ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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10.5.13
PIOR QUE HÁ DOIS ANOS
Estamos hoje pior do que há
dois anos quando se pediu o resgate internacional: Portugal, a
democracia, a economia, as finanças, a sociedade. Claro que tudo isto é
muito relativo, visto que se trata apenas de graus de mal - estávamos
muito mal há dois anos, estamos pior agora. A última coisa que isto deve
consolar ou isentar é os autores do mal de há dois anos, mas também, em
nome desse mal, não se deve esconder o que piorou. O que piorou é que
um elemento essencial em democracia, a existência de margem de manobra,
ou seja, de escolhas, diminuiu exponencialmente nestes dois anos, sem
que nenhum problema de fundo tenha sido resolvido e sem que haja
qualquer melhoria que não seja tão frágil como o fino gelo em que
andamos.
Pior, nenhuma melhoria adquirida, mesmo que se aceitem
as melhorias enunciadas no discurso governamental (défice estrutural,
balança comercial, regresso tímido e apoiado ao mercado), é sustentável,
nem por persuasão democrática (o que me interessa) nem à força (o que
passa pela cabeça dos que defendem a ilegalidade em nome da "economia",
seja no abandono do primado da lei e do direito em nome do "programa"
seja na ultrapassagem da Constituição). É por isso que se está pior.
Explico-me.
Há dois anos, o ministro das Finanças de Sócrates, para impor o resgate
externo, mandou o recado para os jornais de que não havia dinheiro para
salários e pensões. Esta semana, o primeiro-ministro, Passos Coelho,
veio dizer o mesmo: ou prosseguimos as políticas que ele propõe, ou não
há dinheiro para salários e pensões. Descontando o elemento chantagista
do argumento, que é igual há dois anos e hoje, o que podemos concluir é
que nada foi adquirido e que estamos na mesma, vivemos a um mês de não
ter dinheiro para salários e pensões.
Se se aceita a veracidade
do argumento, a pergunta a fazer é que significado teve o sacrifício dos
portugueses nestes dois anos, em que cada pacote de austeridade foi
sempre apresentado como último, para ser logo a seguir anunciado um
novo, quando o Governo não conseguia os resultados que pretendia com o
anterior. Em finais de 2011, Passos Coelho, quando questionado sobre se
bastava o corte de meio subsídio de Natal, respondeu que sim. Logo a
seguir, quando do anúncio do fim dos subsídios de Natal e de férias,
quando questionado sobre se era suficiente, respondeu que sim. Em 2012,
quando subiram os impostos, questionado sobre se chegava, Passos Coelho
respondeu que sim. Em 2012, quando anunciada a subida da TSU,
questionado sobre se essa medida seria eficaz, Passos Coelho respondeu
que sim. Em 2012, quando se anunciou o "enorme aumento de impostos", que
seria apenas para 2013, Passos Coelho garantiu que sim. Em 2012 e 2013,
quando começou a falar da "refundação do Estado" e dos quatro mil
milhões, questionado sobre se isso resolvia o problema de adequar o
financiamento do Estado aos recursos que os "portugueses estariam
dispostos a pagar", Passos Coelho respondeu que sim, esta reforma era
"estrutural" e por isso fechava o "problema".
A cada pacote de
austeridade foi sempre pedido mais do que no pacote anterior e todas as
medidas estão a ser cumulativas, e as que eram provisórias para 2011,
2012, ou 2013 continuam em aplicação para 2014, 2015, 2016, 2017, e
algumas o ministro das Finanças aponta para 2020-2030. De medidas
destinadas a resolver a situação de emergência de 2011-4, passaram a
medidas para uma geração ou duas. Qualquer pessoa que tenha uma mínima
ideia do que é uma democracia percebe que isto é errado, ilusório,
mágico, milagroso, ou melhor ainda, um completo disparate.
Há
dois anos, o país tinha sido posto na bancarrota pelos delírios de José
Sócrates e pelo esbanjamento escandaloso dos seus "programas de
bandeira" e tivera de, in extremis, pedir ajuda internacional e
negociar o memorando. Não me interessam os pormenores da "narrativa"
socrática, porque com mais ou menos culpa da situação internacional e do
PSD, no essencial foi dele a responsabilidade. Porém, nessa situação de
"emergência", havia em democracia uma margem considerável de manobra e
os mecanismos democráticos podiam funcionar acrescentando factores
positivos à crise que se vivia, ou seja, "saídas".
Um desses
mecanismos foi as eleições, permitindo que o sentimento da primeira
grande manifestação "indignada", contra Sócrates, pudesse ter expressão
nas urnas. O eleitorado varreu Sócrates e o PS do poder com o mesmo
mecanismo de rejeição com que ele tinha varrido Santana Lopes, ambos em
resultado da interrupção de governos em funções. Acresce que dessas
eleições resultou uma maioria parlamentar do PSD-CDS, que, em abstracto,
era uma solução muito melhor do que a minoria do PS para gerir um
período de crise e dificuldades. O aspecto negativo foi uma campanha
eleitoral baseada no logro, embora o conhecimento público do memorando
da troika trouxesse aos eleitores algum sentimento de realismo sobre os tempos que aí vinham.
A
todos estes resultados - "actualização" excepcional dos sentimentos
populares pelas eleições, maioria parlamentar, mudança de pessoal
político - podia acrescentar-se por parte da maioria dos portugueses um
sentimento muito raro em democracia: de que seria legítimo pedir
sacrifícios, que estavam dispostos a fazer, desde que moderados, a prazo
e, acima de tudo, feitos com justiça e equidade. Por seu lado, no
sistema político, o PS fragilizado e recém-signatário do memorando,
estava comprometido com a governação, e as centrais sindicais abertas a
negociações, mesmo que, como a CGTP, não o dissessem. Havia por isso,
uma margem considerável de manobra política e social, em democracia. Ela
iria inevitavelmente conhecer alguma erosão com a austeridade, mas
existia em 2011 a seguir às eleições.
É à luz destes factos que o
Governo de Passos Coelho cometeu todos os pecados capitais que hoje paga
em termos de impasses e bloqueios políticos, com um isolamento parecido
com o de Sócrates terminal, e com uma perda de legitimidade e
credibilidade. Esses erros começaram na desvalorização da gravidade da
crise recebida, e na hipervalorização do memorando como instrumento de
engenharia social, económica e política. O Governo menorizava a
amplitude da crise, porque a considerava catártica e uma "oportunidade",
e estava felicíssimo com o pretexto que o memorando lhe dava para
"revolucionar Portugal".
O "memorando era o programa do PSD",
como disse Passos Coelho, impante da sua importância e papel como sendo
aquele que iria mudar a face do país, da economia, o grande
modernizador, que iria combater os "vícios do passado" e os maus hábitos
dos portugueses, cheios de direitos e "pieguice". O conteúdo das suas
declarações iniciais, utópicas e proféticas, encontrou em Gaspar o
típico executor burocrático que era suposto trazer a eficácia da
tecnocracia para a prossecução da "revolução". Gaspar acabou por ser o
Mestre e não o Executor, mas isso também era previsível.
As
opções radicais, milenares e proféticas, implicaram um excesso de zelo e
uma pressa de rolo compressor, tentando esmagar a "velha" economia e os
"velhos" hábitos o mais rápido e violentamente possível, para depois,
sobre as ruínas, se erguer o Portugal disciplinado, competitivo e
alemão. Por isso, nenhum acordo com o PS, nenhum sério envolvimento dos
parceiros sociais, nenhum esforço de "consenso" tinham sentido. Era um
programa para os fiéis sem dúvidas, obstinados e cegos a tudo o que não
fosse o "ir para além da troika", "custe o que custar". E os
fracos como o PS, os sindicatos e mesmo as confederações patronais,
tinham de ser postos à margem porque não eram confiáveis. Ficavam
apenas, dentro do círculo do poder, o sector financeiro, e a elite dos
"sempre os mesmos", que circulavam de governo para governo, da banca,
das consultoras financeiras e dos grandes escritórios de advogados. Mas
isso era natural, porque o "programa" da troika e de Passos Coelho era o deles.
A
recusa do "consenso" não foi o resultado de o Governo ser desajeitado,
ou demasiado convencido, ou um "erro de comunicação". Foi uma opção de
fundo inteiramente consistente com um radicalismo que exigia fidelidade e
zelo dos fiéis e dos convertidos, mas não tinha lugar para mais
ninguém. E assim se começou a destruir o espaço de manobra que existia
em 2011.
E esse é o segundo acto desta história. Fica para depois.
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© José Pacheco Pereira
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