SEMPER IDEM: 31 DE JANEIRO - 2 DE FEVEREIRO DE 2004
ORGULHO 6 / NOTAS SOBRE AS FORMAS DE SENSIBILIDADE ANTIGAS
Presunção. A presunção é o último grau do orgulho antes de entrarmos no
pecado, nos graus do pecado. Bernardo sabe que agora já não é apenas a
ilusão do “curioso”, a sua agitação, o seu progressivo autismo,
a perda de exigência, a facilidade cómoda, o conforto psicológico que
estão em causa. Agora trata-se de escolhas fora da graça divina, agora
trata-se de cair numa vertente inclinada sem retorno.
Bernardo pergunta-se: com que mão escrevo? A que pune ou a que
esquece? A do fogo ou a da água? Bernardo olha para a neve lá fora. Na
primeira frase está a palavra “culpado”, porque Bernardo preza a
severidade, uma alta exigência consigo próprio, detesta as flutuações
do humor. (Não é de sensibilidades antigas que falamos?) O “culpado” continua a justificar-se, agora no patamar de se perder :
Je n'ai point fait cela; ou bien il dit: Je l'ai fait il est
vrai, mais j'ai bien fait, ou si j'ai eu tort de le faire, la faute
n'est pas grande, d'autant plus que je ne l'ai pas fait avec mauvaise
intention.
Palavras, palavras servem para tudo – pensa o monge. Bernardo fora
poeta na sua juventude, agora já não é. Sabe bem como há palavras para
justificar tudo (como as minhas? Hesita). E continua:
Si, comme Adam et Ève, il est convaincu de l'avoir fait, il
s'efforce d'en rejeter la faute sur un autre qui l'a conseillé. Or,
comment celui qui entreprend avec cette audace de justifier les fautes
les plus manifestes, pourra-t-il jamais aller découvrir avec humilité, à
son abbé; les mauvaises pensées qui se glissent secrètement dans son
coeur?
ORGULHO 7 / NOTAS SOBRE AS FORMAS DE SENSIBILIDADE ANTIGAS
Bernardo está cansado, tem febre, tem frio. Mas, no grau do orgulho
sobre o qual está a escrever, estão as grandes verdades de Deus e da
experiência humana dos erros do “curioso”, do “culpado”.
Bernardo sabe que não está a escrever para ninguém. Passados meia dúzia
de séculos, tempo irrisório para a verdade, ninguém sequer o vai
entender. A sua pena paira no vazio, como a maldição que Jorge Luís
Borges encontrou para Melanchton em “Um teólogo na Morte”:
Os anjos me disseram que, quando Melanchton morreu, lhe foi
oferecida no outro mundo uma casa ilusoriamente igual àquela que
possuíra na Terra. (A quase todos os recém-chegados à eternidade
acontece o mesmo e por isso acreditam que não morreram). Os objetos
domésticos eram iguais: a mesa, a escrivaninha com suas gavetas, a
biblioteca. Quando Melanchton despertou nessa casa, reatou suas tarefas
literárias como se não fosse um morto e escreveu durante alguns dias
sobre a salvação pela fé. Como era seu hábito, não disse uma palavra
sobre a caridade. Os anjos notaram essa omissão e mandaram pessoas a
interrogá-lo. Melanchton lhes falou: "Demonstrei de maneira irrefutável
que a alma pode dispensar a caridade e que para entrar no céu basta a
fé". Dizia isso com soberba e não sabia que já estava morto e que seu
lugar não era o céu. Quando os anjos ouviram essa afirmativa o
abandonaram.
Em poucas semanas, os móveis começaram a se encantar até se
tornarem invisíveis, com exceção da poltrona, da mesa, das folhas de
papel e do tinteiro. Além disso, as paredes do aposento se mancharam de
cal e o assoalho de um verniz amarelo. Sua própria roupa já estava muito
mais ordinária. Continuava, entretanto, escrevendo, mas como persistia
na negação da caridade, foi transferido para uma sala subterrânea, onde
estavam outros teólogos como ele. Ali ficou preso alguns dias e começou a
duvidar de sua tese e lhe deram permissão de voltar. A roupa que vestia
era de couro cru, mas procurou imaginar que a que tivera antes fora uma
simples alucinação e continuou elevando a fé e denegrindo a caridade.
Uma tarde, sentiu frio. Então percorreu a casa e comprovou que as demais
peças já não correspondiam às de sua casa na Terra. Uma delas estava
cheia de instrumentos desconhecidos; outra estava tão reduzida que era
impossível entrar nela; outra não tinha sofrido modificação, mas suas
janelas e portas davam para grandes dunas. A do fundo estava cheia de
pessoas que o adoravam e lhe repetiam que nenhum teólogo era tão sábio
quanto ele. Essa adoração agradou-o, mas como uma das pessoas não tinha
rosto e outras pareciam mortas, acabou se aborrecendo e desconfiando
delas. Determinou-se então a escrever um elogio da caridade, mas as
páginas que escrevia hoje apareciam apagadas amanhã. Isso aconteceu
porque eram feitas sem convicção.
Recebia muitas visitas de gente morta recentemente, mas sentia
vergonha de mostrar-se num lugar tão sórdido. Para fazer-lhes crer que
estava no céu, entrou em acordo com um feiticeiro dos que estavam na
peça dos fundos, e este os enganava com simulacros de esplendor e
serenidade. Era só as visitas se retirarem, reapareciam a pobreza e a
cal; às vezes isso acontecia um pouco antes.
As últimas notícias de Melanchton dizem que o mágico e um dos
homens sem rosto o levaram até as dunas e que agora ele é como que um
criado dos demônios.
Mas Bernardo tem uma missão, como Melanchton. Agora defronta um dos mais intímos sinais do pecado do orgulho: as “desculpas”, a que o Profeta chamava as “palavras da malícia”.
ORGULHO 8 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE
Bernardo tem agora pressa de acabar. Já tudo voa baixo. O corvo pousou
no chão, não na árvore. Os presságios acumulam-se. Ontem, ao fim da
tarde, um grupo de pássaros começou de repente a cantar sem nexo,
quebrando o silêncio. Bernardo pensou que a sua voz era a das almas
perdidas no Inferno. Pensou na Virgem para afastar o mal. Pensou: para
que faço eu isto, se não vale a pena? O demónio terá sempre melhor
colheita, os tempos estão para a “ligeireza do espírito”. Olhou outra
vez para fora, para a neve, com o mesmo olhar com que, anos mais tarde,
escolheu o vale da amargura, o Vallée d'Absinthe, para construir, com os
seus onze companheiros, a sua abadia.
Recomeçou. Encheu-se da crueldade de Deus, para além do cansaço, da
febre e da doença, e continuou a falar do orgulho. Bernardo sabia que o
orgulho era , por assim dizer, “dialéctico”. Faz parte da sua infinita
plasticidade fazer de conta que sofria, que hesitava, quando já tinha em
si a direcção do pecado. Escreveu:
"Il y a des personnes qui, lorsqu'elles s’entendent reprocher
des choses par trop manifestes, comprennent que, si elles entreprennent
de se justifier, elles ne réussissent point à se faire croire, ont
recours à un moyen plus subtil de se tirer d'affaire, et répondent par
un aveu plein de fourberie de leur faute: « Il en est en effet, est-il
écrit, qui s'humilient malicieusement et dont le fond du coeur est plein
de tromperie (Eccli., XIX, 23). » Ils baissent les yeux, courbent la
tête et font briller, s'ils le peuvent, une ou deux larmes ; leur voix
est étouffée par les soupirs et leurs paroles sont entrecoupées par les
sanglots”
ORGULHO 9 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE
Na noite, Bernardo mostrou aos anjos o que já tinha escrito. Os anjos corrigiram uma frase:
“Faz parte da sua infinita plasticidade [do orgulho] fazer de
conta que sofria, que hesitava, quando já tinha em si a direcção do
pecado.”
Não é a “direcção do pecado”, é a convicção do pecado. O pecado convence. O “curioso”
já fala com outra voz, já não é dele o que diz. Dentro dele só há ecos,
vozes, sussurros, amabilidades, conveniências, usos, lixo da
superficialidade, etiquetas da "ligeireza de espírito". Já tudo voa baixo.
Os anjos à noite visitavam-no porque Bernardo era fiel. Então corrigiu a frase e deu mais um passo no conhecimento do “curioso” que revela agora a sua face. E continou a escrever:
"Quelle confusion pour l'orgueilleux, quand sa supercherie est
découverte, la paix de son âme et sa gloire amoindrie, sans que sa faute
soit effacée pour cela? Il finit par être reconnu de tous et jugé par
tous, et l’indignation est d'autant plus violente, alors qu'on découvre
en même temps la fausseté de tout ce qu'on avait pensé d'abord de lui. "
ORGULHO 10 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE
Bernardo continua. Descoberta a sua “falsidade”, que faz o “curioso”?
Revolta-se. O que é que ele pode fazer para se continuar a ver ao
espelho? Revoltar-se, essa última ilusão do espírito, tão ao gosto do
futuro, como Bernardo bem sabe:
“Si celui qui en est arrivé là n'est pas touché de la grâce de
Dieu (or ceux qui sont dans cet état en sont bien difficilement
touchés), de façon à sa soumettre en silence au jugement que tout le
monde porte de lui, il ne tarde point à devenir effronté et impudent, et
à tomber par la rébellion, d'autant plus fâcheusement au dixième degré
de l'orgueil, qu'il y tombe d'une manière tout à fait désespérée. Alors
celui qui s'était contenté dans son arrogance de mépriser ses frères en
secret, se mettant en révolte ouverte, méprise son supérieur même.”
A convicção do pecado mostra-se então em todo o esplendor. O
orgulhoso já não peca apenas, defende activamente a liberdade de pecar.
Como dizem os Provérbios:
“Quando o pecador caiu no fundo do abismo do pecado, ele despreza tudo”.
Perdeu as referências, o norte, a pedra. Antes, tinha na sua vida
uma barra de ferro que o atravessava, que lhe dava consistência moral,
que não o deixava afastar-se da visão divina. Pagava essa barra com as
suas penitências, mas tinha uma direcção e uma paz. Os medos humanos
dissipavam-se à volta da barra.
Agora, o mundo é feito de gelatina, um gigantesco bordel atrás do
qual está uma dança macabra. Tudo agora se resume às pequenas trocas da
vaidade, a exercícios de massagem do ego. O orgulhoso despreza agora o
que o mantinha de pé. Conta a sua história a todos, e enaltece o valor
da sua rebelião. Os demónios dão vozes a todos para lhe responderem que
sim, que grande valor tem a rebelião do “curioso”. Ele sente-se
bem à mesa da confusão das vozes, sem perceber em que coro já canta.
Entrou no último grau do orgulho: o hábito de pecar.
Bernardo escreve o julgamento, próximo de fechar o seu tratado:
"Mais lorsque, par un terrible jugement de Dieu, les premiers
crimes ont été suivis de i'impunité, on revient volontiers à ce qui a e
procuré du plaisir et plus on y revient, plus on y trouve d'attrait. A
mesure que la concupiscence se réveille, la raison s'endort et les
chaînes de l'habitude se resserrent. Le malheureux est entraîné dans
l'abîme du péché et livré à la tyrannie de ses vices; emporté par le
torrent de ses désirs charnels, il oublie sa raison et la crainte de
Dieu, et finit, l'insensé! par dire dans son coeur : « Il n'y a pas de
Dieu (Psalm. XIII, 1)."
(Em seguida, quase a conclusão)
ORGULHO 11 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE
Bernardo chegou ao fim do seu tratado. Intitulou-o De Gradibus Superbiae et Humilitatis, e confessa que sabe falar melhor do orgulho do que da humildade:
“Peut-être, frère Geoffroy, en voyant que j'ai décrit les degrés
de l'orgueil, au lieu de ceux de l'humilité, direz-vous que j'ai fait
autre chose que ce que vous attendiez de moi et que je vous avais
promis. A cela je répondrai que je ne puis vous enseigner que ce que
j'ai appris et qu'il ne me semblait pas qu'il m'appartînt de vous
décrire les degrés ascendants, quand je sais beaucoup mieux descendre
que monter. “
Na sua cela, Bernardo está agitado. Chegou ao fim do seu texto, mas
não sabe como acabá-lo. Deve orar ou pedir a Deus um milagre salvífico,
ou descansar pelo dever cumprido de açoitar os pecadores? Como é que se
confrontam os pecadores que têm a voz do pecado, que assumem a
identidade do pecado, que têm uma forma tão própria de pecado que este
se lhes entranha no corpo todo, aqueles para quem pecar é um “orgulho”?
Ele acredita pouco na sua redenção, embora saiba que o tempo os
tornará amargos e desesperados. Todos os espelhos lhes mostrarão o
tempo, todos os relógios tocarão cada vez mais alto. Todas as palavras
soarão a falso se repetidas. O iníquo repetirá tudo, repetirá mil vezes
tudo, num esforço intenso de esquecer o que disse a Deus, o que prometeu
a Deus, mas a língua saberá cada vez mais a areia e ele sente as
palavras a caírem de velhas. Uma maldição antiga o persegue: de cada vez
que olha para uma árvore, uma folha cai para recusar o seu olhar.
Talvez o tempo os ensine, o passar dos dias, a diferença entre o
convívio com as vozes “ligeiras” e a alegria pura dos Momentos. Mas
Lúcifer distribuirá as águas do esquecimento com abundância e as
distracções são muitas.
Bernardo escreve então dois capítulos totalmente confusos.
Percebe-se que ele quer rigor e impiedade, mas que a sombra da Virgem
lhe pede caridade. Pede orações e desaconselha orações, revela a
surpresa de Deus, actuando ao acaso e onde menos era previsto, salvando
uns e poupando outros. Colecciona citações da Bíblia sem grande nexo. A
Virgem lembra-lhe que ele ainda tem um pequeno fio de ferro na mão.
Bernardo acaba então o seu tratado, sem verdadeiro fim, mas com a
convicção que não falará mais disso. Ponto.
“En effet, si en allant à Rome vous rencontrez un homme qui en
revient et que vous lui demandiez la route qui y mène, pourra-t-il vous
en enseigner une meilleure que celle par laquelle il en vient? En vous
disant par quels châteaux, quelles villas, quelles villes, quels fleuves
et quelles montagnes il a passé, il vous indique en même temps le
chemin qu'il a parcouru et celui que vous devez suivre à votre tour, en
sorte que vous devrez, en allant à Rome, passer par les mêmes endroits
qu'il a traversés pour en venir. Ainsi, peut-être, dans mes degrés
descendants trouverez-vous les degrés ascendants que vous reconnaîtrez
en les gravissant, beaucoup mieux dans votre coeur que dans mon écrit. “