ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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3.10.04
SCRITTI VENETI 10
Veneza tem duas caras. Uma, a da beleza infinita, do orgulhoso poder, da vontade imperial de uma república aristocrática e comercial, um pequeno estado eficaz e civilizado. Outra, é a da decadência. É verdade que a decadência toca a tudo e a todos, mas, nos momentos decisivos da história, essa decadência nem sempre se vê. Os gregos decaíram pouco a pouco, mas para se falar da decadência dos gregos é quase preciso saltar dois mil anos. Os romanos conheceram a decadência e, nalgumas páginas magníficas, Gibbon fala dessa decadência de forma pungente, no retrato que faz das personagens do fim do império. É muito uma decadência de valores, que, a seu tempo, corrói também as pedras. Poetas como Bellay e pintores como Piranesi identificaram essa decadência nas ruínas imperiais, mas estavam a falar mais de mil anos depois, e no caso deste último, no limiar de uma sensibilidade romântica que gostava de ruínas. Mas em Veneza há uma espécie de decadência sempre presente, como se estivesse literalmente nas costas da cidade “sereníssima”, como se a cidade se pudesse deixar do lado dos mármores e chegar ao lado da terra, de uma terra que misturada com a água produz lama e não transparência. A cidade, talvez porque sempre teve presente o mau cheiro do metano, do enxofre, da podridão, das águas mortas dos canais, suspeitou sempre que alguma coisa estava a morrer dentro de si. As epidemias, a peste, também ensinavam isso regularmente aos venezianos, que sabiam que viviam numa terra miasmática e num porto onde arribavam mercadorias, mas também ratos e doenças. Um homem retrata isso melhor que ninguém, António Canal dito Canaletto, mais nas suas gravuras do que nas suas pinturas. Sempre que Veneza não me está presente no olhar, mas na memória, é antes de tudo Canaletto que vejo. Ninguém como ele retrata a fronteira de trás, o abandono das construções do passado, os remendos de madeira sobre a pedra, os panos transformados em farrapos, as personagens perdidas num caminho esboçado na terra, mas que não conduz a lado nenhum. (url)
© José Pacheco Pereira
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