ABRUPTO

7.5.13


SEMPER IDEM: 29 DE JUNHO DE 2008


POEIRA DE 29 DE JUNHO

Hoje, há setenta e um anos, o coronel John de Multon, que servira de forma distinta na Índia, apareceu na consulta de Fritz Wittels, no Bellevue Hospital em New York. Wittels, um discipulo de Freud, que foi também o analista de E. E. Cummings, deixou uma série de notas para as suas memórias sobre este caso. O coronel sofria de alethia, a incapacidade de esquecer. Era incapaz de fazer a mais pequena e trivial das coisas sem se lembrar das mesmas coisas que já tinha feito. Não eram as memórias longínquas que o atormentavam, mas as próximas. Hoje, lembrava-se de ontem, ontem lembrava-se de anteontem.

As memórias cobriam todo o quotidiano e todos os sentidos, tacto, olfacto, audição, visão. As memórias tinham-se tornado obsessivas e levado o coronel, um homem muito reservado, àquilo que ele considerava uma vergonha: contá-las. Via uma estrebaria, lembrava-se onde costumava deixar o cavalo. Via a rua, lembrava-se do lado do ouvido. Via o relógio, lembrava-se das horas. Via as horas, lembrava-se do relógio. Via pornografia, lembrava-se das cenas. Via o gin, lembrava-se do limão. Via um jornal inglês, lembrava-se de Londres. Via uma casa, lembrava-se da casa. Via Brighton. lembrava-se do casino. Via uma gravura, lembrava-se das gravuras que recebia, numa assinatura que tinha expirado. Via um melro, lembrava-se das gralhas. Ouvia "é hoje" e não era hoje. Via tudo com toda a nitidez como se as memórias fossem dele e não eram. Não estava bem do lado de cá e sabia que o lado de lá estava estragado irremediavelmente. Desejava esquecer, mas tinha ao mesmo tempo receio que as suas memórias já se estivessem a dispersar, que deixassem de lhe pertencer, que estivessem a ser contadas, a perderem-se numa voz nocturna que o assaltava hoje e de que também se lembrava ontem. Sabia que essa voz estava a falar algures. Imaginava um narração detalhada, comparações, distâncias, fugas, novas alegrias, repetições. Queria e não queria as suas memórias de volta.

O coronel estava cansado, abúlico, perdera o interesse. Andava com pouco destino. Perdera a reserva, sentia-se ridículo. Imaginava os vizinhos, que sabiam da sua doença, a rirem-se dele que fora sempre um homem digno. Ele ria-se dele, o que era pior, contava ao grave doutor freudiano. Wittels anotou: "obsessive detail, cristal memory, pain, confusion."

(Escolha de A.)

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© José Pacheco Pereira
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