ABRUPTO

10.5.13


SEMPER IDEM: 25 DE AGOSTO DE 2003

 
”DECISÕES TERRORISTAS” – Conclusão

(A propósito de um texto de Paulo Varela Gomes no cristóvão-de-moura. No Abrupto, lá para baixo, estão as outras duas partes.)

Interpretar a história como uma sucessão de actos únicos, sujeitos apenas à vontade dos seus agentes, feitos para “além do bem e do mal”, é bastante atractivo. O actual terrorismo apocalíptico vai aí buscar uma das sua fontes, por via do “excesso” religioso, da ideia de “martírio” , não por acreditar na irracionalidade da história, mas por acreditar na racionalidade do terror. É contraditório, mas muitas vezes é assim.

Eu não tenho a certeza que a história não seja fundamentalmente irracional, até por outras razões. Basta que se abandone qualquer transcendência, qualquer destino manifesto, qualquer variante hegeliana da História com H grande, seja marxista, seja cristã (como em Teilhard de Chardin) . Tira-se a teleologia e ficam os humanos com o ónus de fazerem a história, ficando os humanos, é o que se vê.

Basta que se considere que o homem não tem qualquer garantia divina para a sua sobrevivência, para se perceber que, desde que possui armas termo – nucleares, tem elevadas probabilidades de se estourar a si próprio – é só uma questão de tempo. Este é aliás o único problema filosófico radicalmente novo que penso não estar presente na tradição clássica grega. (Penso também, mas isto é um desvio, que foi a Bomba, como se escrevia nos anos cinquenta, que dissolveu interiormente todas as teorias da história triunfante com H grande.). Se nos podemos matar a todos, numa esquina da história, toda a história fica, retrospectivamente sem sentido, e é um gigantesco delírio do acaso, uma absoluta irracionalidade face ao domínio da morte, da entropia.

Repito agora a frase anterior, com um acrescento para mim fundamental: eu não tenho a certeza que a história não seja fundamentalmente irracional, mas quero viver e actuar como se não fosse. Não me interessa, a não ser do ponto de vista cientifico, o que a história é ou pode ser, au grand complet , porque não pretendo ter como programa de vida qualquer vazio, mas um mais humilde programa de sobrevivência. Digamos que sou agnóstico quanto aos fins da história, mas crente na sua racionalidade possível e fragmentária . Dito de forma abrupta: eu não acredito que haja progresso, mas entre um mundo sem anestesia e outro com anestesia , há para mim uma diferença abissal.

Isso talvez me torne numa espécie mais complicada do que os voluntaristas brutos de PVG, num voluntarista cultural ou simbólico, que actua perante as coisas por via de uma teatro, de uma ficção, que resulta tanto mais quanto o maior número de pessoas aceite representa-la, sempre sem qualquer garantia de sucesso final. Mas há uma razão para que eu queira viver assim: é que se houver um número significativo de pessoas a fazerem o mesmo, criam à sua volta uma ecologia mais saudável, menos violenta, mais vivível e já não é mau que o consigam em determinados espaços e durante determinados períodos de tempo. Talvez haja uma massa crítica nestas coisas e se consiga tornar o mundo melhor por pequenos períodos de tempo, para um cada vez maior número de pessoas. Talvez.

É por isso que, do meu ponto de vista, posso decidir com a mesma firmeza que PVG atribui às suas personagens nietzschianas, apenas fundado numa filosofia pragmática, para tempos difíceis, sem pretensões sistemáticas. Não preciso de grandes certezas, nem de especiais “músculos da vontade”, mas apenas de um discernimento quase de bom senso, uma filosofia mais do lado humilde da anestesia, pela anestesia, por mil e uma pequenas anestesias, incluindo o bem-estar, a liberdade, a democracia, a felicidade. Pode ser tudo precário, pode ser um esbracejar ilusório, mas não troco e luto, se for preciso, para que não me obriguem a trocar.

E isso diz-me que há “decisões” que, mesmo implicando em última ratio a violência, não são “terroristas” porque são contra o mundo do sistema da morte, contra o apocalipse now, a favor do império da anestesia e contra o do da kalashnikov.
 
 (Escolha de João Francisco)

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© José Pacheco Pereira
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