Dante
tinha as sua razões em colocar o Inferno em baixo, o Paraíso em cima, e
o Purgatório no meio. A geografia do mundo acabava assim por ser uma
escala moral, entre a perdição e a salvação. E nós no meio. Bem no meio,
a sermos testados pelo último teste, ou se cai, ou se sobe. Aqui, em
Constância, no Centro de Ciência Viva, no Ano da Astronomia, sempre se
pode subir, sempre podemos, de vez em quando, dar-nos ao luxo de
escapar.
É escapismo, mas é escapismo bom. Olha-se para as
estrelas, de onde vêm sempre as mesmas mensagens: isto é demasiado
grande para a tua cabeça, isto tem demasiado tempo para o teu corpo,
isto é demasiado longe para teres esperança de cá chegar: Isto, no pleno
e absoluto sentido do termo, escapa-te e porque te escapa podes também
escapar-te para estas andanças, que nunca te perdes. Contempla, que já
não é mau. Há cem poemas bons sobre isto e umas centenas de milhares
péssimos, mas olhar para cima ainda vale a pena. Lá por baixo no
Inferno, as fábricas despedem, a gente empobrece, a verdade é espécie
rara, a mentira é oficial e oficiosa, a liberdade é escassa, anda tudo
ao seu e nós ao nosso, mas aqui reina uma verdade muito especial. Há
aqui algo que nos foge de uma forma muito radical, mas sem o qual não
somos o que somos. Eu sou muito pouco prometeico, mas se há fogo divino,
está nas estrelas, e se há pavor, está no espaço negro entre elas.
As
cúpulas dos telescópios voltam-se para o lado mais escuro, para a
encosta mais ventosa, para o friso negro das copas das árvores. Do outro
lado há mais luz, lembrando-nos que já quase não há lugar sobre a Terra
que seja escuro, onde os homens não poluam luminosamente o espaço. Não
está uma noite muito boa para observações astronómicas. A Lua já tem o
lado mentiroso bem saliente e diz que vai diminuir enquanto cresce. A
luz fria e metálica enche o céu, e só para longe dela se vêem estrelas.
Há névoa. Não se percebe sequer a Via Láctea, e muitas da melhores
constelações estão ou demasiado baixo já no ocaso ou no nascimento.
Oríon está já escondida, a Cassiopeia por nascer. As Ursas estão lá
sempre, mas é essa a sua condição.
O
nosso astrónomo residente, Máximo Ferreira, dedica-se ao seu ofício.
Abre as cúpulas para que se estabilize a temperatura dos telescópios e
os espelhos se habituem ao frio cortante. O vento rouba qualquer calor
residual nas faces e nas mãos. Isto da astronomia tem ofício, antes de
ter saber. Os aparelhos são especialmente delicados, têm que ser
ajustados, calibrados, os seus movimentos acompanhados pela ranhura da
cúpula. Um feixe de laser que parece ir directo da Terra a Saturno
aponta o alvo. Lembrei-me do Ícone da Escada Celestial de São João
Klimakos.
Saturno lá está com os anéis vistos de lado, como se
fossem uma linha que atravessa o planeta, na constelação de Leão. Alguns
satélites são visíveis no mesmo plano dos anéis. E por lá anda a sonda
Cassini, que nos últimos dias fotografou Dione e mapeou ainda com mais
detalhe Titã, com os seus lagos e rios (?) de metano. Chove metano em
Hotei Arcus em Titã, e isto é não-ficção científica. Em Encélado, a sua
jovem superfície brilha e nas cinquenta e duas luas que dançam à volta
de Saturno, há mil e uma coisas diferentes para estudar, compreender ou
desaprender. É como nos livros, nunca é maçador.
Depois
vê-se o M13, o objecto catalogado por Messier com o número 13, um
enxame de estrelas na constelação de Hércules. Já estamos no limite do
que se pode ver com o olho humano. Foi para este grupo de centenas de
milhares de estrelas, envelhecidas, com muita história para contar, que
nós tentamos falar em 1974 a partir do radiotelescópio de Arecibo,
dizendo coisas simples e complicadas ao mesmo tempo: que contamos de 1 a
10, que somos feitos a partir de um código inscrito no ADN, que somos
como somos, dois braços, pernas, cabeça, que vivemos num sistema à volta
do Sol e que falamos a partir de um enorme prato entre montanhas. Daqui
a 50.000 anos saberemos se há resposta. Podia ser pior, podia ser mais
longe.
Quando,
(...) escreveu que enviámos a informação de que «contamos de 1 a 10»,
bom... uma civilização capaz de enviar uma mensagem a outra civilização a
dezenas de milhar de anos-luz de distância é capaz certamente de fazer bastante mais do que contar de 1 a 10. O que lhes dissemos que trabalhamos em base 10.
(José Carlos Santos)
E,
por fim, a Lua, que não deixava os seus méritos por telescópios
alheios, enchia a ocular com cerca de 60 por cento da sua superfície
visível, mostrando o que 51 centímetros de abertura podem fazer. Os
mares e as crateras sobrepostas com uma perfeição geométrica, os tons de
cinzento e negro, parecem familiares vistos de longe. De perto, a gente
percebe que aquilo está bastante morto, já para não dizer que está
totalmente morto, que é uma coisa que não há na natureza. Mas bastante
morto, há.
Lá
em cima, no Alto de Santa Bárbara, a santa protectora contra as
tempestades, a senhora dos trovões, a Terra parece demasiado irreal. Ao
fim de ver a Lua em grande, a M13 e o seu enxame de estrelas, e o
glorioso Saturno, a noite parece outra coisa. Mas, como se sabe, tudo o
que sobe tem que descer. E cá em baixo não está Constância, nem o Tejo,
nem os pára-quedistas de Tancos, nem os tanques da Brigada Mista, nem os
agricultores das terras ribeirinhas, nem as recordações árabes do
Castelo de Almourol. Está o nosso primeiro-ministro mais o seu Freeport,
a guerra entre procuradores, a agitação em que andamos todos, o som e a
fúria que cresce dos subterrâneos do desemprego, os bancos vilões e os
banqueiros moralmente débeis, os demagogos do Bloco, a multidão de
economistas a explicar a "crise", as trivialidades da vida de todos os
dias, os acidentes na Segunda Circular, os engarrafamentos da Ponte, a
histeria das "causas fracturantes", o barulho dos blogues, o silêncio
dos que sabem de mais, a logomaquia dos que sabem de menos. Mas é assim,
somos o que somos. Descemos sempre mais do que subimos. Mesmo que, no
Ano Internacional da Astronomia, escapemos um pouco para longe. Faz bem.