ABRUPTO

7.10.04


AR PURO



Não é um quadro. É a Astronomy Picture of the Day e mostra a beleza do mundo.

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A LER

A nota de CAA AGORA A SÉRIO no Blasfémias.

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PASMO, TRISTEZA E REVOLTA

Cada vez se percebe mais que o “PPD-PSD” não é o PSD, mas um pequeno grupo que se comporta como tal. Basta ver como as escolhas cruciais (no aparelho da comunicação dominado pelo estado, no controlo dos serviços de informações, nas autarquias, etc.) estão a ser feitas apenas pela fidelidade individual ao Primeiro-ministro.

Agora tudo vai depender de se saber até que ponto há forças endógenas no PSD, para manter o carácter reformista e moderado do partido, hipotecado a uma viragem à direita que o descaracteriza e o afasta do legado político de Sá Carneiro, hipotecado a uma perda de vontade política de governar para reformas, deixando ao PS a ambição de pedir uma maioria absoluta, de que desistimos há muito. Para isso vai ser crucial saber se o próximo Congresso se realizará em condições de liberdade efectiva e não como um plebiscito ao Primeiro-ministro e sob a chantagem emocional de manter ou não o partido no governo. Duvido, pelo caminho que as coisas levam, mas já duvidei mais. (E ainda duvidaria menos se se criasse uma nova incompatibilidade impedindo de serem delegados ao Congresso todos os militantes que foram nomeados pelo governo para os muitos cargos recentemente distribuídos…).

O pior que poderia acontecer ao PSD seria a repetição do unanimismo apressado que se verificou, cilindrando tudo e todos, no afã de manter o poder, mesmo que a solução encontrada não tivesse preparação nem competência, como aliás todos os sinais já apontavam. Prestamos um mau serviço a Portugal, esquecendo que antes do partido está o país. Esta é uma frase que gostamos muito de repetir, mas que muito se esqueceu nos idos de Junho. O resultado é uma experiência governativa desastrosa que vai penalizar o partido duramente, descredibilizando-o, e ameaça entregar o poder ao PS durante muito tempo. Vai demorar tempo até que o PSD deixe de ser parte do problema e volte a ser a solução para uma governação credível, reformista, honesta, sólida, de gente competente e dedicada, com vontade de servir o bem público, e que, segura do que faz, não tem medo dos comentadores. Eu sei que este é o desejo profundo de muitos e muitos militantes e eleitores do PSD, que assistem com pasmo, tristeza e revolta aos dias de hoje.

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RIGOROSOS E ESPECIOSOS

Os blogues são um campo de observação muito interessante da capacidade humana de arranjar pretextos para as mais absurdas das posições. Não digo que seja apenas um mal dos outros, é certamente também meu.

Uma das absurdidades que aqui se manifestam é a substituição do rigor, pela especiosidade, pela mania que nada se pode dizer, ou fazer antes de tudo se saber e, mesmo assim, se o que se sabe não serve, antes de se saber mais ainda. Esta espiral de precauções tem como único objectivo, não aceitar ou não querer tirar conclusões do que toda a gente afinal já sabe.

Vem isto a propósito da história das “pressões”. Querem-nos convencer que não se pode falar de pressões do governo sobre a TVI , sem a implausível comprovação pela TVI ou pelo governo. Bem podem esperar sentados. Nós, os comuns mortais, não precisamos de mais nada: “precipitamo-nos a tirar conclusões”, “com má fé”, porque quando um Ministro, próximo do Primeiro-ministro, um Ministro insisto, (ou isso não significa nada neste governo?), diz o que disse, não é preciso mais nada.

Em qualquer democracia o que ele fez são pressões. São pressões para Marcelo, são pressões para a Media Capital, são pressões para a AACS, são pressões para toda a gente, menos para os especiosos. Ele não é um comentador, ele é o membro de um executivo. Executivo, reparem bem. Faz parte dos que mandam. Reparem bem. Não são só palavras, têm por trás a possibilidade de dar e de negar, de aprovar ou recusar, de fazer ou de desfazer, de empregar ou desempregar. É por isso que são pressões e não são inócuas.

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AR PURO E ESCURO


J. C. Dahl

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EARLY MORNING BLOGS 327

La Montagne qui accouche

Une Montagne en mal d'enfant
Jetait une clameur si haute,
Que chacun au bruit accourant
Crut qu'elle accoucherait, sans faute,
D'une Cité plus grosse que Paris :
Elle accoucha d'une Souris.

Quand je songe à cette Fable
Dont le récit est menteur
Et le sens est véritable,
Je me figure un Auteur
Qui dit : Je chanterai la guerre
Que firent les Titans au Maître du tonnerre.
C'est promettre beaucoup : mais qu'en sort-il souvent ?
Du vent.

(La Fontaine)

*

Bom dia!

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6.10.04


POBRE PAÍS

o nosso. Isto está pior do que se imaginava, e eu sempre o imaginei muito mal. Ouvi, com alguma impaciência confesso, os apelos a um "talvez não venha a ser tão mau como se prevê", que me pareciam da ordem da extrema bondade e de uma fé absoluta. Mas por que razão tinha que acreditar em milagres em política, quando não acredito neles no dia a dia?

Depois, a confirmação vinha em excesso, era tudo tão mau, tão mau que ultrapassava as piores expectativas. Eu sei e eles sabem. Esta é que é a questão: eles sabem que tem sido péssimo, asneiras sobre asneiras, como se a realidade viesse a correr a galope mostrar que milagres, se os há, é noutra esfera. Não. Aqui as coisas são o que são. Se são más, continuam más. O pior é que eles sabem que já perderam muito, e o desnorte e o desespero instalam-se. E com o desnorte vem ao de cima a tentativa de controlo, usando todos os meios do estado. Fraquezas, fragilidades perigosas, porque quanto mais fracos mais perigosos.


PS: sobre o que aconteceu hoje com a saída de Marcelo Rebelo de Sousa da TVI, não vale a pena adiantar muito mais do que já disse no Abrupto. Na Quadratura do Círculo discutimos o assunto, antes de ser conhecida a saída, e não é preciso mudar nada. Também não houve contraditório na Quadratura do Círculo: todos , eu, o António Lobo Xavier e o José Magalhães estamos de acordo em criticar o grosseiro ataque à liberdade de expressão, só não sabíamos que ia ter sucesso. Amanhã no Público sai um artigo, que também já tinha escrito antes, e a que não tenho que mudar uma vírgula.

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EARLY MORNING BLOGS 326

On the Extinction of the Venetian Republic


Once did She hold the gorgeous east in fee;
And was the safeguard of the west: the worth
Of Venice did not fall below her birth,
Venice, the eldest Child of Liberty.
She was a maiden City, bright and free;
No guile seduced, no force could violate;
And, when she took unto herself a Mate,
She must espouse the everlasting Sea.
And what if she had seen those glories fade,
Those titles vanish, and that strength decay;
Yet shall some tribute of regret be paid
When her long life hath reached its final day:
Men are we, and must grieve when even the Shade
Of that which once was great is passed away.


(William Wordsworth)

*

Bom dia!


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KENNEDY E A "ESQUERDA"

Seria bom lembrar ao secretário-geral do PS que não é muito prudente aplicar a dicotomia europeia esquerda/direita à política americana sem dar asneira. Dizer que Kennedy é da "esquerda americana" é no mínimo bizarro. Kennedy, o amigo da Mafia, o invasor da Baía dos Porcos, o "eu sou berlinense", encaixa mal na classificação, se a levarmos a sério. Já Lyndon Johnson, por estranho que pareça, encaixa melhor.

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5.10.04


DESAFIO

Por que razão o Ministro dos Assuntos Parlamentares não desafia Marcelo Rebelo de Sousa para um debate sobre a governação, em que assegurará ele mesmo o contraditório face ao "ódio", às "mentiras e falsidades" proferidas todos os domingos "por um comentador que tem um problema com o primeiro-ministro" Pedro Santana Lopes. Tenho a certeza que Marcelo aceitaria e que as televisões competiriam entre si pelo debate. É certamente mais sensato e corajoso do que propor a censura dos comentários de Marcelo.


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SCRITTI VENETI 15



Em S. Michele in Isola, a ilha dos mortos, procurei Ezra Pound, que sabia lá estar. Campa a campa, não aparecia. Havia uma névoa matinal e as grandes arvores, ciprestes dos cemitérios, escondiam a luz. O verde abundante era carregado. Naquela parte da ilha não estava ninguém excepto um casal de dois homens, americanos, que também procurava Pound. Perguntaram-me se eu sabia. Não sabia. Procuramos juntos, eu fui para outra ala, onde havia marinheiros ingleses, na sua maior parte mortos no final do século XIX, as campas partidas e abandonadas. Morreram longe. Febres, naufrágios. De repente encontraram-no, pouco mais do que uma placa de pedra à face do solo, coberta de heras e folhas caídas. Fui ter com eles e um debruçou-se e, com enorme gentileza, sacudiu com a mão as folhas que tinham caído em cima do EZRA POVND. Nestes gestos simples agradece-se muita coisa, fez-se silêncio. Algum incómodo. Onde estiver, o velho poeta fascista deve ter dado pela carícia.

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SCRITTI VENETI

Em breve, mais do mesmo.

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OUTRO VULCÃO QUE SE TOMA A SÉRIO


Monte S. Helena

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A LER

No Bloguitica a série "SANTANA LOPES E GOMES DA SILVA", "GOMES DA SILVA NA BLOGOSFERA", "O VENTRÍLOCO E A MARIONETE".

Trata-se nem mais nem menos do que denunciar algo que numa democracia sempre seria tido como muito grave: um apelo de responsabilidade do Primeiro-ministro, via Ministro dos Assuntos Parlamentares, à utilização do aparelho de Estado para punir um delito de opinião de um comentador político, que fala numa televisão privada, em moldes que só a ambos dizem respeito, à TVI e a Marcelo Rebelo de Sousa. É de liberdade de expressão que se trata, e isso por si só justificaria a demissão do ministro.

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4.10.04


INTENDÊNCIA

Colocados no VERITAS FILIA TEMPORIS os textos da Lagartixa e o Jacaré de duas semanas de Setembro de 2004.

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O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: POESIA BRITÂNICA CONTEMPORÃNEA

"Não resisto a enviar-lhe mais um poema que ajuda um pouco a compreender a marginalização de figuras como Bunting pelo establishment literário britânico. É, de facto, curioso verificar como a poesia britânica contemporânea mais genial e inovadora circula, ainda hoje, de forma quase clandestina em pequenas revistas e edições marginais (muitas vezes a cargo dos próprios poetas), e é ignorada quer pelo meio académico, quer pelas principais revistas e jornais literários. Como escreve o poeta e crítico inglês "dissidente" Clive Bush, no seu livro sugestivamente intitulado Out of Dissent, "the truly innovative are marginalised beyond the borders of silent itself." Talvez daqui a um século se ouça falar mais deles!
Aqui vai o poema:


Deconstruction Co.

Dear Sir, they write, we want clean literature,
nothing controversial or near the truth,
nothing committed, what we recommend
is writers' work for the establishment,
it's the best way to get reviewed, we hope
you'll consider the TLS,
and give up wearing mascara, lipstick,
it's bad for the image. You know, men just don't,
the Brit author is macho, conformist,
and wouldn't think like you to make a life
of poetry, who ever would?
And our advice is not to keep apart
surrounded by a small adoring cult
who look and act like you, but to participate

in parties, literary functions,
things that get you on. You seem to have no friends
in publishing, and not to be a parasite,
and this will never do. You're exclusive
and have too much mystique, what do you do
to write such censored off-beat books
that have reviewers chop your hands and feet,
and yes, we're told you wear leopardskin boots
and that's outrageous. Please, be sensible,
adopt the Andrew Motion style of dress,
blended conventionality. We hear
you have too many women friends,
all of them beautiful, and that's not done,
in terms of advancement, men stick with men.
We feel you need another reprimand
for all those seething derisive reviews
have failed to stop you writing. 30 books?
We'd burn the lot. And please pay for the stamp.

(Jeremy Reed)

PS. Curiosamente, aquele poema de Bunting que colocou no Abrupo há uns dias atrás, "What the Chairman Told Tom", refere a situação de um poeta brilhante do norte de Inglaterra, Tom Pickard, a quem foi recusado qualquer apoio que lhe permitisse dedicar-se à poesia.

(Daniela Kato)

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O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES

"Pela primeira vez desde o primeiro ano de trabalho, cerca de 24 anos volvidos, não fui colocado no quadro da zona pedagógica de Bragança. Do número 89 da lista graduada no ano lectivo anterior passei neste para mais de 500. Razão: opus-me a usar métodos incorrectos, isto é, apresentar um atestado médico de uma doença incapacitante ou de ascendente ou descendente directo como o apontam ter feito mais de 60% dos meus colegas de 1.º Ciclo no distrito. Fui aconselhado por alguns, a grande maioria estava a fazê-lo, porém sempre acreditei na transparência e lisura de processos, fundamentalmente porque sou educador e estes são valores subjacentes ao acto educativo! Estava redondamente enganado, colegas tão ou mais saudáveis, com muito menos anos de serviço e graduação académica ultrapassaram-me. Um qualquer médico menos "atento" ou sem “escrúpulos” possibilitou-lhes este expediente manhoso que foi simples artifício para obter boa colocação para prejuízo de milhares de professores e de muitos outros que necessitariam, por razões de saúde, desta especificidade. Imperdoável! Da entidade patronal, o Ministério da Educação, a garantia de fiscalização redundou em nada, pois os destacamentos prosseguiram normalmente. O que interessava era começar o ano lectivo, quando o mais lógico e justo seria suspender o destacamento por condições específicas nos distritos em que claramente os números indiciavam ilegalidades e situações menos claras. Dos sindicatos nem uma palavra para esta abominável situação, numa atitude corporativista e intolerável. Da ordem dos médicos nem o mais pequeno passo para uma investigação, quando os indícios são mais que óbvios. "

(José Alegre Mesquita)

*

"Colocações de Professores: tudo está mal quando acaba bem

Depois da publicação da lista de colocações em 28 de Setembro de 2004, há definitivamente algo que não bate certo.
Numa mensagem anterior, levantámos a hipótese da natureza matemática do problema impedir a resolução do mesmo. Na mesma mensagem, foi feita a sugestão de divulgar os dados do problema de forma a aproveitar o conhecimento existente sobre esse tipo de problemas por qualquer pessoa que por eles se interesse. Julgamos que ainda se vai a tempo de aproveitar esta oportunidade de Divulgação Científica.
Este assunto ir rapidamente desaparecer dos noticiários, não quer dizer que tenha sido resolvido. Das duas uma: ou o algoritmo é correcto e dá uma lista sem erros, ou não é correcto e desrespeita as regras do concurso (excluindo a arrepiante hipótese de os profissionais encarregues do sistema informático não serem capazes de lidar com uma base de dados, implementar um algoritmo ou ordenar uma lista, e excluindo outras hipóteses igualmente assustadoras).
Sugere-se que o algoritmo utilizado seja divulgado - só assim se poderá saber se as regras do concurso foram desrespeitadas ou não.
Sendo esta sugestão, porventura, demasiado ambiciosa, ficamos à espera do que a Comissão de Inquérito terá a dizer sobre problemas NP...
Bom ano lectivo!"


(Filipe Pereira e Alvelos / Acácio Costa)

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SCRITTI VENETI 14

Na loja Internet, de onde de vez em quando escrevo, chegado aqui no labirinto das ruas por um simples @ colado nas paredes com uma seta, parece que está sempre a chover. De noite, a sensação era mais forte. Parava de escrever, e olhava para a vitrina a ver se estava a chover. Nada. Era o canal atrás cujo ruído das águas chega como se fosse chuva. Ali chove sempre, não se pode fugir.

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SCRITTI VENETI 13



O que é a cultura? Eu respondo olhando esta escultura que está num dos lados da Catedral de S. Marcos. Nada do que ela representa existe, a não ser o doge ajoelhado. Existe? Não existe nenhum doge que se tenha ajoelhado diante de um leão. Não há na terra nenhum leão alado, com face humana, segurando um livro. O leão olha para a cidade, para o mar, o doge para o leão. Tudo é símbolo, sobre símbolo, sobre símbolo. O leão representa, como se sabe, uma abstracção: a república. A primeira palavra do livro é outra abstracção, mais desejada do que tudo, “Pax”. O doge ajoelha-se perante abstracções: o poder está no leão e não no doge, o leão fala-lhe de paz e mostra o livro aberto ao povo, que não se vê, mas vê.

É isto a cultura: uma invenção da imaginação humana, contra natura, contra o terror, contra o caos, por uma ordem superior feita de um teatro de convenções simbólicas que nos protegem, e que são a civilização. Tudo muito frágil, tudo construído, tudo inventado, tudo quase no limiar de nada. O doge pode pôr-se a pé e matar o leão, ou o leão comer o doge, o livro cair para a populaça o destruir, a primeira palavra pode não ser “Pax”, mas guerra. A cultura é uma frágil defesa, mas existe. Está ali, em pedra, símbolo de obediência do homem a convenções abstractas que ele criou e que só existem quando há vontade que existam. Nada depende mais da vontade do que a cultura e a civilização. Somos nós que as fazemos, somos nós que as desfazemos.

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EARLY MORNING BLOGS 325

A list of some observation. In a corner, it's warm.
A glance leaves an imprint on anything it's dwelt on.
Water is glass's most public form.
Man is more frightening than its skeleton.
A nowhere winter evening with wine. A black
porch resists an osier's stiff assaults.
Fixed on an elbow, the body bulks
like a glacier's debris, a moraine of sorts.
A millennium hence, they'll no doubt expose
a fossil bivalve propped behind this gauze
cloth, with the print of lips under the print of fringe,
mumbling "Good night" to a window hinge.


(Joseph Brodsky)

*

Bom dia!

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3.10.04


SCRITTI VENETI 12












Numa rua que não tem mais de três metros de largura, a Casselleria, está a pequena livraria Filippi, especializada em livros sobre Veneza. Lá estava uma edição moderna da Hypnerotomachia Poliphili, e uma série de livros antigos e modernos sobre a cidade. Vi, com gosto, no catálogo a frase de Aulio Gélio que dá nome ao blogue irmão VERITAS FILIA TEMPORIS.

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SCRITTI VENETI 11



Na ilha dos mortos, um retrato da dor absoluta. Bambino mio.

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SCRITTI VENETI 10

Veneza tem duas caras. Uma, a da beleza infinita, do orgulhoso poder, da vontade imperial de uma república aristocrática e comercial, um pequeno estado eficaz e civilizado. Outra, é a da decadência. É verdade que a decadência toca a tudo e a todos, mas, nos momentos decisivos da história, essa decadência nem sempre se vê. Os gregos decaíram pouco a pouco, mas para se falar da decadência dos gregos é quase preciso saltar dois mil anos. Os romanos conheceram a decadência e, nalgumas páginas magníficas, Gibbon fala dessa decadência de forma pungente, no retrato que faz das personagens do fim do império. É muito uma decadência de valores, que, a seu tempo, corrói também as pedras. Poetas como Bellay e pintores como Piranesi identificaram essa decadência nas ruínas imperiais, mas estavam a falar mais de mil anos depois, e no caso deste último, no limiar de uma sensibilidade romântica que gostava de ruínas.

Mas em Veneza há uma espécie de decadência sempre presente, como se estivesse literalmente nas costas da cidade “sereníssima”, como se a cidade se pudesse deixar do lado dos mármores e chegar ao lado da terra, de uma terra que misturada com a água produz lama e não transparência. A cidade, talvez porque sempre teve presente o mau cheiro do metano, do enxofre, da podridão, das águas mortas dos canais, suspeitou sempre que alguma coisa estava a morrer dentro de si. As epidemias, a peste, também ensinavam isso regularmente aos venezianos, que sabiam que viviam numa terra miasmática e num porto onde arribavam mercadorias, mas também ratos e doenças.



Um homem retrata isso melhor que ninguém, António Canal dito Canaletto, mais nas suas gravuras do que nas suas pinturas. Sempre que Veneza não me está presente no olhar, mas na memória, é antes de tudo Canaletto que vejo. Ninguém como ele retrata a fronteira de trás, o abandono das construções do passado, os remendos de madeira sobre a pedra, os panos transformados em farrapos, as personagens perdidas num caminho esboçado na terra, mas que não conduz a lado nenhum.

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INTENDÊNCIA

Corrigida a nota SCRITTI VENETI 4, acrescentada de umas fotos telefónicas, ou seja , más.

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SCRITTI VENETI 9



Eu não sei se há segredos nesta cidade. Não deve haver nenhum que sobre. Não há pedra, inscrição, graffiti, poço, canal obscuro, rua perdida, jardim interior, sobre o qual não se tenha escrito. Não há lenda, fantasma, assombração, raio de sol, posição da lua, silêncio súbito, sobre o qual não se tenha escrito. Passeia-se em Veneza, longe dos turistas, para os lados de trás da cidade, para junto da Madonna do Orto, onde tudo parece diferente da multidão entre San Marco e o Rialto e olha-se para os pés e vê-se o traço de mil palavras também ali. A última vaga de palavras, o último recenseamento dos segredos, veio dos amadores de Corto Maltese trazidos pelos mistérios e as sombras. É, não há segredos. E, no entanto, que faz ali aquela marca de giz que parece um ómega…

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2.10.04


SCRITTI VENETI 8



Não é todos os dias. Ter nas minhas mãos, tocar ao de leve, a Hypnerotomachia Poliphili.

*

Cortesia da Isabel Goulão fico a saber que o livro também existe na Biblioteca Nacional. A ficha completa é esta:

COLUMNA, Franciscus, O.P. 1433-1527,
Hypnerotomachia Poliphili / [adc. Leonardus Crassus, Johannes Baptista Scytha e Andreas Maro] . - Venezia : Aldo Manuzio, Dezembro 1499. - [234] f. : il. ; 2º . - HC 5501, GW 7223, Pell 3867, Polain 1126, IGI 3062, Goff C-767, BMC V 561 (IB 24500). - Assin.: 2//4 a-y//8 z//10 A-E//8 F//4. - Grav. ilustrando o texto sobre desenhos de autor desconhecido; cap. grav. - Variante na f. [5], l.5: O E final da palavra SANEQVE raspado e substítuido por AM (cfr. GW)
BN F. 4710 Microfilme

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TELEVISÕES

Em Itália há um caso actual muito parecido com o do crime de Figueira, em que também se procura um corpo de uma criança, sendo os familiares suspeitos. As televisões italianas são o que são, mas nem imaginam a diferença do tratamento e a respiração dos noticiários, apesar de tudo centrados no que conta: política, nacional e internacional, economia, eventos. Mesmo em Itália, insisto.

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INTENDÊNCIA

Corrigido os SCRITTI VENETI 3 e acrescentadas umas fotos de telefone, de má qualidade.

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SCRITTI VENETI 7

Acabou finalmente a rodagem do filme sobre o libertino. Desmontou-se a forca, que estava fora do seu sítio histórico, mais à frente do que devia. O local certo era entre as colunas de S. Marcos e S. Teodoro, o lugar mais aziago da cidade. Há um dito veneziano do género: “ainda te ponho a ver as horas”, porque o condenado a última coisa que via era o grande relógio em frente. Via o seu último minuto.

(foto de telefone)

(Note-se, de passagem, que Casanova nunca correu tal risco. A sua prisão tornada célebre pela fuga do inexpugnável cárcere de Piombi, mesmo atrás do Palácio, nos telhados da ala renascentista, foi por blasfémia e suspeitas de alquimia, crimes que na época já só levavam à prisão quando o comportamento era demasiado escandaloso ou quando serviam de pretexto para suspeitas políticas.)

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SCRITTI VENETI 6

Tarde na noite, por volta das quatro, cinco da manhã, os jornais encontram-se com os penúltimos boémios. O barco dos jornais, um dos que dizem “trasporto cose”, vai, de cais em cais, com a sua equipe de dois homens deixar os jornais do dia. Um atira os maços do barco, outro recebe-os e coloca-os numa arca de metal com cadeado. Depois, partem rápido para o cais seguinte. Mais tarde, o povo das tabacarias desce da cidade até junto à água a buscar as novidades. Nos cais, pequenos grupos, semi-adormecidos, encostam-se aos vidros à espera do vaporetto, o 1 ou o 42, para a grande volta circular.

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OS ACENTOS COMO FORMA DE CHUVA

Hoje, finalmente, choveu nas minhas palavras. Mesmo longe, consegui ter acentos. Ja já é já.

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1.10.04


SCRITTI VENETI 5

Continua o filme sobre o Casanova entre o Palacio dos Doges e as colunas de S. Marcos e S. Teodoro. Ao meu lado passa um cardeal conversando com uma camponesa, um peralvilho pega numa garrafa de agua e poe uma mochila as costas. Um coche dourado repete vezes sem conta a mesma cena de trazer alguem para junto do cadafalso. Umas vezes tapam os cavalos pretos com uma colcha, outra variam a companhia do cocheiro e o cocheiro, outras colocam um criado qualquer dependurado na porta. O mesmo coche faz por cinco, sempre igual, sempre diferente. As pombas entram no cenario `as centenas, os segurancas dizem aos turistas: "No flash". Se fosse a Guerra das Estrelas ficava a ver, assim fujo para a Riva dei Schiavoni. Aproxima-se o por do Sol sobre as ilhas, e sempre posso falar com o Leao e o Crocodilo.

(Sem acentos)

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CLUBE DOS JORNALISTAS

Presumo que uma entrevista que dei ao Clube dos Jornalistas da 2 terá passado ontem na televisão. Nela cometo um erro que queria corrigir: embora tenha havido ocasiões em que a SIC Noticias ultrapassou a 2 em audiências, isso não é a regra mas a excepção.

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SCRITTI VENETI 3



De manha cedo. Na ilha dos mortos. Campa de Brodsky, abandonada, num canto de cemitério evangélico. No meio da campa, um pinheiro manso tenta crescer. Um ramo de flores ressequidas. Em cima da lápide, um monte de pedrinhas e conchas segura um pequeno colar barato de fantasia. Um rebuçado dourado. No chão, de um lado, uma garrafa pequena de lemoncello, um seixo. Do outro lado, uma pasta de plástico com papéis, suja da chuva e um vaso com canetas e lápis. Cheio. Deixei mais uma. Coisas.


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SCRITTI VENETI 4




Um velho encosta o corpo nos Tetrarcas. Não sei se nos de Ocidente, ou nos de Oriente.

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© José Pacheco Pereira
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