidente até já mostrou
reticências públicas a que a Constituição da Convenção venha a ser
referendada em Portugal e ninguém disse nada . Um dia adormecemos com a
Constituição portuguesa e no outro acordamos com uma Constituição
europeia , que é suposto ser "binding" da nossa .
Lembro aliás
que um dos objectivos da Convenção não era tanto tomar o freio nos
dentes e ir colocar os governos entre a Constituição e parede , mas
proceder a um "grande debate europeu" sobre os Tratados - cujo não
existe por desinteresse , e por sentimento de pouca necessidade . O que
os "convencionais" chamam debates tem sido colóquios mais ou menos
académicos , mais ou menos institucionais , onde todos os participantes
são escolhidos pelos mesmos métodos de "consenso" com que funciona a
Convenção . As opiniões críticas de todo o processo são cuidadosamente
excluídas para produzir um efeito de inevitabilidade .
Daí , a
segunda questão essencial : o cada vez maior défice democrático do
processo europeu , retirado do debate político nacional e entregue cada
vez mais apenas aos "europeístas" , que tem medo que o debate das suas
propostas se transforme num debate "à inglesa" , exactamente o único
país , goste-se ou não , onde se discutem estas questões
NUNCA É TARDE PARA APRENDER: OS LOUCOS QUE QUEREM SABER TUDO
Simon Winchester, The Professor and the Madman, HarperCollins, 1998
Os
autores de dicionários e enciclopédias tendem a enlouquecer com a
tarefa. Esta é matéria que percebo muito bem, estando no ofício da
referência. Cada entrada nova no meu dicionário-enciclopédia, a que
dedico "o melhor dos meus dias", como se dizia antigamente, tem o hábito
de se alargar por pelo menos mais três ou quatro entradas. Para cada
entrada nova, parece haver mais dez à espreita. E quando se quer fichar
tudo, registar tudo, o espaço por preencher tem tendência para aumentar à
medida que campos e campos de palavras já enchem uma vastidão atrás. A
regra é que atrás está sempre uma pequena vastidão e à frente uma
gigantesca vastidão. Vejam lá como isto é pouco normal... Tudo isto
exige um grão de loucura prévia, que tende a agravar-se.
Mas o
caso do Dr. W. C. Minor, médico, militar, erudito, flautista, pintor de
aguarelas e "lunático criminoso" vai um pouco mais longe. Os eruditos
têm loucuras habitualmente mansas, mas o Dr. Minor estava internado
perpetuamente porque um dia saiu à rua de pistola em punho e matou um
desgraçado que lhe apareceu numa esquina, convencido que assim eliminava
os seus "inimigos". Estes "inimigos" entravam-lhe à noite no quarto
pelo soalho (mandou depois colocar um chão de zinco) ou pelos
interstícios do telhado, pegavam nele e levavam-no para um qualquer
bordel de Istambul, onde o obrigavam a praticar "actos imorais" com
rapazes e raparigas. Noite, após noite, após noite. Já muitos anos
depois de internado, o Dr. Minor resolveu castrar-se para ver se os seus
"inimigos" o deixavam em paz. Não deixaram.
Pois este Dr. Minor, diagnosticado como tendo dementia praecox,
agravada pelo traumatismo de ter assistido como médico militar a
algumas selvajarias da Guerra Civil americana, preso num asilo inglês,
durante décadas tornou-se o mais prolixo, preciso e rigoroso amador,
entre os muitos que apoiavam a redacção de uma das mais gigantescas
obras de erudição de sempre, o Oxford English Dictionary (OED).
Durante anos, sem saber qual era a origem das ajudas preciosas que
recebia - verbetes de palavras, apoiadas por citações quanto aos seus
diferentes significados e primeiro uso conhecido por escrito - o outro
doido, mas manso neste caso, o célebre editor do dicionário, James
Murray, que se abalançou à tarefa de registar em papel uma língua, o
inglês, cada vez tinha em maior consideração e utilidade as
contribuições que recebia dum tal Dr. Minor que escrevia de Broadmoor.
Mais tarde veio a descobrir que era um "lunático criminoso" que lhe
enviava os verbetes cuidadosamente redigidos, apoiados em leituras de
livros do século XVII e numa paixão pelas palavras sem paralelo. Murray
encontrou em Minor alguém que percebia muito bem o objectivo do
dicionário e se interessava não apenas pelos vocábulos raros e caídos em
desuso, ou por regionalismos ignorados, como muito lexicógrafos
amadores faziam, mas pelas palavras comuns e pelas finas gradações de
significado que continham e que era suposto ficarem registadas nesse
grande catálogo da língua.
Quando Murray veio a conhecer o Dr.
Minor, uma história que correu mundo na época (primeira década do século
XX) numa versão tablóide, tornou-se seu amigo e ajudou-o como pode a
suportar melhor a sua doença e internamento. Ambos se correspondiam e
durante vários anos, os contributos do Dr. Minor para o dicionário
chegavam diariamente ao Scriptorium de Oxford onde uma equipa diligente
ia arrumando em cacifos as muitas contribuições voluntárias que chegavam
pelo correio de todo o lado. Mais de uma dezena de milhar de citações
enviadas de Broadmoor pelo Dr. Minor fazem parte ainda hoje do OED .
Hoje ainda mais mentirosa que ontem, a velha silvery moon,
que já tanta coisa fez ao contrário que não sabe falar direito, que nos
engana com aquela luz branca batendo contra os loureiros, até junto às
pedras do lago, como se não fosse noite como devia ser. Como devia ser.
SEMPER IDEM: 31 DE JANEIRO - 2 DE FEVEREIRO DE 2004
ORGULHO 6 / NOTAS SOBRE AS FORMAS DE SENSIBILIDADE ANTIGAS
Presunção. A presunção é o último grau do orgulho antes de entrarmos no
pecado, nos graus do pecado. Bernardo sabe que agora já não é apenas a
ilusão do “curioso”, a sua agitação, o seu progressivo autismo,
a perda de exigência, a facilidade cómoda, o conforto psicológico que
estão em causa. Agora trata-se de escolhas fora da graça divina, agora
trata-se de cair numa vertente inclinada sem retorno.
Bernardo pergunta-se: com que mão escrevo? A que pune ou a que
esquece? A do fogo ou a da água? Bernardo olha para a neve lá fora. Na
primeira frase está a palavra “culpado”, porque Bernardo preza a
severidade, uma alta exigência consigo próprio, detesta as flutuações
do humor. (Não é de sensibilidades antigas que falamos?) O “culpado” continua a justificar-se, agora no patamar de se perder :
Je n'ai point fait cela; ou bien il dit: Je l'ai fait il est
vrai, mais j'ai bien fait, ou si j'ai eu tort de le faire, la faute
n'est pas grande, d'autant plus que je ne l'ai pas fait avec mauvaise
intention.
Palavras, palavras servem para tudo – pensa o monge. Bernardo fora
poeta na sua juventude, agora já não é. Sabe bem como há palavras para
justificar tudo (como as minhas? Hesita). E continua:
Si, comme Adam et Ève, il est convaincu de l'avoir fait, il
s'efforce d'en rejeter la faute sur un autre qui l'a conseillé. Or,
comment celui qui entreprend avec cette audace de justifier les fautes
les plus manifestes, pourra-t-il jamais aller découvrir avec humilité, à
son abbé; les mauvaises pensées qui se glissent secrètement dans son
coeur?
ORGULHO 7 / NOTAS SOBRE AS FORMAS DE SENSIBILIDADE ANTIGAS
Bernardo está cansado, tem febre, tem frio. Mas, no grau do orgulho
sobre o qual está a escrever, estão as grandes verdades de Deus e da
experiência humana dos erros do “curioso”, do “culpado”.
Bernardo sabe que não está a escrever para ninguém. Passados meia dúzia
de séculos, tempo irrisório para a verdade, ninguém sequer o vai
entender. A sua pena paira no vazio, como a maldição que Jorge Luís
Borges encontrou para Melanchton em “Um teólogo na Morte”:
Os anjos me disseram que, quando Melanchton morreu, lhe foi
oferecida no outro mundo uma casa ilusoriamente igual àquela que
possuíra na Terra. (A quase todos os recém-chegados à eternidade
acontece o mesmo e por isso acreditam que não morreram). Os objetos
domésticos eram iguais: a mesa, a escrivaninha com suas gavetas, a
biblioteca. Quando Melanchton despertou nessa casa, reatou suas tarefas
literárias como se não fosse um morto e escreveu durante alguns dias
sobre a salvação pela fé. Como era seu hábito, não disse uma palavra
sobre a caridade. Os anjos notaram essa omissão e mandaram pessoas a
interrogá-lo. Melanchton lhes falou: "Demonstrei de maneira irrefutável
que a alma pode dispensar a caridade e que para entrar no céu basta a
fé". Dizia isso com soberba e não sabia que já estava morto e que seu
lugar não era o céu. Quando os anjos ouviram essa afirmativa o
abandonaram.
Em poucas semanas, os móveis começaram a se encantar até se
tornarem invisíveis, com exceção da poltrona, da mesa, das folhas de
papel e do tinteiro. Além disso, as paredes do aposento se mancharam de
cal e o assoalho de um verniz amarelo. Sua própria roupa já estava muito
mais ordinária. Continuava, entretanto, escrevendo, mas como persistia
na negação da caridade, foi transferido para uma sala subterrânea, onde
estavam outros teólogos como ele. Ali ficou preso alguns dias e começou a
duvidar de sua tese e lhe deram permissão de voltar. A roupa que vestia
era de couro cru, mas procurou imaginar que a que tivera antes fora uma
simples alucinação e continuou elevando a fé e denegrindo a caridade.
Uma tarde, sentiu frio. Então percorreu a casa e comprovou que as demais
peças já não correspondiam às de sua casa na Terra. Uma delas estava
cheia de instrumentos desconhecidos; outra estava tão reduzida que era
impossível entrar nela; outra não tinha sofrido modificação, mas suas
janelas e portas davam para grandes dunas. A do fundo estava cheia de
pessoas que o adoravam e lhe repetiam que nenhum teólogo era tão sábio
quanto ele. Essa adoração agradou-o, mas como uma das pessoas não tinha
rosto e outras pareciam mortas, acabou se aborrecendo e desconfiando
delas. Determinou-se então a escrever um elogio da caridade, mas as
páginas que escrevia hoje apareciam apagadas amanhã. Isso aconteceu
porque eram feitas sem convicção.
Recebia muitas visitas de gente morta recentemente, mas sentia
vergonha de mostrar-se num lugar tão sórdido. Para fazer-lhes crer que
estava no céu, entrou em acordo com um feiticeiro dos que estavam na
peça dos fundos, e este os enganava com simulacros de esplendor e
serenidade. Era só as visitas se retirarem, reapareciam a pobreza e a
cal; às vezes isso acontecia um pouco antes.
As últimas notícias de Melanchton dizem que o mágico e um dos
homens sem rosto o levaram até as dunas e que agora ele é como que um
criado dos demônios.
Mas Bernardo tem uma missão, como Melanchton. Agora defronta um dos mais intímos sinais do pecado do orgulho: as “desculpas”, a que o Profeta chamava as “palavras da malícia”.
ORGULHO 8 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE
Bernardo tem agora pressa de acabar. Já tudo voa baixo. O corvo pousou
no chão, não na árvore. Os presságios acumulam-se. Ontem, ao fim da
tarde, um grupo de pássaros começou de repente a cantar sem nexo,
quebrando o silêncio. Bernardo pensou que a sua voz era a das almas
perdidas no Inferno. Pensou na Virgem para afastar o mal. Pensou: para
que faço eu isto, se não vale a pena? O demónio terá sempre melhor
colheita, os tempos estão para a “ligeireza do espírito”. Olhou outra
vez para fora, para a neve, com o mesmo olhar com que, anos mais tarde,
escolheu o vale da amargura, o Vallée d'Absinthe, para construir, com os
seus onze companheiros, a sua abadia.
Recomeçou. Encheu-se da crueldade de Deus, para além do cansaço, da
febre e da doença, e continuou a falar do orgulho. Bernardo sabia que o
orgulho era , por assim dizer, “dialéctico”. Faz parte da sua infinita
plasticidade fazer de conta que sofria, que hesitava, quando já tinha em
si a direcção do pecado. Escreveu:
"Il y a des personnes qui, lorsqu'elles s’entendent reprocher
des choses par trop manifestes, comprennent que, si elles entreprennent
de se justifier, elles ne réussissent point à se faire croire, ont
recours à un moyen plus subtil de se tirer d'affaire, et répondent par
un aveu plein de fourberie de leur faute: « Il en est en effet, est-il
écrit, qui s'humilient malicieusement et dont le fond du coeur est plein
de tromperie (Eccli., XIX, 23). » Ils baissent les yeux, courbent la
tête et font briller, s'ils le peuvent, une ou deux larmes ; leur voix
est étouffée par les soupirs et leurs paroles sont entrecoupées par les
sanglots”
ORGULHO 9 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE
Na noite, Bernardo mostrou aos anjos o que já tinha escrito. Os anjos corrigiram uma frase:
“Faz parte da sua infinita plasticidade [do orgulho] fazer de
conta que sofria, que hesitava, quando já tinha em si a direcção do
pecado.”
Não é a “direcção do pecado”, é a convicção do pecado. O pecado convence. O “curioso”
já fala com outra voz, já não é dele o que diz. Dentro dele só há ecos,
vozes, sussurros, amabilidades, conveniências, usos, lixo da
superficialidade, etiquetas da "ligeireza de espírito". Já tudo voa baixo.
Os anjos à noite visitavam-no porque Bernardo era fiel. Então corrigiu a frase e deu mais um passo no conhecimento do “curioso” que revela agora a sua face. E continou a escrever:
"Quelle confusion pour l'orgueilleux, quand sa supercherie est
découverte, la paix de son âme et sa gloire amoindrie, sans que sa faute
soit effacée pour cela? Il finit par être reconnu de tous et jugé par
tous, et l’indignation est d'autant plus violente, alors qu'on découvre
en même temps la fausseté de tout ce qu'on avait pensé d'abord de lui. "
ORGULHO 10 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE
Bernardo continua. Descoberta a sua “falsidade”, que faz o “curioso”?
Revolta-se. O que é que ele pode fazer para se continuar a ver ao
espelho? Revoltar-se, essa última ilusão do espírito, tão ao gosto do
futuro, como Bernardo bem sabe:
“Si celui qui en est arrivé là n'est pas touché de la grâce de
Dieu (or ceux qui sont dans cet état en sont bien difficilement
touchés), de façon à sa soumettre en silence au jugement que tout le
monde porte de lui, il ne tarde point à devenir effronté et impudent, et
à tomber par la rébellion, d'autant plus fâcheusement au dixième degré
de l'orgueil, qu'il y tombe d'une manière tout à fait désespérée. Alors
celui qui s'était contenté dans son arrogance de mépriser ses frères en
secret, se mettant en révolte ouverte, méprise son supérieur même.”
A convicção do pecado mostra-se então em todo o esplendor. O
orgulhoso já não peca apenas, defende activamente a liberdade de pecar.
Como dizem os Provérbios:
“Quando o pecador caiu no fundo do abismo do pecado, ele despreza tudo”.
Perdeu as referências, o norte, a pedra. Antes, tinha na sua vida
uma barra de ferro que o atravessava, que lhe dava consistência moral,
que não o deixava afastar-se da visão divina. Pagava essa barra com as
suas penitências, mas tinha uma direcção e uma paz. Os medos humanos
dissipavam-se à volta da barra.
Agora, o mundo é feito de gelatina, um gigantesco bordel atrás do
qual está uma dança macabra. Tudo agora se resume às pequenas trocas da
vaidade, a exercícios de massagem do ego. O orgulhoso despreza agora o
que o mantinha de pé. Conta a sua história a todos, e enaltece o valor
da sua rebelião. Os demónios dão vozes a todos para lhe responderem que
sim, que grande valor tem a rebelião do “curioso”. Ele sente-se
bem à mesa da confusão das vozes, sem perceber em que coro já canta.
Entrou no último grau do orgulho: o hábito de pecar.
Bernardo escreve o julgamento, próximo de fechar o seu tratado:
"Mais lorsque, par un terrible jugement de Dieu, les premiers
crimes ont été suivis de i'impunité, on revient volontiers à ce qui a e
procuré du plaisir et plus on y revient, plus on y trouve d'attrait. A
mesure que la concupiscence se réveille, la raison s'endort et les
chaînes de l'habitude se resserrent. Le malheureux est entraîné dans
l'abîme du péché et livré à la tyrannie de ses vices; emporté par le
torrent de ses désirs charnels, il oublie sa raison et la crainte de
Dieu, et finit, l'insensé! par dire dans son coeur : « Il n'y a pas de
Dieu (Psalm. XIII, 1)."
(Em seguida, quase a conclusão)
ORGULHO 11 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE
Bernardo chegou ao fim do seu tratado. Intitulou-o De Gradibus Superbiae et Humilitatis, e confessa que sabe falar melhor do orgulho do que da humildade:
“Peut-être, frère Geoffroy, en voyant que j'ai décrit les degrés
de l'orgueil, au lieu de ceux de l'humilité, direz-vous que j'ai fait
autre chose que ce que vous attendiez de moi et que je vous avais
promis. A cela je répondrai que je ne puis vous enseigner que ce que
j'ai appris et qu'il ne me semblait pas qu'il m'appartînt de vous
décrire les degrés ascendants, quand je sais beaucoup mieux descendre
que monter. “
Na sua cela, Bernardo está agitado. Chegou ao fim do seu texto, mas
não sabe como acabá-lo. Deve orar ou pedir a Deus um milagre salvífico,
ou descansar pelo dever cumprido de açoitar os pecadores? Como é que se
confrontam os pecadores que têm a voz do pecado, que assumem a
identidade do pecado, que têm uma forma tão própria de pecado que este
se lhes entranha no corpo todo, aqueles para quem pecar é um “orgulho”?
Ele acredita pouco na sua redenção, embora saiba que o tempo os
tornará amargos e desesperados. Todos os espelhos lhes mostrarão o
tempo, todos os relógios tocarão cada vez mais alto. Todas as palavras
soarão a falso se repetidas. O iníquo repetirá tudo, repetirá mil vezes
tudo, num esforço intenso de esquecer o que disse a Deus, o que prometeu
a Deus, mas a língua saberá cada vez mais a areia e ele sente as
palavras a caírem de velhas. Uma maldição antiga o persegue: de cada vez
que olha para uma árvore, uma folha cai para recusar o seu olhar.
Talvez o tempo os ensine, o passar dos dias, a diferença entre o
convívio com as vozes “ligeiras” e a alegria pura dos Momentos. Mas
Lúcifer distribuirá as águas do esquecimento com abundância e as
distracções são muitas.
Bernardo escreve então dois capítulos totalmente confusos.
Percebe-se que ele quer rigor e impiedade, mas que a sombra da Virgem
lhe pede caridade. Pede orações e desaconselha orações, revela a
surpresa de Deus, actuando ao acaso e onde menos era previsto, salvando
uns e poupando outros. Colecciona citações da Bíblia sem grande nexo. A
Virgem lembra-lhe que ele ainda tem um pequeno fio de ferro na mão.
Bernardo acaba então o seu tratado, sem verdadeiro fim, mas com a
convicção que não falará mais disso. Ponto.
“En effet, si en allant à Rome vous rencontrez un homme qui en
revient et que vous lui demandiez la route qui y mène, pourra-t-il vous
en enseigner une meilleure que celle par laquelle il en vient? En vous
disant par quels châteaux, quelles villas, quelles villes, quels fleuves
et quelles montagnes il a passé, il vous indique en même temps le
chemin qu'il a parcouru et celui que vous devez suivre à votre tour, en
sorte que vous devrez, en allant à Rome, passer par les mêmes endroits
qu'il a traversés pour en venir. Ainsi, peut-être, dans mes degrés
descendants trouverez-vous les degrés ascendants que vous reconnaîtrez
en les gravissant, beaucoup mieux dans votre coeur que dans mon écrit. “
"Se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o
passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o
presente é futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro."
Continuando. O melhor texto que conheço sobre o orgulho é de Bernardo
de Clairvaux. É um texto severo , como se podia esperar, impregnado de
uma disciplina última face ao divino, mas, em cada linha , um retrato
inultrapassável dum sentimento que , se pensarmos um pouco, é estranho.
Se o virmos do lado prometaico, como os românticos o viam, ele é o
fundamento da humanidade: sem orgulho o homem não rouba o fogo divino.
Mas essa forma de orgulho não é a mais interessante.
Bernardo percebe essa estranheza, mas vê-a com uma sensibilidade
diferente. O orgulho não é para ele um sentimento evidente nos homens,
é, num certo sentido, um sentimento puramente diabólico. Como nasce o
orgulho? Na parte II do Tratado dos Doze Graus do Orgulho (utilizo a versão francesa das obras de Bernardo que se encontra aqui ) ele começa onde menos se esperava, mas acertando completamente. Começa na “curiosidade” , na “curiosidade” como “agitação do corpo”:
"Le premier, degré de l'orgueil est la curiosité. Vous la
reconnaîtrez à ces signes. Si vous voyez un moine dont jusqu'alors vous
étiez parfaitement sûr, commencer, partout où il se trouve, debout, en
marche ou assis, à tourner les yeux de côté et d'autre, à lever la tête
et à avoir s l'oreille au guet, tenez pour certain que ces changements
extérieurs sont le signe d'un changement intérieur ; car « l'homme qui
se pervertit, fait des signes des yeux, frappe du pied et parle avec les
doigts (Prov., VI, 12); » cette agitation inaccoutumée du corps est
l'indice d’une maladie de l'âme qui débute et qui la rend moins
circonspecte, insouciante de ce qui la concerne et curieuse, au
contraire, de ce qui a rapport aux autres. "
A que se deve esta desatenção? Aos sentidos, à distracção dos sentidos, à desatenção de si, à perda do “coração” por via dessas “duas aberturas”, os olhos e as orelhas. Eva e Lúcifer foram curiosos e perderam-se por isso.
Bernardo procura um espelho capaz para essas “duas aberturas”, encontra-o na terra
"Où vas-tu donc, ô curieux, quand tu sors de toi et, pendant ce
temps-là, à quel gardien te confies-tu? D'ailleurs comment oses-tu bien
lever les yeux au ciel contre lequel tu as péché ? Regarde la terre pour
apprendre à te connaître; elle te remettra en face de toi, car tu n'es
que de la terre et tu retourneras à la terre."
O que ele diz é : antes de te distraíres no mal, antes de cederes ao
orgulho de olhar para cima, confronta-te com a tua mortalidade, porque é
mais verdadeira. Mas, se continuares “curioso”, chegarás ao “segundo grau” do orgulho : a “ligeireza de espírito”.
ORGULHO 2
Antes de entrar na “ligeireza do espírito”,
leia-se este fabuloso texto em que Bernardo se dirige a Lúcifer,
tratando-o por tu, e como o Anjo perdido, com uma familiaridade sem
sombra de medo. Para Bernardo, o demónio parece ser ainda um deles,
irremediavelmente perdido pelo orgulho, mas feito da matéria dos anjos.
Usa os três nomes para o designar: o que traz a luz, o que traz a noite,
o que traz a morte.
“O toi qui te levais le matin, Lucifer, ou plutôt Noctifer et
même Mortifer, jadis tu prenais ton essor de l'Orient au Midi, et voilà
que, changeant de direction, je te vois tendre vers l'Aquilon! Mais plus
ton vol est rapide pour t'élever, plus je te vois tomber vite vers le
Couchant. je voudrais bien pourtant, ô ange curieux, examiner moi-même
de plus près la pensée intime de ta curiosité : «J'élèverai, dis-tu, mon
trône à l'Aquilon (Isa., XIV, 13). » Il ne peut être question dans ta
bouche d'un Aquilon ni d'un trône matériels, puisque tu es un pur
esprit; « l'Aquilon » pourrait donc bien signifier les futurs réprouvés
et « ce trône, »le pouvoir qui t'est accordé sur eux. Plus ta science te
rapproche de la prescience de Dieu, en comparaison du reste des anges,
plus aussi tu distingues avec perspicacité ceux qui ne reçoivent pas un
rayon de la sagesse et ne se font point remarquer par la ferveur de
l'esprit. Les trouvant vides, tu établis en eux ton empire, tu les
remplis de la lumière de ton astuce, tu les enflammes des ardeurs de ta
malice et, de même que le Très-Haut se trouve par sa sagesse et sa bonté
à la tète de tous les fils de l'obéissance, ainsi tu te trouves à la
tête de tous les fils de l'orgueil; tu es leur roi, tu les gouvernes par
ton astucieuse perversité et par ta perverse fourberie, et voilà
comment tu prétends ressembler à Dieu. “
“Encontrando-os vazios, tu estabeleceste neles o teu império”, tu “estás à frente de todos os filhos do orgulho”
e leva-los para a condenação. Como o orgulho é uma forma de cegueira,
dominados pela falsa segurança, os homens esquecem-se que Lúcifer não
detém os “fios” últimos do poder, os “fios da obediência”.
Lúcifer não foi capaz de prever a sua queda. A sua surpresa é o acto do
poder de Deus, a punição do orgulho, a mais humana das punições
“Mais je me demande si tu as prévu ta chute en présence de Dieu
aussi bien que tu avais prévu ta principauté sous ses yeux? Si tu l'as
prévue, quelle ne fut point ta folie de vouloir dominer au prix de
semblables malheurs et d'aimer mieux régner à des conditions si
misérables que de servir dans la félicité? Ne valait-il pas mieux pour
toi participer à ces plaies lumineuses que d'être le prince des
ténèbres? Mais j'aime mieux croire que tu n'as rien prévu, soit, comme
je l'ai dit plus haut, que ne songeant qu'à la bonté de Dieu, tu te sois
dit: Il ne me punira point, et que cette pensée impie t'ait porté à
l'irriter ou, qu'à la vue du premier rang à occuper, la poutre de
l'orgueil se soit tout à coup tellement accrue dans ton oeil qu'elle
t'ait empêché de voir le précipice.”
Em que teria pensado Lúcifer enquanto caía? Reproduziria a sua
soberba, explicando-se, justificando tudo pela inevitabilidade das
coisas, pela fraqueza de si? Ou teria percebido? Bernardo não responde;
Milton fê-lo mais tarde, de outra maneira.
ORGULHO 3 / NOTAS SOBRE AS FORMAS DE SENSIBILIDADE ANTIGAS
Os textos de Bernardo sobre o segundo e o terceiro graus do orgulho são
muito claros na descrição da natureza humana do orgulhoso, preso na "ligeireza do espírito " e na "alegria imbecil". Escrevendo há mil anos, o nosso monge sabe do que fala.
O "curioso", dominado pela "mobilidade dos seus olhos", começa então a olhar para cima e para baixo, num momento de contradição que em breve abandonará:
“ d'un côté il sèche misérablement de jalousie et de l'autre il
sourit dans son orgueil à de puérils sentiments de grandeur; vain ici,
mauvais là, il est partout orgueilleux ; car ce n'est que par amour de
sa propre excellence qu'il ne peut voir sans douleur qu'il a des
supérieurs, de même qu'il ne peut songer qu'il a des inférieurs sans en
ressentir de la joie. »
Fala então por todo o lado , com "palavras tão abundantes quanto vãs, tanto cheias de risos como de lágrimas, mas sempre insensatas". Mas este é um momento de transição , porque o olhar do “curioso” sofre uma interessante mutação : com o tempo deixa de olhar para cima e passa apenas a olhar para baixo.
« Il restreint donc sa curiosité, du côté où elle e ne peut lui
montrer que son propre néant et l'excellence d'autrui, pour la reporter;
tout entière dans le sens opposé, afin de noter avec soin en quoi il
lui semble qu'il excelle lui-même sur les autres et de ne rien perdre de
sa joie en ne voyant plus rien de ce qui l'afflige. De cette manière,
son coeur qui avait commencé par être tour à tour en proie à la joie et à
la tristesse, commence à ne plus éprouver qu'une sotte joie. »
Bernardo compara o orgulhoso neste estado a um balão cheio de ar, cheio do “vento da vaidade”, explodindo de actividade:
« Il y a de la bouffonnerie dans ses manières, l'enjouement
brille sur son visage et la vanité éclate dans toute sa démarche; il
plaisante volontiers, volontiers aussi il s'abandonne au rire ; cela se
conçoit, car en même temps qu'il a effacé de sa mémoire le souvenir de
tout ce qu'il y a en lui de méprisable et de triste, il a groupé sous
les yeux de son âme tout le bien qu'il se connaît ou qu'il se suppose,
attendu qu'il ne pense que ce qu'il lui plaît et se met peu en peine du
reste, s'il le peut; enfin il ne peut plus ni retenir ses rires ni
dissimuler sa sotte joie. »
Abre-se o caminho à jactância, o grau (o degrau) seguinte do orgulho.
ORGULHO 4
Ele mergulhou a mão na neve, para a limpar do contacto com o impuro,
e continuou. Ele, servo de forças terríveis, ele, a voz da obediência,
ele, o inclemente, ele. Prossigamos. Sigamos a ordem. A jactância.
Há uns anos, nos momentos mais complicados de dissolução da URSS,
nada funcionava na Rússia. Todos os dias de manhã, no Hotel Ukraina, o
pequeno almoço era uma saga. Chegava o samovar com o chá e não havia
chávenas lavadas. Chegavam as chávenas, não havia colheres. Chegavam as
colheres e não havia chá outra vez. Os estrangeiros recém-chegados
protestavam em vão. Os russos e os velhos habitantes do Hotel Ukraina,
que já conheciam todas as rotinas, iam buscar chávenas à cozinha,
acumulavam duas ou três chávenas em cima da mesa para armazenar o
precioso chá, etc. Um amigo meu disse-me: “vais ver, ao quinto dia já
estamos como eles, a ir buscar chá à cozinha, muito caladinhos”. Ao
terceiro dia já íamos buscar chá à cozinha.
Não há nada como o hábito e como o sentimento de impotência para que
se aceite tudo. Não há nada como a ecologia envolvente para se achar
tudo normal. O resvalar contínuo para a mediocridade, o abaixamento dos
requisitos mínimos, que antes juraríamos nunca aceitar. Que eram mesmo
inimagináveis. Não, meus amigos, é na cozinha que está o chá, que estão
as chávenas, que está o açúcar. É na cozinha. O que é que querem mais?
Qualidade no serviço? Isso não é aqui. Nem no Hotel Rossya, do outro
lado.
Hoje,
há setenta e um anos, o coronel John de Multon, que servira de forma
distinta na Índia, apareceu na consulta de Fritz Wittels, no Bellevue
Hospital em New York. Wittels, um discipulo de Freud, que foi também o
analista de E. E. Cummings, deixou uma série de notas para as suas
memórias sobre este caso. O coronel sofria de alethia,
a incapacidade de esquecer. Era incapaz de fazer a mais pequena e
trivial das coisas sem se lembrar das mesmas coisas que já tinha feito.
Não eram as memórias longínquas que o atormentavam, mas as próximas.
Hoje, lembrava-se de ontem, ontem lembrava-se de anteontem.
As
memórias cobriam todo o quotidiano e todos os sentidos, tacto, olfacto,
audição, visão. As memórias tinham-se tornado obsessivas e levado o
coronel, um homem muito reservado, àquilo que ele considerava uma
vergonha: contá-las. Via uma estrebaria, lembrava-se onde costumava
deixar o cavalo. Via a rua, lembrava-se do lado do ouvido. Via o
relógio, lembrava-se das horas. Via as horas, lembrava-se do relógio.
Via pornografia, lembrava-se das cenas. Via o gin,
lembrava-se do limão. Via um jornal inglês, lembrava-se de Londres.
Via uma casa, lembrava-se da casa. Via Brighton. lembrava-se do casino.
Via uma gravura, lembrava-se das gravuras que recebia, numa assinatura
que tinha expirado. Via um melro, lembrava-se das gralhas. Ouvia "é
hoje" e não era hoje. Via tudo com toda a nitidez como se as memórias
fossem dele e não eram. Não estava bem do lado de cá e sabia que o lado
de lá estava estragado irremediavelmente. Desejava esquecer, mas tinha
ao mesmo tempo receio que as suas memórias já se estivessem a
dispersar, que deixassem de lhe pertencer, que estivessem a ser
contadas, a perderem-se numa voz nocturna que o assaltava hoje e de que
também se lembrava ontem. Sabia que essa voz estava a falar algures.
Imaginava um narração detalhada, comparações, distâncias, fugas, novas
alegrias, repetições. Queria e não queria as suas memórias de volta.
O
coronel estava cansado, abúlico, perdera o interesse. Andava com pouco
destino. Perdera a reserva, sentia-se ridículo. Imaginava os vizinhos,
que sabiam da sua doença, a rirem-se dele que fora sempre um homem
digno. Ele ria-se dele, o que era pior, contava ao grave doutor
freudiano. Wittels anotou: "obsessive detail, cristal memory, pain, confusion."
Hoje é um dia em que a politiquice, a pura coreografia política, a ilusão, o dolo, vão atingir limites de insulto a todos os portugueses que estão a empobrecer. Esta dança entre Passos Coelho e Portas (e deliberadamente escrevo antes de Portas falar) é a utilização da comunicação social e de alguns truques demasiado conhecidos para "todos se sairem bem", com o objectivo de nos distrair e enganar. É corrrupção das mentes, tão grave quanto a dos bolsos, é exactamente tudo aquilo que desagrega velozmente uma democracia. Metáforas habilidosas, recursos semânticos de um autor de títulos de soundbyte, frases que pretendem ser virais, desculpas apresentadas como vitórias, imagem, imagem, imagem, vaidade, vaidade, vaidade. E pequenez disfarçada de esperteza.
O combate contra o governo incompetente, arrogante e destruidor que temos, que vive do medo das pessoas de perderem o mais básico da sua vida, vai acabar por ter mais do que uma dimensão política, vai ter uma dimensão de dever, de obrigação, uma dimensão ética. Com este tipo de coerografias dolosas, sem respeito por ninguém, sem sentido de responsabilidade, e muito menos de estado, está-se a abrir o caminho para a desobediência civil. E estou a dizer exactamente o que quero dizer.