ABRUPTO

9.5.13


SEMPER IDEM: 12 DE JULHO DE 2007


NUNCA É TARDE PARA APRENDER: OS LOUCOS QUE QUEREM SABER TUDO

Simon Winchester, The Professor and the Madman, HarperCollins, 1998

Os autores de dicionários e enciclopédias tendem a enlouquecer com a tarefa. Esta é matéria que percebo muito bem, estando no ofício da referência. Cada entrada nova no meu dicionário-enciclopédia, a que dedico "o melhor dos meus dias", como se dizia antigamente, tem o hábito de se alargar por pelo menos mais três ou quatro entradas. Para cada entrada nova, parece haver mais dez à espreita. E quando se quer fichar tudo, registar tudo, o espaço por preencher tem tendência para aumentar à medida que campos e campos de palavras já enchem uma vastidão atrás. A regra é que atrás está sempre uma pequena vastidão e à frente uma gigantesca vastidão. Vejam lá como isto é pouco normal... Tudo isto exige um grão de loucura prévia, que tende a agravar-se.

Mas o caso do Dr. W. C. Minor, médico, militar, erudito, flautista, pintor de aguarelas e "lunático criminoso" vai um pouco mais longe. Os eruditos têm loucuras habitualmente mansas, mas o Dr. Minor estava internado perpetuamente porque um dia saiu à rua de pistola em punho e matou um desgraçado que lhe apareceu numa esquina, convencido que assim eliminava os seus "inimigos". Estes "inimigos" entravam-lhe à noite no quarto pelo soalho (mandou depois colocar um chão de zinco) ou pelos interstícios do telhado, pegavam nele e levavam-no para um qualquer bordel de Istambul, onde o obrigavam a praticar "actos imorais" com rapazes e raparigas. Noite, após noite, após noite. Já muitos anos depois de internado, o Dr. Minor resolveu castrar-se para ver se os seus "inimigos" o deixavam em paz. Não deixaram.
 
Pois este Dr. Minor, diagnosticado como tendo dementia praecox, agravada pelo traumatismo de ter assistido como médico militar a algumas selvajarias da Guerra Civil americana, preso num asilo inglês, durante décadas tornou-se o mais prolixo, preciso e rigoroso amador, entre os muitos que apoiavam a redacção de uma das mais gigantescas obras de erudição de sempre, o Oxford English Dictionary (OED). Durante anos, sem saber qual era a origem das ajudas preciosas que recebia - verbetes de palavras, apoiadas por citações quanto aos seus diferentes significados e primeiro uso conhecido por escrito - o outro doido, mas manso neste caso, o célebre editor do dicionário, James Murray, que se abalançou à tarefa de registar em papel uma língua, o inglês, cada vez tinha em maior consideração e utilidade as contribuições que recebia dum tal Dr. Minor que escrevia de Broadmoor. Mais tarde veio a descobrir que era um "lunático criminoso" que lhe enviava os verbetes cuidadosamente redigidos, apoiados em leituras de livros do século XVII e numa paixão pelas palavras sem paralelo. Murray encontrou em Minor alguém que percebia muito bem o objectivo do dicionário e se interessava não apenas pelos vocábulos raros e caídos em desuso, ou por regionalismos ignorados, como muito lexicógrafos amadores faziam, mas pelas palavras comuns e pelas finas gradações de significado que continham e que era suposto ficarem registadas nesse grande catálogo da língua.

Quando Murray veio a conhecer o Dr. Minor, uma história que correu mundo na época (primeira década do século XX) numa versão tablóide, tornou-se seu amigo e ajudou-o como pode a suportar melhor a sua doença e internamento. Ambos se correspondiam e durante vários anos, os contributos do Dr. Minor para o dicionário chegavam diariamente ao Scriptorium de Oxford onde uma equipa diligente ia arrumando em cacifos as muitas contribuições voluntárias que chegavam pelo correio de todo o lado. Mais de uma dezena de milhar de citações enviadas de Broadmoor pelo Dr. Minor fazem parte ainda hoje do OED .

(Escolha de António Bettencourt)

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© José Pacheco Pereira
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