ABRUPTO

9.5.13


SEMPER IDEM: 31 DE JANEIRO - 2 DE FEVEREIRO DE 2004


ORGULHO 6 / NOTAS SOBRE AS FORMAS DE SENSIBILIDADE ANTIGAS

Presunção. A presunção é o último grau do orgulho antes de entrarmos no pecado, nos graus do pecado. Bernardo sabe que agora já não é apenas a ilusão do “curioso”, a sua agitação, o seu progressivo autismo, a perda de exigência, a facilidade cómoda, o conforto psicológico que estão em causa. Agora trata-se de escolhas fora da graça divina, agora trata-se de cair numa vertente inclinada sem retorno.

Bernardo pergunta-se: com que mão escrevo? A que pune ou a que esquece? A do fogo ou a da água? Bernardo olha para a neve lá fora. Na primeira frase está a palavra “culpado”, porque Bernardo preza a severidade, uma alta exigência consigo próprio, detesta as flutuações do humor. (Não é de sensibilidades antigas que falamos?) O “culpado” continua a justificar-se, agora no patamar de se perder :

Je n'ai point fait cela; ou bien il dit: Je l'ai fait il est vrai, mais j'ai bien fait, ou si j'ai eu tort de le faire, la faute n'est pas grande, d'autant plus que je ne l'ai pas fait avec mauvaise intention.

Palavras, palavras servem para tudo – pensa o monge. Bernardo fora poeta na sua juventude, agora já não é. Sabe bem como há palavras para justificar tudo (como as minhas? Hesita). E continua:

Si, comme Adam et Ève, il est convaincu de l'avoir fait, il s'efforce d'en rejeter la faute sur un autre qui l'a conseillé. Or, comment celui qui entreprend avec cette audace de justifier les fautes les plus manifestes, pourra-t-il jamais aller découvrir avec humilité, à son abbé; les mauvaises pensées qui se glissent secrètement dans son coeur?

ORGULHO 7 / NOTAS SOBRE AS FORMAS DE SENSIBILIDADE ANTIGAS

Bernardo está cansado, tem febre, tem frio. Mas, no grau do orgulho sobre o qual está a escrever, estão as grandes verdades de Deus e da experiência humana dos erros do “curioso”, do “culpado”. Bernardo sabe que não está a escrever para ninguém. Passados meia dúzia de séculos, tempo irrisório para a verdade, ninguém sequer o vai entender. A sua pena paira no vazio, como a maldição que Jorge Luís Borges encontrou para Melanchton em “Um teólogo na Morte”:

Os anjos me disseram que, quando Melanchton morreu, lhe foi oferecida no outro mundo uma casa ilusoriamente igual àquela que possuíra na Terra. (A quase todos os recém-chegados à eternidade acontece o mesmo e por isso acreditam que não morreram). Os objetos domésticos eram iguais: a mesa, a escrivaninha com suas gavetas, a biblioteca. Quando Melanchton despertou nessa casa, reatou suas tarefas literárias como se não fosse um morto e escreveu durante alguns dias sobre a salvação pela fé. Como era seu hábito, não disse uma palavra sobre a caridade. Os anjos notaram essa omissão e mandaram pessoas a interrogá-lo. Melanchton lhes falou: "Demonstrei de maneira irrefutável que a alma pode dispensar a caridade e que para entrar no céu basta a fé". Dizia isso com soberba e não sabia que já estava morto e que seu lugar não era o céu. Quando os anjos ouviram essa afirmativa o abandonaram.

Em poucas semanas, os móveis começaram a se encantar até se tornarem invisíveis, com exceção da poltrona, da mesa, das folhas de papel e do tinteiro. Além disso, as paredes do aposento se mancharam de cal e o assoalho de um verniz amarelo. Sua própria roupa já estava muito mais ordinária. Continuava, entretanto, escrevendo, mas como persistia na negação da caridade, foi transferido para uma sala subterrânea, onde estavam outros teólogos como ele. Ali ficou preso alguns dias e começou a duvidar de sua tese e lhe deram permissão de voltar. A roupa que vestia era de couro cru, mas procurou imaginar que a que tivera antes fora uma simples alucinação e continuou elevando a fé e denegrindo a caridade. Uma tarde, sentiu frio. Então percorreu a casa e comprovou que as demais peças já não correspondiam às de sua casa na Terra. Uma delas estava cheia de instrumentos desconhecidos; outra estava tão reduzida que era impossível entrar nela; outra não tinha sofrido modificação, mas suas janelas e portas davam para grandes dunas. A do fundo estava cheia de pessoas que o adoravam e lhe repetiam que nenhum teólogo era tão sábio quanto ele. Essa adoração agradou-o, mas como uma das pessoas não tinha rosto e outras pareciam mortas, acabou se aborrecendo e desconfiando delas. Determinou-se então a escrever um elogio da caridade, mas as páginas que escrevia hoje apareciam apagadas amanhã. Isso aconteceu porque eram feitas sem convicção.

Recebia muitas visitas de gente morta recentemente, mas sentia vergonha de mostrar-se num lugar tão sórdido. Para fazer-lhes crer que estava no céu, entrou em acordo com um feiticeiro dos que estavam na peça dos fundos, e este os enganava com simulacros de esplendor e serenidade. Era só as visitas se retirarem, reapareciam a pobreza e a cal; às vezes isso acontecia um pouco antes.

As últimas notícias de Melanchton dizem que o mágico e um dos homens sem rosto o levaram até as dunas e que agora ele é como que um criado dos demônios.


Mas Bernardo tem uma missão, como Melanchton. Agora defronta um dos mais intímos sinais do pecado do orgulho: as “desculpas”, a que o Profeta chamava as “palavras da malícia”. 

ORGULHO 8 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE

Bernardo tem agora pressa de acabar. Já tudo voa baixo. O corvo pousou no chão, não na árvore. Os presságios acumulam-se. Ontem, ao fim da tarde, um grupo de pássaros começou de repente a cantar sem nexo, quebrando o silêncio. Bernardo pensou que a sua voz era a das almas perdidas no Inferno. Pensou na Virgem para afastar o mal. Pensou: para que faço eu isto, se não vale a pena? O demónio terá sempre melhor colheita, os tempos estão para a “ligeireza do espírito”. Olhou outra vez para fora, para a neve, com o mesmo olhar com que, anos mais tarde, escolheu o vale da amargura, o Vallée d'Absinthe, para construir, com os seus onze companheiros, a sua abadia.

Recomeçou. Encheu-se da crueldade de Deus, para além do cansaço, da febre e da doença, e continuou a falar do orgulho. Bernardo sabia que o orgulho era , por assim dizer, “dialéctico”. Faz parte da sua infinita plasticidade fazer de conta que sofria, que hesitava, quando já tinha em si a direcção do pecado. Escreveu:

"Il y a des personnes qui, lorsqu'elles s’entendent reprocher des choses par trop manifestes, comprennent que, si elles entreprennent de se justifier, elles ne réussissent point à se faire croire, ont recours à un moyen plus subtil de se tirer d'affaire, et répondent par un aveu plein de fourberie de leur faute: « Il en est en effet, est-il écrit, qui s'humilient malicieusement et dont le fond du coeur est plein de tromperie (Eccli., XIX, 23). » Ils baissent les yeux, courbent la tête et font briller, s'ils le peuvent, une ou deux larmes ; leur voix est étouffée par les soupirs et leurs paroles sont entrecoupées par les sanglots”

ORGULHO 9 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE

Na noite, Bernardo mostrou aos anjos o que já tinha escrito. Os anjos corrigiram uma frase:

Faz parte da sua infinita plasticidade [do orgulho] fazer de conta que sofria, que hesitava, quando já tinha em si a direcção do pecado.

Não é a “direcção do pecado”, é a convicção do pecado. O pecado convence. O “curioso” já fala com outra voz, já não é dele o que diz. Dentro dele só há ecos, vozes, sussurros, amabilidades, conveniências, usos, lixo da superficialidade, etiquetas da "ligeireza de espírito". Já tudo voa baixo.

Os anjos à noite visitavam-no porque Bernardo era fiel. Então corrigiu a frase e deu mais um passo no conhecimento do “curioso” que revela agora a sua face. E continou a escrever:

"Quelle confusion pour l'orgueilleux, quand sa supercherie est découverte, la paix de son âme et sa gloire amoindrie, sans que sa faute soit effacée pour cela? Il finit par être reconnu de tous et jugé par tous, et l’indignation est d'autant plus violente, alors qu'on découvre en même temps la fausseté de tout ce qu'on avait pensé d'abord de lui. " 
 
ORGULHO 10 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE

Bernardo continua. Descoberta a sua “falsidade”, que faz o “curioso”? Revolta-se. O que é que ele pode fazer para se continuar a ver ao espelho? Revoltar-se, essa última ilusão do espírito, tão ao gosto do futuro, como Bernardo bem sabe:

Si celui qui en est arrivé là n'est pas touché de la grâce de Dieu (or ceux qui sont dans cet état en sont bien difficilement touchés), de façon à sa soumettre en silence au jugement que tout le monde porte de lui, il ne tarde point à devenir effronté et impudent, et à tomber par la rébellion, d'autant plus fâcheusement au dixième degré de l'orgueil, qu'il y tombe d'une manière tout à fait désespérée. Alors celui qui s'était contenté dans son arrogance de mépriser ses frères en secret, se mettant en révolte ouverte, méprise son supérieur même.

A convicção do pecado mostra-se então em todo o esplendor. O orgulhoso já não peca apenas, defende activamente a liberdade de pecar. Como dizem os Provérbios:

Quando o pecador caiu no fundo do abismo do pecado, ele despreza tudo”.

Perdeu as referências, o norte, a pedra. Antes, tinha na sua vida uma barra de ferro que o atravessava, que lhe dava consistência moral, que não o deixava afastar-se da visão divina. Pagava essa barra com as suas penitências, mas tinha uma direcção e uma paz. Os medos humanos dissipavam-se à volta da barra.

Agora, o mundo é feito de gelatina, um gigantesco bordel atrás do qual está uma dança macabra. Tudo agora se resume às pequenas trocas da vaidade, a exercícios de massagem do ego. O orgulhoso despreza agora o que o mantinha de pé. Conta a sua história a todos, e enaltece o valor da sua rebelião. Os demónios dão vozes a todos para lhe responderem que sim, que grande valor tem a rebelião do “curioso”. Ele sente-se bem à mesa da confusão das vozes, sem perceber em que coro já canta. Entrou no último grau do orgulho: o hábito de pecar.

Bernardo escreve o julgamento, próximo de fechar o seu tratado:

"Mais lorsque, par un terrible jugement de Dieu, les premiers crimes ont été suivis de i'impunité, on revient volontiers à ce qui a e procuré du plaisir et plus on y revient, plus on y trouve d'attrait. A mesure que la concupiscence se réveille, la raison s'endort et les chaînes de l'habitude se resserrent. Le malheureux est entraîné dans l'abîme du péché et livré à la tyrannie de ses vices; emporté par le torrent de ses désirs charnels, il oublie sa raison et la crainte de Dieu, et finit, l'insensé! par dire dans son coeur : « Il n'y a pas de Dieu (Psalm. XIII, 1)."

(Em seguida, quase a conclusão)
 

ORGULHO 11 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE

Bernardo chegou ao fim do seu tratado. Intitulou-o De Gradibus Superbiae et Humilitatis, e confessa que sabe falar melhor do orgulho do que da humildade:

Peut-être, frère Geoffroy, en voyant que j'ai décrit les degrés de l'orgueil, au lieu de ceux de l'humilité, direz-vous que j'ai fait autre chose que ce que vous attendiez de moi et que je vous avais promis. A cela je répondrai que je ne puis vous enseigner que ce que j'ai appris et qu'il ne me semblait pas qu'il m'appartînt de vous décrire les degrés ascendants, quand je sais beaucoup mieux descendre que monter.

Na sua cela, Bernardo está agitado. Chegou ao fim do seu texto, mas não sabe como acabá-lo. Deve orar ou pedir a Deus um milagre salvífico, ou descansar pelo dever cumprido de açoitar os pecadores? Como é que se confrontam os pecadores que têm a voz do pecado, que assumem a identidade do pecado, que têm uma forma tão própria de pecado que este se lhes entranha no corpo todo, aqueles para quem pecar é um “orgulho”?

Ele acredita pouco na sua redenção, embora saiba que o tempo os tornará amargos e desesperados. Todos os espelhos lhes mostrarão o tempo, todos os relógios tocarão cada vez mais alto. Todas as palavras soarão a falso se repetidas. O iníquo repetirá tudo, repetirá mil vezes tudo, num esforço intenso de esquecer o que disse a Deus, o que prometeu a Deus, mas a língua saberá cada vez mais a areia e ele sente as palavras a caírem de velhas. Uma maldição antiga o persegue: de cada vez que olha para uma árvore, uma folha cai para recusar o seu olhar.

Talvez o tempo os ensine, o passar dos dias, a diferença entre o convívio com as vozes “ligeiras” e a alegria pura dos Momentos. Mas Lúcifer distribuirá as águas do esquecimento com abundância e as distracções são muitas.

Bernardo escreve então dois capítulos totalmente confusos. Percebe-se que ele quer rigor e impiedade, mas que a sombra da Virgem lhe pede caridade. Pede orações e desaconselha orações, revela a surpresa de Deus, actuando ao acaso e onde menos era previsto, salvando uns e poupando outros. Colecciona citações da Bíblia sem grande nexo. A Virgem lembra-lhe que ele ainda tem um pequeno fio de ferro na mão. Bernardo acaba então o seu tratado, sem verdadeiro fim, mas com a convicção que não falará mais disso. Ponto.

En effet, si en allant à Rome vous rencontrez un homme qui en revient et que vous lui demandiez la route qui y mène, pourra-t-il vous en enseigner une meilleure que celle par laquelle il en vient? En vous disant par quels châteaux, quelles villas, quelles villes, quels fleuves et quelles montagnes il a passé, il vous indique en même temps le chemin qu'il a parcouru et celui que vous devez suivre à votre tour, en sorte que vous devrez, en allant à Rome, passer par les mêmes endroits qu'il a traversés pour en venir. Ainsi, peut-être, dans mes degrés descendants trouverez-vous les degrés ascendants que vous reconnaîtrez en les gravissant, beaucoup mieux dans votre coeur que dans mon écrit. “

Assim seja.
 

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© José Pacheco Pereira
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