ABRUPTO |
![]() semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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7.5.13
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12:43
(JPP)
POEIRA DE 29 DE JUNHO ![]()
As
memórias cobriam todo o quotidiano e todos os sentidos, tacto, olfacto,
audição, visão. As memórias tinham-se tornado obsessivas e levado o
coronel, um homem muito reservado, àquilo que ele considerava uma
vergonha: contá-las. Via uma estrebaria, lembrava-se onde costumava
deixar o cavalo. Via a rua, lembrava-se do lado do ouvido. Via o
relógio, lembrava-se das horas. Via as horas, lembrava-se do relógio.
Via pornografia, lembrava-se das cenas. Via o gin,
lembrava-se do limão. Via um jornal inglês, lembrava-se de Londres.
Via uma casa, lembrava-se da casa. Via Brighton. lembrava-se do casino.
Via uma gravura, lembrava-se das gravuras que recebia, numa assinatura
que tinha expirado. Via um melro, lembrava-se das gralhas. Ouvia "é
hoje" e não era hoje. Via tudo com toda a nitidez como se as memórias
fossem dele e não eram. Não estava bem do lado de cá e sabia que o lado
de lá estava estragado irremediavelmente. Desejava esquecer, mas tinha
ao mesmo tempo receio que as suas memórias já se estivessem a
dispersar, que deixassem de lhe pertencer, que estivessem a ser
contadas, a perderem-se numa voz nocturna que o assaltava hoje e de que
também se lembrava ontem. Sabia que essa voz estava a falar algures.
Imaginava um narração detalhada, comparações, distâncias, fugas, novas
alegrias, repetições. Queria e não queria as suas memórias de volta.
O
coronel estava cansado, abúlico, perdera o interesse. Andava com pouco
destino. Perdera a reserva, sentia-se ridículo. Imaginava os vizinhos,
que sabiam da sua doença, a rirem-se dele que fora sempre um homem
digno. Ele ria-se dele, o que era pior, contava ao grave doutor
freudiano. Wittels anotou: "obsessive detail, cristal memory, pain, confusion."
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© José Pacheco Pereira
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