ABRUPTO

4.10.04


SCRITTI VENETI 13



O que é a cultura? Eu respondo olhando esta escultura que está num dos lados da Catedral de S. Marcos. Nada do que ela representa existe, a não ser o doge ajoelhado. Existe? Não existe nenhum doge que se tenha ajoelhado diante de um leão. Não há na terra nenhum leão alado, com face humana, segurando um livro. O leão olha para a cidade, para o mar, o doge para o leão. Tudo é símbolo, sobre símbolo, sobre símbolo. O leão representa, como se sabe, uma abstracção: a república. A primeira palavra do livro é outra abstracção, mais desejada do que tudo, “Pax”. O doge ajoelha-se perante abstracções: o poder está no leão e não no doge, o leão fala-lhe de paz e mostra o livro aberto ao povo, que não se vê, mas vê.

É isto a cultura: uma invenção da imaginação humana, contra natura, contra o terror, contra o caos, por uma ordem superior feita de um teatro de convenções simbólicas que nos protegem, e que são a civilização. Tudo muito frágil, tudo construído, tudo inventado, tudo quase no limiar de nada. O doge pode pôr-se a pé e matar o leão, ou o leão comer o doge, o livro cair para a populaça o destruir, a primeira palavra pode não ser “Pax”, mas guerra. A cultura é uma frágil defesa, mas existe. Está ali, em pedra, símbolo de obediência do homem a convenções abstractas que ele criou e que só existem quando há vontade que existam. Nada depende mais da vontade do que a cultura e a civilização. Somos nós que as fazemos, somos nós que as desfazemos.

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© José Pacheco Pereira
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