ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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30.5.13
MENSAGEM ENVIADA AO ENCONTRO DA AULA MAGNA
Caro Presidente Mário Soares,
Não podendo estar presente nesta iniciativa, apoio o seu objectivo de contribuir para combater a “inevitabilidade” do empobrecimento em que nos querem colocar, matando a política e as suas escolhas, sem as quais não há democracia. Gostaria no entanto de, por seu intermédio, expressar com mais detalhe a minha posição.
A ideia de que para alguém do PSD, para um social-democrata, lhe caem os parentes na lama por estar aqui, só tem sentido para quem esqueceu, contrariando o que sempre explicitamente, insisto, explicitamente, Sá Carneiro disse: que os sociais democratas em Portugal não são a “direita”. E esqueceu também o que ele sempre repetiu: de que acima do partido e das suas circunstancias, está Portugal.
Não. Os parentes caem na lama é por outras coisas, é por outras companhias, é por outras cumplicidades, é por se renegar o sentido programático, constitutivo de um partido que tem a dignidade humana, o valor do trabalho e a justiça social inscritos na sua génese, a partir de fontes como a doutrina social da Igreja, a tradição reformista da social-democracia europeia e o liberalismo político de homens como Herculano e Garrett. Os que o esquecem, esses é que são as más companhias que arrastam os parentes para a lama da vergonha e da injustiça.
Não me preocupam muito as classificações de direita ou de esquerda, nem sequer os problemas internos de “unidade” que a esquerda possa ter. Não é por isso que apoio esta iniciativa. O acantonamento de grupos, facções ou partidos, debaixo desta ou daquela velha bandeira, não contribui por si só para nos ajudar a sair desta situação. Há gente num e noutro espectro político, preocupada com as mesmas coisas, indignada pelas mesmas injustiças, incomodada pelas desigualdades de sacrifícios, com a mesma cidadania activa e o mesmo sentido de decência que é o que mais falta nos dias de hoje.
A política, a política em nome da cidadania, do bom governo, e da melhoria social, é que é decisiva. O que está a acontecer em Portugal é a conjugação da herança de uma governação desleixada e aventureira, arrogante e despesista, que nos conduziu às portas da bancarrota, com a exploração dos efeitos dessa política para implementar um programa de engenharia cultural, social e política, que faz dos portugueses ratos de laboratório de meia dúzia de ideias feitas que passam por ser ideologia. Tudo isto associado a um desprezo por Portugal e pelos portugueses de carne e osso, que existem e que não encaixam nos paradigmas de “modernidade” lampeira, feita de muita ignorância e incompetência a que acresce um sentimento de impunidade feito de carreiras políticas intra-partidárias, conhecendo todos os favores, trocas, submissões, conspirações e intrigas de que se faz uma carreira profissionalizada num partido político em que tudo se combina e em que tudo assenta no poder interno e no controlo do aparelho partidário.
Durante dois anos, o actual governo usou a oportunidade do memorando para ajustar contas com o passado, como se, desde que acabou o ouro do Brasil, a pátria estivesse à espera dos seus novos salvadores que, em nome do "ajustamento" do défice e da dívida, iriam punir os portugueses pelos seus maus hábitos de terem direitos, salários, empregos, pensões e, acima de tudo, de terem melhorado a sua condição de vida nos últimos anos, à custa do seu trabalho e do seu esforço. O "ajustamento" é apenas o empobrecimento, feito na desigualdade, atingindo somente "os de baixo", poupando a elite político-financeira, atirando milhares para o desemprego entendido como um dano colateral não só inevitável como bem vindo para corrigir o mercado de trabalho, "flexibilizar” a mão de obra, baixar os salários. Para um social-democrata poucas coisas mais ofensivas existem do que esta desvalorização da dignidade do trabalho, tratado como uma culpa e um custo não como uma condição, um direito e um valor.
Vieram para punir os portugueses por aquilo que consideram ser o mau hábito de viver "acima das suas posses", numa arrogância política que agravou consideravelmente a crise que tinham herdado e que deu cabo da vida de centenas de milhares de pessoas, que estão, em 2013, muitas a meio da sua vida, outras no fim, outras no princípio, sem presente e sem futuro.
Para o conseguir desenvolveram um discurso de divisão dos portugueses que é um verdadeiro discurso de guerra civil, inaceitável em democracia, cujos efeitos de envenenamento das relações entre os portugueses permanecerão muito para além desta fátua experiência governativa. Numa altura em que o empobrecimento favorece a inveja e o isolamento social, em que muitos portugueses tem vergonha da vida que estão a ter, em que a perda de sentido colectivo e patriótico leva ao salve-se quem puder, em que se colocam novos contra velhos, empregados contra desempregados, trabalhadores do sector privado contra os funcionários públicos, contribuintes da segurança social contra os reformados e pensionistas, pobres contra remediados, .permitir esta divisão é um crime contra Portugal como comunidade, para a nossa Pátria. Este discurso deixará marcas profundas e estragos que demorarão muito tempo a recompor.
O sentido que dou à minha participação neste encontro é o de apelar à recusa completa de qualquer complacência com este discurso de guerra civil, agindo sem sectarismos, sem tibiezas e sem meias tintas, para que não se rompa a solidariedade com os portugueses que sofrem, que estão a perder quase tudo, para que a democracia, tão fragilizada pela nossa perda de soberania e pela ruptura entre governantes e governados, não corra riscos maiores.
Precisamos de ajudar a restaurar na vida pública, um sentido de decência que nos una e mobilize. Na verdade, não é preciso ir muito longe na escolha de termos, nem complicar os programas, nem intenções. Os portugueses sabem muito bem o que isso significa. A decência basta.
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LOGO, A NOITE
Colocarei aqui o texto integral da mensagem enviada ao encontro da Aula Magna dirigido por Mario Soares. (Escrito em transito, sem acentos.) (url) 27.5.13
O MATERIAL TEM SEMPRE RAZÃO (17): CORTINAS DE FUMO
A razão principal pela qual tem havido sucessivas revisões dos valores do défice aceites pela troika é que o governo não tem conseguido cumprir as metas que negociou já após o memorando inicial. Não foi porque não tentasse, - tentou tudo, - não foi porque quisesse abrir uma janela para o "crescimento", como a propaganda insinua. Foi porque não o conseguiu, pelo irrealismo da sua política, que teve como efeito destruir a economia que havia, para depois "surpreender-se" pelo desemprego e a recessão, e os seus custos orçamentais. As sucessivas "explicações" dadas para a sistemática revisão da meta do défice, todas têm em comum esconder este dado essencial do falhanço próprio, transformando em mérito o que foi um erro, e impedir que se façam muitas perguntas incómodas sobre o presente e o futuro, ante e pós-troika.
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APELO DO EPHEMERA
Numa altura em que várias campanhas estão em curso, foram já publicadas no EPHEMERA cerca de 50 pastas relativas às eleições autárquicas de 2013, uma infíma parte dos milhares de candidaturas de partidos e independentes, a centenas de concelhos e milhares de freguesias. Nas eleições de 2009, o EPHEMERA publicou materiais de mais de dois terços dos concelhos e um número significativo de freguesias, a maior cobertura jamais feita na Rede e fora dela de umas eleições deste tipo, muito difícil dada a dispersão geográfica e a diversidade de candidatos, partidos e campanhas independentes. Foi um esforço colectivo em que participaram cerca de 100 amigos do EPHEMERA de todo o país, assim como muitos candidatos e responsáveis de campanhas. Esse trabalho foi complementado por várias viagens para recolha de material numa fase mais avançada das campanhas. Muitos materiais de 2009 estão ainda por publicar, assim como muitos outros de campanhas anteriores existentes em arquivo. Vou tentar garantir a publicação de maior número desses materiais anteriores, mas RENOVO DESDE JÁ O APELO A TODOS OS AMIGOS E COLABORADORES PARA SE COMEÇAR A RECOLHA DAS ELEIÇÕES DE 2013.
NOTA: dada a natureza do ARQUIVO / BIBLIOTECA o objectivo principal é a recolha física dos materiais de campanha (panfletos, cartazes, objectos de campanha, T-shirts, autocolantes, etc.), e não apenas a reprodução dos materiais online disponíveis na Rede. É óbvio que a existência de digitalizações facilita a colocação dos materiais no EPHEMERA poupando trabalho, mas a recolha física é fundamental para permitir a exposição ou investigação a partir da integralidade do espécime. Existe um projecto de uma grande exposição de muitos destes materiais cobrindo a actividade política em Portugal desde o 25 de Abril, em conjunto com uma universidade, e várias cedências de materiais tem sido feitas para pequenas exposições ou para reprodução em livro. Por isso a materialidade física é importante e nesse sentido não só é possível fazer entregas pessoais, programadas para qualquer parte do país, quer envios pelo correio para José Pacheco Pereira / EPHEMERA, Rua Brito Camacho, 1, 2040-158 Vila da Marmeleira, Rio Maior.
Obrigado.
(url) (url) (url) 26.5.13
O GOSTO E O DESGOSTO
Muitas das semanas em que
escrevo para o PÚBLICO tenho o dilema habitual de quem tem de escolher o
assunto sobre o qual deve escrever e não aquele sobre o qual gostaria
de escrever. Às vezes juntam-se os dois, o dever e o gosto, mas com a
vida pública estagnada nas profundezas, mas agitada à superfície, o
dever torna-se tão repetitivo e sombrio, que o gosto brilha ainda mais
no escuro lá longe. Seja, faz parte dos tempos.
Na verdade, se
escrevesse sobre o que me apetecia, escreveria sobre arquitectura romana
como amador curioso, sobre a extrema-esquerda ou o PCP como
historiador, ou sobre papéis antigos e em risco como caçador-recolector.
Arquitectura romana? Sim, nos meus tempos de iPad, tenho seguido as
aulas de Yale da professora Diana Kleiner sobre arquitectura romana e
aprendido muito. Mandei vir o livro clássico sobre arquitectura imperial
romana, o Ward-Perkins, e como estes cursos são a sério - 25 aulas de
uma hora - aprende-se muito. De Roma à Atenas romana, de Ostia a Leptis
Magna na Líbia, de Petra na Jordânia a Balbeek no mortífero Vale de
Bekaa entre o Líbano e a Síria, a análise que Kleiner faz dos edifícios
de todo o tipo, templos, armazéns, casas, palácios, lojas, túmulos,
teatros, deu-me uma dimensão muito diferente do império romano muito
para além dos textos que lera e da história. Agora tenho de ver com
outros olhos muitos dos edifícios que vi mal e ir ver alguns que nos
guias aparecem apenas como curiosidades. Excelente, nunca é tarde para
aprender e o mundo seria muito mais aborrecido se não fosse assim.
Para além disso, faço nestes dias o meu book tour
do livro sobre a imprensa da extrema-esquerda, e escrevo o próximo
volume da biografia de Cunhal. Poderia, com facilidade e gosto, escrever
sobre tudo isto, explicar a dificuldade que cada volume de Cunhal
oferece, sempre diferentes entre si. Fazer uma "estória" da história.
Antes de 1960, rareavam os depoimentos e os documentos é que permitiam a
narração. Havia os manuscritos de Pato, com notas que permitiam
reconstruir o interior das reuniões do topo do PCP, perante o silêncio
dos participantes que ainda eram vivos. Agora, para os anos 60, há
muitos depoimentos e testemunhos, mas há menos documentos acessíveis do
núcleo duro do poder partidário. A PIDE não apreendeu nenhum grande
arquivo central do PCP depois das prisões de 1961 e o PCP passou a
mandar para fora de Portugal os papéis, que depois do 25 de Abril trouxe
e fechou. E, como se sabe, a memória é perigosa sem os papéis.
Poderia também escrever no PÚBLICO de como é interessante traçar a génese do Rumo à Vitória,
a principal obra teórica de Cunhal, como o autor a preparou em Moscovo,
com que apoio e com que fontes, e, como, por detrás da "linguagem de
pau", aparece um Cunhal muito mais nacionalista do que se pensa, e um
homem que dedicava mais atenção aos campos do que às fábricas. Ou, de
como Cunhal, contrariamente ao que diziam os esquerdistas, se preocupou
(e tentou) desencadear acções armadas praticamente desde que fugiu da
cadeia e a contraciclo da URSS de Khrustchov.
E há aquilo que,
depreciativamente, alguns classificam do meu lado de coleccionador, lado
para que durmo melhor, sendo que durmo bastante bem para todos os
lados. E, aí, gostaria de falar daquilo que os bibliófilos compulsivos
também fazem, da recolha semanal, do prazer de salvar um núcleo de
documentos originais sobre a campanha eleitoral de Delgado, ou sobre a
história do movimento estudantil nos anos 60, ou jornais do século XIX,
uma espécie ameaçada, ou de como, num álbum de fotos do Carnaval na
região oeste, nos anos 10 e 20 do século passado, me apareceu uma
fotografia original do 5 de Outubro, ou de como num caderno de notas
está uma muito interessante história de Salazar seminarista que nenhum
dos seus biógrafos conhece.
Ou seja, não faltam temas para
escrever a gosto. Mas há os temas a desgosto, há "outra" semana, mais
cruel e dura e conforme com os tempos. Na rua, as pessoas que me falam, e
são cada vez mais, transmitem desespero, medo e muita raiva. Querem ter
"voz", porque não a tem.
Uma completa desmotivação, uma forma elegante de referir uma invisível greve de zelo, atravessa o Estado e a sociedade, resultado da perda de tónus social que vem do empobrecimento. Funcionários públicos aviltados que quereriam fazer greve, mas sabem que vão ser as "chefias" a decidir quem vai para o Sistema de Requalificação da Administração Pública, nome orwelliano para o despedimento.
Há quem perceba que, pela primeira vez, não tem
dinheiro para pagar impostos e percebe que a partir de agora a vida vai
ser um calvário do "outro lado da Lua". Há quem, reformado e idoso,
receba uma carta ameaçadora de um senhorio pedindo cinco, dez vezes
mais, com ameaça de o pôr na rua da sua habitação de há 30 anos. Isto já
depois de ter actualizado a renda. Há quem, como toda a correnteza de
pequenas lojas comerciais da Baixa de Lisboa, restaurantes, cafés,
alfarrabistas, clubes centenários, vá para a rua nos próximos meses,
porque os senhorios decidiram "fazer obras". O mais dramático disto tudo
é que a lei está tão mal feita que vai acabar de certeza por ser
corrigida e muitos aspectos mais gravosos serão suspensos, mas deixando
para trás um rastro de sofrimento e insegurança escusada.
À minha
volta, no centro de Lisboa, vai fechar dentro de dias uma mercearia que
aguentou várias décadas de "proximidade", ou seja, de fiado e
vizinhança. Várias lojas de uma urbanização trendy, que foi prevista para restaurantes da moda, lojas de roupa fina, galerias de arte, agências de viagem e de real estate,
já desapareceram há muito. Uma muito activa e numerosa família
paquistanesa vai ocupando com os seus negócios, malas e géneros,
quinquilharia e pequenos serviços, as lojas preparadas para serem gourmet
e venderem apartamentos de luxo. Ironia das ironias foi a rápida
mudança de uma agência imobiliária para pequena mercearia com um jovem
que mal fala português vendendo aquilo que as lojas de conveniência
indianas e árabes vendem: refrigerantes, bolachas, latas de conserva,
fruta e, num armário fechado, umas versões bizarras de whisky e vodka de marcas desconhecidas.
Por
mim até está bem, dá-me mais jeito. Porém, a maioria das lojas
permanece fechada, e, para além desta pequena Islamabad, desaparecerem
as lojas de informática, as tabacarias, e há agora umas lojas
brasileiras oferecendo depilação integral, umas pedras para colocar nas
costas e uma loja de unhas e cabelos fulvos, também brasileira. Não vão
durar muito.
Os meus interlocutores e amigos das outras classes
mais de cima, chamemos-lhe assim, também não sabem para onde se virar.
Alguns, patrões e trabalhadores em uníssono, contam-me como são ao mesmo
tempo dramáticas e ridículas as reuniões da concertação social, onde,
com a política demagógica de "acabar" com as chefias, se entregou as
assessorias e consultadorias a uns jovens das jotas cuja incompetência é
"épica" para tratar de questões sérias.
A inutilidade de todo o
esforço das pessoas, a quem milhares de milhões já foram retirados não
se sabe para quê e com que resultados, leva a tudo que pareça autodefesa
face ao poder. Muita gente tira o dinheiro dos bancos para o colocar no
colchão, e, como se sabe, nos balcões mais populares, encenam-se mil e
uma estratégias para dificultar tal retirada como se o dinheiro fosse do
banco e um crime retirá-lo. Irá, a seu tempo, aparecer nas
estatísticas. Gente pequena que tinha pequenas poupanças que sabe
estarem agora inseguras. Para eles ser abaixo dos 100.000 euros ou acima
é irrelevante: os bancos deixaram de ser fiáveis e o Governo parece ser
capaz de tudo "para ir buscar dinheiro".
Podia continuar sem
limite, olhando à esquerda, direita, centro, para cima e para baixo.
Compreendam que, neste contexto, eu quero pouco saber das habilidades de
Portas, ou das sistemáticas fugas de informação destinadas a nos
enganar, ou de um governo que parece estar nas vascas da agonia,
mexendo-se sem nexo, mas com muito ruído, ou de uma agenda
comunicacional que aceita sem reservas a linguagem, os temas e os
limites do poder. E as distracções.
Voltando a Roma, haverá um tempo em que a damnatio memoria apagará estas faces patéticas e fugazes. Só que depois de muitos estragos e depois de muito tempo. E custa.
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O CONSELHO DE ESTADO IRREAL
Basta ler com atenção o bizarro “comunicado” que foi publicitado depois da reunião para perceber que ela não correu nada bem nem para o Presidente, nem para o governo. A decisão de convocar o Conselho de Estado com uma agenda fechada, remetida para um futuro “pós troika” cujas características estão longe de poderem ser conhecidas é tão evidentemente escapista que, no actual contexto político, o que aconteceu não pode ser aquilo que o comunicado descreve.
Esta forma de convocar a reunião é o corolário do desejo presidencial de que nada mude no quadro governativo no próximo ano, de que não haja eleições antecipadas nem agora, nem no fim do “programa”. Trata-se de um puro desejo, que assume ares de irrealismo, visto que não passou uma semana desde que o Presidente veio de uma crise política muito séria e está a assistir a um agravamento da desagregação da coligação e do governo com episódios cada vez mais próximos no tempo. Suspira de alívio num dia, para logo se sobressaltar no dia seguinte.
A situação do governo é parecida com aqueles vulcões que antecedem a erupção com tremores de terra cada vez mais frequentes e sucessivos até explodirem de todo. O Presidente, embora avisado pelos vulcanologistas que o Pico de Dante está para explodir, não quer que evacuemos a cidadezinha para não assustra os turistas. Sabe-se como é nos filmes catástrofes.
O COMUNICADO EM “PASSOS COELHÊS”
O comunicado do Conselho é um ecrã, que tapará a realidade da reunião até muita gente que lá esteve começar a conta-la. É provável que à data em que lerem este artigo já se saiba quase tudo.
Mas fica uma perplexidade e uma preocupação. Veja-se o título da ordem de trabalhos: “Perspectivas da economia portuguesa no pós-troika, no quadro de uma União Económica e Monetária efectiva e aprofundada”.
Veja-se o comunicado a informar-nos que o “Conselho debruçou-se sobre os desafios que se colocam ao processo de ajustamento português no contexto das reformas em curso na União Europeia e tendo em vista o período pós-troika”. E mais se “debruçou”, interessante escolha de verbo, como numa varanda, sobre “a perspectiva do reforço da coordenação das políticas económicas e da criação de um instrumento financeiro de solidariedade destinado a apoiar as reformas estruturais dos Estados-Membros, visando o aumento da competitividade e o crescimento sustentável".
E por fim este truísmo que é, ao mesmo tempo, tudo e nada: “o Conselho de Estado entende que o programa de aprofundamento da União Económica e Monetária deve criar condições para que a União Europeia e os Estados-Membros enfrentem, com êxito, o flagelo do desemprego que os atinge e reconquistem a confiança dos cidadãos, devendo ser assegurado um adequado equilíbrio entre disciplina financeira, solidariedade e estímulo à actividade económica".
Porque é que isto me preocupa? É que isto é “passos coelhês”, a linguagem enrolada e pesada, obscura e tecnocrática, habitual no Primeiro-ministro quando não quer dizer nada ou quando as palavras saem entarameladas ou por incompetência ou por dolo. Por favor, se não se quer dizer o que aconteceu, faça-se um comunicado de duas linhas: o Conselho discutiu vários temas da actualidade nacional e europeia, tendo os conselheiros exprimido a sua opinião ao Presidente da República.”
Chegava e era escrito em português comum. E era mais verdadeiro.
(url) 22.5.13
DAQUI A UMA SEMANA
NAS LIVRARIAS
"De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."
Ruy Barbosa (1849-1923)
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O MATERIAL TEM SEMPRE RAZÃO (16): APRENDER DEPRESSA
Veja-se como o novo ministro das relações públicas do governo, Poiares Maduro, aprendeu depressa a falar "politiquês" e a mentir na linguagem orwelliana do governo.
Exemplos:
- Foi certamente por isso que só a N..S. de Fátima salvou o governo de cair há uma semana.
*
, ou seja só se discute o que o governo quer que se discuta. É isto o "consenso".
*
E há muito mais. Aleluia! o governo já tem "comunicação política". O problema é que é igual à que existia. O material tem sempre razão.
(url) 16.5.13
ACERTAR NAS PREVISÕES
Para acertar nas previsões políticas em Portugal basta seguir uma regra básica: prever o pior que é possível, usar da Lei de Murphy de que se uma coisa pode correr mal, muito provavelmente ela correrá mal, e esperar. Nem sequer é preciso esperar muito. Todos os comentadores e analistas que não seguem esta regra enganam-se ou então tem que fazer uma série de piruetas para encaixar o que acontece naquilo que juravam que nunca acontecia. É, como já escrevi, da natureza do “material” e “o material tem sempre razão.”
(url) 14.5.13
O MATERIAL TEM SEMPRE RAZÃO (15): COMO É QUE AS COISAS SE FAZEM
Hoje uma parte do contínuo que vai dos blogues políticos para as empresas “de comunicação”, para a prestação de serviços às autarquias da mesma cor política dos blogues, para as campanhas eleitorais, representa efectivamente mais uma variante daquilo que no passado aconteceu com as empresas criadas por militantes partidários para aceder aos fundos europeus, cujo "negócio" dependia apenas do acesso à informação e às pessoas. Era e é um círculo vicioso e uma forma de corrupção política, muitas vezes vista com complacência por muitos jornalistas cuja proximidade com estes "meios" é grande. Hoje já não é na "formação" que este tipo de "negócios" se fazem (acabaram os fundos), mas são muito comuns no mundo dos serviços "de comunicação", e envolvem milhões de euros.
O mecanismo é sempre o mesmo: uns jovens “empreendedores” bem colocados nas redes partidárias (nas “jotas” ou no partido), ou com amizades “políticas” criadas em blogues, em causas comuns que chamaram a atenção dos detentores do poder partidário ou governativo, criam "empresas" que acedem a contratações ou negócios ou subsídios sem concurso publico, e que depois, com contratos formais ou sem eles, "ajudam" nas campanhas eleitorais. Muito dinheiro circula por aqui.
(url) O GUIGNOL
No início do século XIX
apareceu em Lyon um nova versão do teatro de marionetes com uma
personagem central que deu o nome à cena: Guignol. Muitas das suas
personagens são idênticas às da Commedia dell"Arte italiana e incluem
variantes do Arlequim, do Polichinelo, uns criados oportunistas, uns
"burgueses", um militar façanhudo, um polícia e vários ladrões, uns
ingénuos e uns espertos, umas damas de virtude assanhada e outras de
costumes fáceis, etc., etc. A actividade mais popular no Guignol é a
pancadaria, sendo que a cabeça dos bonecos tem sempre que ser feita de
madeira dura para permitir a repetida cena de uma ou várias personagens
andarem com um pau a bater na cabeça uns dos outros. Se se quiser dizer
em português, o Guignol é uma fantochada.
A imagem do Guignol,
cujas variantes nacionais ainda estão nas minhas memórias de infância,
perseguiu-me toda a semana passada enquanto assistia ao espectáculo dado
pelas sucessivas declarações de Passos Coelho e Paulo Portas, os
arrufos e as declarações de amor perpétuo, os elogios da corte de
servidores, a admiração dos jornalistas e comentadores com a supina
inteligência de um e a incompetência "mediática" do outro, num jogo de
cena penoso de se ver, diante de milhões de pessoas a empobrecer,
desempregadas, ameaçadas nos seus direitos mais básicos, velhos sem
qualquer alternativa atirados aos cães da "convergência das pensões".
Era Guignol do mais perfeito: pauladas, tiradas retóricas, choros e arrependimentos, mentiras e maldades.
A
sequência rápida destas últimas semanas diz tudo sobre como estamos.
Comecemos pelo chumbo do Tribunal Constitucional, seguida das
declarações de fúria governamental, da cena de silêncio e ida a Belém
(porquê?), do despacho vingador de Vítor Gaspar, que continua em vigor e
ninguém aplica porque é impraticável; das fugas de informação de que as
reuniões do Conselho de Ministros são campos de batalha entre facções
do Governo, detalhadamente contadas ao Expresso, a Marques
Mendes, a Marcelo, a qualquer órgão de informação que queira saber; do
discurso autocastrador de Cavaco Silva no 25 de Abril; do plano
abstracto de "fomento industrial", anunciado com tanta pompa quanto o
vazio de concretização, por uma facção do Governo ligada ao
"crescimento"; da Assembleia informada de que terá direito a ver um
documento essencial para o futuro do país, "uns minutinhos antes" de
Bruxelas; da Assembleia informada de que pode discutir os créditos swap,
mas que o acesso ao relatório que iliba a secretária de Estado (e feito
sob sua direcção) permanece "confidencial"; do Documento de Estratégia
Orçamental apresentado pela outra facção do Governo, a do "rigor
orçamental", da ordem do imaginário (e aprovado por Portas que também o
acha "irrealista"), dos anúncios sobre anúncios que não anunciam nada,
do "será para depois de amanhã", "afinal os pormenores serão só para
depois", etc., etc. "Menus de propostas", uma ridícula denominação, de
vários tipos: anunciadas; anunciadas mas vetadas por outro ministro do
mesmo Governo; anunciadas mas "abertas" para se cumprir o ritual da
concertação social, e o novo ritual do "consenso"; propostas
"equacionadas"; propostas que quando dão torto passam a "hipóteses" de
trabalho (sendo que os números divulgados noutros documentos de
"poupanças" são as das "hipóteses" e não as das propostas...), propostas
em versão A e B e C, mudadas no espaço de uma semana; propostas
terroristas passadas em fugas à comunicação social para ver no que dá e
para depois vir o Governo congratular-se por afinal não ir fazer tão mal
aos cidadãos como tinha "soprado" a uma imprensa que publica tudo;
não-propostas e antipropostas da ordem da matéria negra e da
antimatéria. Alguém me sabe ou pode dizer, a uma semana do seu anúncio,
que medidas estão efectivamente decididas? Ninguém.
O "menu de
propostas" parece aqueles menus desleixados em que uma cruz significa
que o prato já não há, e depois, quando se pede outro, já não há os
ingredientes e é melhor escolher o que não se tinha escolhido; ou
aqueles menus dos restaurantes de luxo em que um palavreado destinado a épater le bourgeois,
como "emulsão de chouriço", "vinagrete de citrinos" ou "sardinha em seu
suco", ocultam pouco mais do que uma folha de alface com Aceto Balsamico de Modena
feito na Bairrada. E quanto aos preços do "menu" não há um único que
bata certo. Os do Documento de Estratégia Orçamental não são os mesmos
dos de Passos Coelho, nem os de Portas, nem os da contabilidade do "menu
de medidas", nem os do secretário de Estado Rosalino, nem os que são
dados nas reuniões de concertação social. São todos em milhares de
milhões de euros, mas nada bate certo e não é só nas previsões, é nos
números com que se parte para as previsões.
Depois há o uso cada
vez mais ofensivo da instabilidade, da chantagem e do medo para pôr as
pessoas na ordem. Veja-se o que se passa com os despedimentos da função
pública, que, se o Governo pudesse sem violação da lei e da
Constituição, seriam às dezenas de milhares, amanhã mesmo. Mas como não
pode, usa-se uma combinação de chantagem - as rescisões "por mútuo
acordo" - com a colocação de milhares de trabalhadores na absurda (e
ilegal) situação de manterem um vínculo ao Estado sem receberem um
tostão de salário. E como o Governo percebeu que talvez, mesmo apesar
dos inconvenientes pessoais da chamada "mobilidade especial", pudesse
haver um número significativo de funcionários que a pudessem aceitar em
desespero de causa, e como o objectivo, por detrás dessa tralha verbal
tecnocrática, é só despedir, vem agora dizer que "precisamos de
transformar o Sistema de Mobilidade Especial num novo Sistema de
Requalificação da Administração Pública, com o objectivo de promover a
requalificação dos trabalhadores em funções públicas, através de ações
de formação". Poderíamos dizer que teria havido um progresso, visto que se pretendia apenas "requalificar" os trabalhadores. Mas se é assim por que é que a frase seguinte é "...
e da introdução de um período máximo de 18 meses de permanência nessa
condição, pois não é justo para a pessoa, nem é boa administração do
Estado, perpetuar uma situação remuneratória que já não tem justificação
laboral", ou seja "requalificar" significa despedir? Estes jogos de palavras orwellianos são tão habituais neste Governo como respirar. E eles estão ofegantes.
É uma descrição dura e desapiedada a que faço? Ainda me parece mole e meiga, porque a dimensão de Guignol,
de engano, de dolo, de nos querer tomar por tolos, é compulsiva. Não é
para levar a sério, mas é muito sério. É muito sério porque disto tudo
fica um resíduo, um rasto, uma saliva marcando as paredes, uma babugem
qualquer, de medidas, ordens avulsas, leis e directivas, despachos que
destroem sem sentido a vida a muitas pessoas que estão a pagar um
tributo demasiado caro à vaidade do dr. Portas, ao profetismo ignorante
de Passos Coelho, à obstinação tecnocrática de Gaspar, ao servilismo dos
deputados do PSD e do CDS, e à cumplicidade de muitos interesses. Esse
tributo, que vai ser inútil porque dele não virá qualquer adquirido para
os problemas do país, torna este Guignol criminoso.
E não
me venham com desculpas, nada disto tem a ver com o facto de haver uma
coligação, nada disto mostra inteligência, mas apenas esperteza, nada
disto mostra qualquer preocupação com o país, mas apenas instinto de
sobrevivência eleitoral, nada disto mostra qualquer sentido de Estado
mas apenas truques de imagem mediáticos, nada disto tem a ver com
Portugal nem com os portugueses, mas com um sistema político corrompido
pela sua ruptura com o povo e a nação. Guignol por Guignol prefiro o verdadeiro.
(url) 12.5.13
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PIOR QUE HÁ DOIS ANOS
Estamos hoje pior do que há
dois anos quando se pediu o resgate internacional: Portugal, a
democracia, a economia, as finanças, a sociedade. Claro que tudo isto é
muito relativo, visto que se trata apenas de graus de mal - estávamos
muito mal há dois anos, estamos pior agora. A última coisa que isto deve
consolar ou isentar é os autores do mal de há dois anos, mas também, em
nome desse mal, não se deve esconder o que piorou. O que piorou é que
um elemento essencial em democracia, a existência de margem de manobra,
ou seja, de escolhas, diminuiu exponencialmente nestes dois anos, sem
que nenhum problema de fundo tenha sido resolvido e sem que haja
qualquer melhoria que não seja tão frágil como o fino gelo em que
andamos.
Pior, nenhuma melhoria adquirida, mesmo que se aceitem
as melhorias enunciadas no discurso governamental (défice estrutural,
balança comercial, regresso tímido e apoiado ao mercado), é sustentável,
nem por persuasão democrática (o que me interessa) nem à força (o que
passa pela cabeça dos que defendem a ilegalidade em nome da "economia",
seja no abandono do primado da lei e do direito em nome do "programa"
seja na ultrapassagem da Constituição). É por isso que se está pior.
Explico-me.
Há dois anos, o ministro das Finanças de Sócrates, para impor o resgate
externo, mandou o recado para os jornais de que não havia dinheiro para
salários e pensões. Esta semana, o primeiro-ministro, Passos Coelho,
veio dizer o mesmo: ou prosseguimos as políticas que ele propõe, ou não
há dinheiro para salários e pensões. Descontando o elemento chantagista
do argumento, que é igual há dois anos e hoje, o que podemos concluir é
que nada foi adquirido e que estamos na mesma, vivemos a um mês de não
ter dinheiro para salários e pensões.
Se se aceita a veracidade
do argumento, a pergunta a fazer é que significado teve o sacrifício dos
portugueses nestes dois anos, em que cada pacote de austeridade foi
sempre apresentado como último, para ser logo a seguir anunciado um
novo, quando o Governo não conseguia os resultados que pretendia com o
anterior. Em finais de 2011, Passos Coelho, quando questionado sobre se
bastava o corte de meio subsídio de Natal, respondeu que sim. Logo a
seguir, quando do anúncio do fim dos subsídios de Natal e de férias,
quando questionado sobre se era suficiente, respondeu que sim. Em 2012,
quando subiram os impostos, questionado sobre se chegava, Passos Coelho
respondeu que sim. Em 2012, quando anunciada a subida da TSU,
questionado sobre se essa medida seria eficaz, Passos Coelho respondeu
que sim. Em 2012, quando se anunciou o "enorme aumento de impostos", que
seria apenas para 2013, Passos Coelho garantiu que sim. Em 2012 e 2013,
quando começou a falar da "refundação do Estado" e dos quatro mil
milhões, questionado sobre se isso resolvia o problema de adequar o
financiamento do Estado aos recursos que os "portugueses estariam
dispostos a pagar", Passos Coelho respondeu que sim, esta reforma era
"estrutural" e por isso fechava o "problema".
A cada pacote de
austeridade foi sempre pedido mais do que no pacote anterior e todas as
medidas estão a ser cumulativas, e as que eram provisórias para 2011,
2012, ou 2013 continuam em aplicação para 2014, 2015, 2016, 2017, e
algumas o ministro das Finanças aponta para 2020-2030. De medidas
destinadas a resolver a situação de emergência de 2011-4, passaram a
medidas para uma geração ou duas. Qualquer pessoa que tenha uma mínima
ideia do que é uma democracia percebe que isto é errado, ilusório,
mágico, milagroso, ou melhor ainda, um completo disparate.
Há
dois anos, o país tinha sido posto na bancarrota pelos delírios de José
Sócrates e pelo esbanjamento escandaloso dos seus "programas de
bandeira" e tivera de, in extremis, pedir ajuda internacional e
negociar o memorando. Não me interessam os pormenores da "narrativa"
socrática, porque com mais ou menos culpa da situação internacional e do
PSD, no essencial foi dele a responsabilidade. Porém, nessa situação de
"emergência", havia em democracia uma margem considerável de manobra e
os mecanismos democráticos podiam funcionar acrescentando factores
positivos à crise que se vivia, ou seja, "saídas".
Um desses
mecanismos foi as eleições, permitindo que o sentimento da primeira
grande manifestação "indignada", contra Sócrates, pudesse ter expressão
nas urnas. O eleitorado varreu Sócrates e o PS do poder com o mesmo
mecanismo de rejeição com que ele tinha varrido Santana Lopes, ambos em
resultado da interrupção de governos em funções. Acresce que dessas
eleições resultou uma maioria parlamentar do PSD-CDS, que, em abstracto,
era uma solução muito melhor do que a minoria do PS para gerir um
período de crise e dificuldades. O aspecto negativo foi uma campanha
eleitoral baseada no logro, embora o conhecimento público do memorando
da troika trouxesse aos eleitores algum sentimento de realismo sobre os tempos que aí vinham.
A
todos estes resultados - "actualização" excepcional dos sentimentos
populares pelas eleições, maioria parlamentar, mudança de pessoal
político - podia acrescentar-se por parte da maioria dos portugueses um
sentimento muito raro em democracia: de que seria legítimo pedir
sacrifícios, que estavam dispostos a fazer, desde que moderados, a prazo
e, acima de tudo, feitos com justiça e equidade. Por seu lado, no
sistema político, o PS fragilizado e recém-signatário do memorando,
estava comprometido com a governação, e as centrais sindicais abertas a
negociações, mesmo que, como a CGTP, não o dissessem. Havia por isso,
uma margem considerável de manobra política e social, em democracia. Ela
iria inevitavelmente conhecer alguma erosão com a austeridade, mas
existia em 2011 a seguir às eleições.
É à luz destes factos que o
Governo de Passos Coelho cometeu todos os pecados capitais que hoje paga
em termos de impasses e bloqueios políticos, com um isolamento parecido
com o de Sócrates terminal, e com uma perda de legitimidade e
credibilidade. Esses erros começaram na desvalorização da gravidade da
crise recebida, e na hipervalorização do memorando como instrumento de
engenharia social, económica e política. O Governo menorizava a
amplitude da crise, porque a considerava catártica e uma "oportunidade",
e estava felicíssimo com o pretexto que o memorando lhe dava para
"revolucionar Portugal".
O "memorando era o programa do PSD",
como disse Passos Coelho, impante da sua importância e papel como sendo
aquele que iria mudar a face do país, da economia, o grande
modernizador, que iria combater os "vícios do passado" e os maus hábitos
dos portugueses, cheios de direitos e "pieguice". O conteúdo das suas
declarações iniciais, utópicas e proféticas, encontrou em Gaspar o
típico executor burocrático que era suposto trazer a eficácia da
tecnocracia para a prossecução da "revolução". Gaspar acabou por ser o
Mestre e não o Executor, mas isso também era previsível.
As
opções radicais, milenares e proféticas, implicaram um excesso de zelo e
uma pressa de rolo compressor, tentando esmagar a "velha" economia e os
"velhos" hábitos o mais rápido e violentamente possível, para depois,
sobre as ruínas, se erguer o Portugal disciplinado, competitivo e
alemão. Por isso, nenhum acordo com o PS, nenhum sério envolvimento dos
parceiros sociais, nenhum esforço de "consenso" tinham sentido. Era um
programa para os fiéis sem dúvidas, obstinados e cegos a tudo o que não
fosse o "ir para além da troika", "custe o que custar". E os
fracos como o PS, os sindicatos e mesmo as confederações patronais,
tinham de ser postos à margem porque não eram confiáveis. Ficavam
apenas, dentro do círculo do poder, o sector financeiro, e a elite dos
"sempre os mesmos", que circulavam de governo para governo, da banca,
das consultoras financeiras e dos grandes escritórios de advogados. Mas
isso era natural, porque o "programa" da troika e de Passos Coelho era o deles.
A
recusa do "consenso" não foi o resultado de o Governo ser desajeitado,
ou demasiado convencido, ou um "erro de comunicação". Foi uma opção de
fundo inteiramente consistente com um radicalismo que exigia fidelidade e
zelo dos fiéis e dos convertidos, mas não tinha lugar para mais
ninguém. E assim se começou a destruir o espaço de manobra que existia
em 2011.
E esse é o segundo acto desta história. Fica para depois.
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O MATERIAL TEM SEMPRE RAZÃO (15): LE GUIGNOL
"Pedro Passos Coelho e Paulo Portas estiveram esta tarde reunidos com os deputados do PSD e do CDS, e apresentaram-se com discursos perfeitamente sintonizados, de acordo com fontes que assistiram à reunião, à porta fechada.
Nem um nem outro se referiu directamente às divergências dos últimos dias por causa da taxa sobre as pensões de reforma (...) À saída da reunião, os líderes das duas bancadas parlamentares sublinharam a "coesão desta coligação".
(Expresso)
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O MATERIAL TEM SEMPRE RAZÃO (14)
No parlamento, questionado por António José Seguro sobre a retroactividade das pensões, Passos Coelho diz-lhe que só responde a essa pergunta se Seguro falar das alternativas à política governamental. E depois o debate continuou normalmente. Normalmente Normalmente o parlamento coloca no mesmo plano um deputado que não tem nenhuma obrigação de responder a qualquer pergunta do Primeiro-ministro, com um Primeiro-ministro que "responde" perante o parlamento como sua obrigação institucional. Está tudo ao contrário, mas é assim que se vive nos dias de hoje. (url)
SEMPER IDEM: 25 DE AGOSTO DE 2003
”DECISÕES TERRORISTAS” – Conclusão
(A propósito de um texto de Paulo Varela Gomes no cristóvão-de-moura. No Abrupto, lá para baixo, estão as outras duas partes.)
Interpretar a história como uma sucessão de actos únicos, sujeitos apenas à vontade dos seus agentes, feitos para “além do bem e do mal”, é bastante atractivo. O actual terrorismo apocalíptico vai aí buscar uma das sua fontes, por via do “excesso” religioso, da ideia de “martírio” , não por acreditar na irracionalidade da história, mas por acreditar na racionalidade do terror. É contraditório, mas muitas vezes é assim. Eu não tenho a certeza que a história não seja fundamentalmente irracional, até por outras razões. Basta que se abandone qualquer transcendência, qualquer destino manifesto, qualquer variante hegeliana da História com H grande, seja marxista, seja cristã (como em Teilhard de Chardin) . Tira-se a teleologia e ficam os humanos com o ónus de fazerem a história, ficando os humanos, é o que se vê. Basta que se considere que o homem não tem qualquer garantia divina para a sua sobrevivência, para se perceber que, desde que possui armas termo – nucleares, tem elevadas probabilidades de se estourar a si próprio – é só uma questão de tempo. Este é aliás o único problema filosófico radicalmente novo que penso não estar presente na tradição clássica grega. (Penso também, mas isto é um desvio, que foi a Bomba, como se escrevia nos anos cinquenta, que dissolveu interiormente todas as teorias da história triunfante com H grande.). Se nos podemos matar a todos, numa esquina da história, toda a história fica, retrospectivamente sem sentido, e é um gigantesco delírio do acaso, uma absoluta irracionalidade face ao domínio da morte, da entropia. Repito agora a frase anterior, com um acrescento para mim fundamental: eu não tenho a certeza que a história não seja fundamentalmente irracional, mas quero viver e actuar como se não fosse. Não me interessa, a não ser do ponto de vista cientifico, o que a história é ou pode ser, au grand complet , porque não pretendo ter como programa de vida qualquer vazio, mas um mais humilde programa de sobrevivência. Digamos que sou agnóstico quanto aos fins da história, mas crente na sua racionalidade possível e fragmentária . Dito de forma abrupta: eu não acredito que haja progresso, mas entre um mundo sem anestesia e outro com anestesia , há para mim uma diferença abissal. Isso talvez me torne numa espécie mais complicada do que os voluntaristas brutos de PVG, num voluntarista cultural ou simbólico, que actua perante as coisas por via de uma teatro, de uma ficção, que resulta tanto mais quanto o maior número de pessoas aceite representa-la, sempre sem qualquer garantia de sucesso final. Mas há uma razão para que eu queira viver assim: é que se houver um número significativo de pessoas a fazerem o mesmo, criam à sua volta uma ecologia mais saudável, menos violenta, mais vivível e já não é mau que o consigam em determinados espaços e durante determinados períodos de tempo. Talvez haja uma massa crítica nestas coisas e se consiga tornar o mundo melhor por pequenos períodos de tempo, para um cada vez maior número de pessoas. Talvez. É por isso que, do meu ponto de vista, posso decidir com a mesma firmeza que PVG atribui às suas personagens nietzschianas, apenas fundado numa filosofia pragmática, para tempos difíceis, sem pretensões sistemáticas. Não preciso de grandes certezas, nem de especiais “músculos da vontade”, mas apenas de um discernimento quase de bom senso, uma filosofia mais do lado humilde da anestesia, pela anestesia, por mil e uma pequenas anestesias, incluindo o bem-estar, a liberdade, a democracia, a felicidade. Pode ser tudo precário, pode ser um esbracejar ilusório, mas não troco e luto, se for preciso, para que não me obriguem a trocar. E isso diz-me que há “decisões” que, mesmo implicando em última ratio a violência, não são “terroristas” porque são contra o mundo do sistema da morte, contra o apocalipse now, a favor do império da anestesia e contra o do da kalashnikov.
(Escolha de João Francisco)
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SEMPER IDEM: 6 DE ABRIL DE 2009
ASTRONOMIA E ANOMIA
Dante tinha as sua razões em colocar o Inferno em baixo, o Paraíso em cima, e o Purgatório no meio. A geografia do mundo acabava assim por ser uma escala moral, entre a perdição e a salvação. E nós no meio. Bem no meio, a sermos testados pelo último teste, ou se cai, ou se sobe. Aqui, em Constância, no Centro de Ciência Viva, no Ano da Astronomia, sempre se pode subir, sempre podemos, de vez em quando, dar-nos ao luxo de escapar. É escapismo, mas é escapismo bom. Olha-se para as estrelas, de onde vêm sempre as mesmas mensagens: isto é demasiado grande para a tua cabeça, isto tem demasiado tempo para o teu corpo, isto é demasiado longe para teres esperança de cá chegar: Isto, no pleno e absoluto sentido do termo, escapa-te e porque te escapa podes também escapar-te para estas andanças, que nunca te perdes. Contempla, que já não é mau. Há cem poemas bons sobre isto e umas centenas de milhares péssimos, mas olhar para cima ainda vale a pena. Lá por baixo no Inferno, as fábricas despedem, a gente empobrece, a verdade é espécie rara, a mentira é oficial e oficiosa, a liberdade é escassa, anda tudo ao seu e nós ao nosso, mas aqui reina uma verdade muito especial. Há aqui algo que nos foge de uma forma muito radical, mas sem o qual não somos o que somos. Eu sou muito pouco prometeico, mas se há fogo divino, está nas estrelas, e se há pavor, está no espaço negro entre elas. As cúpulas dos telescópios voltam-se para o lado mais escuro, para a encosta mais ventosa, para o friso negro das copas das árvores. Do outro lado há mais luz, lembrando-nos que já quase não há lugar sobre a Terra que seja escuro, onde os homens não poluam luminosamente o espaço. Não está uma noite muito boa para observações astronómicas. A Lua já tem o lado mentiroso bem saliente e diz que vai diminuir enquanto cresce. A luz fria e metálica enche o céu, e só para longe dela se vêem estrelas. Há névoa. Não se percebe sequer a Via Láctea, e muitas da melhores constelações estão ou demasiado baixo já no ocaso ou no nascimento. Oríon está já escondida, a Cassiopeia por nascer. As Ursas estão lá sempre, mas é essa a sua condição. O nosso astrónomo residente, Máximo Ferreira, dedica-se ao seu ofício. Abre as cúpulas para que se estabilize a temperatura dos telescópios e os espelhos se habituem ao frio cortante. O vento rouba qualquer calor residual nas faces e nas mãos. Isto da astronomia tem ofício, antes de ter saber. Os aparelhos são especialmente delicados, têm que ser ajustados, calibrados, os seus movimentos acompanhados pela ranhura da cúpula. Um feixe de laser que parece ir directo da Terra a Saturno aponta o alvo. Lembrei-me do Ícone da Escada Celestial de São João Klimakos. Saturno lá está com os anéis vistos de lado, como se fossem uma linha que atravessa o planeta, na constelação de Leão. Alguns satélites são visíveis no mesmo plano dos anéis. E por lá anda a sonda Cassini, que nos últimos dias fotografou Dione e mapeou ainda com mais detalhe Titã, com os seus lagos e rios (?) de metano. Chove metano em Hotei Arcus em Titã, e isto é não-ficção científica. Em Encélado, a sua jovem superfície brilha e nas cinquenta e duas luas que dançam à volta de Saturno, há mil e uma coisas diferentes para estudar, compreender ou desaprender. É como nos livros, nunca é maçador. Depois vê-se o M13, o objecto catalogado por Messier com o número 13, um enxame de estrelas na constelação de Hércules. Já estamos no limite do que se pode ver com o olho humano. Foi para este grupo de centenas de milhares de estrelas, envelhecidas, com muita história para contar, que nós tentamos falar em 1974 a partir do radiotelescópio de Arecibo, dizendo coisas simples e complicadas ao mesmo tempo: que contamos de 1 a 10, que somos feitos a partir de um código inscrito no ADN, que somos como somos, dois braços, pernas, cabeça, que vivemos num sistema à volta do Sol e que falamos a partir de um enorme prato entre montanhas. Daqui a 50.000 anos saberemos se há resposta. Podia ser pior, podia ser mais longe. Quando, (...) escreveu que enviámos a informação de que «contamos de 1 a 10», bom... uma civilização capaz de enviar uma mensagem a outra civilização a dezenas de milhar de anos-luz de distância é capaz certamente de fazer bastante mais do que contar de 1 a 10. O que lhes dissemos que trabalhamos em base 10.E, por fim, a Lua, que não deixava os seus méritos por telescópios alheios, enchia a ocular com cerca de 60 por cento da sua superfície visível, mostrando o que 51 centímetros de abertura podem fazer. Os mares e as crateras sobrepostas com uma perfeição geométrica, os tons de cinzento e negro, parecem familiares vistos de longe. De perto, a gente percebe que aquilo está bastante morto, já para não dizer que está totalmente morto, que é uma coisa que não há na natureza. Mas bastante morto, há. Lá em cima, no Alto de Santa Bárbara, a santa protectora contra as tempestades, a senhora dos trovões, a Terra parece demasiado irreal. Ao fim de ver a Lua em grande, a M13 e o seu enxame de estrelas, e o glorioso Saturno, a noite parece outra coisa. Mas, como se sabe, tudo o que sobe tem que descer. E cá em baixo não está Constância, nem o Tejo, nem os pára-quedistas de Tancos, nem os tanques da Brigada Mista, nem os agricultores das terras ribeirinhas, nem as recordações árabes do Castelo de Almourol. Está o nosso primeiro-ministro mais o seu Freeport, a guerra entre procuradores, a agitação em que andamos todos, o som e a fúria que cresce dos subterrâneos do desemprego, os bancos vilões e os banqueiros moralmente débeis, os demagogos do Bloco, a multidão de economistas a explicar a "crise", as trivialidades da vida de todos os dias, os acidentes na Segunda Circular, os engarrafamentos da Ponte, a histeria das "causas fracturantes", o barulho dos blogues, o silêncio dos que sabem de mais, a logomaquia dos que sabem de menos. Mas é assim, somos o que somos. Descemos sempre mais do que subimos. Mesmo que, no Ano Internacional da Astronomia, escapemos um pouco para longe. Faz bem.
(Escolha de João Soares)
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SEMPER IDEM: 12 DE MAIO DE 2003
Quantos portugueses (quantos europeus )
sabem que um grupo de deputados , escolhidos mais ou menos
confidencialmente pelas direcções partidárias , e um conjunto de
representantes dos governos , estão a escrever aquilo que , em princípio
, deveria ser o documento jurídico mais importante para todos os países
da UE - uma Constituição . A primeira e fundamental questão devia ser :
quem a pediu , quem a exigiu , que movimento de opinião consistente e
generalizado , mostrou a sua necessidade ? Ninguém , apenas uma elite
política europeísta e federalista a defendeu , debaixo de uma razoável
indiferença da esmagadora maioria dos europeus.
Começou como quem não quer a coisa , por ser uma reflexão de "sábios" sobre a "unificação e simplificação" dos tratados , depois era suposto ser um "tratado constitucional" , hoje é uma Constituição e está a entrar na fase final dos trabalhos . A Convenção que a está a preparar , funciona sem votações e "por consenso" ( um absurdo revelador da sua composição ideológica e o que mostra até que ponto não representa a heterogeneidade das opiniões europeias ) . Esta Constituição pode muito bem vir a ser aprovada sem ninguém dar por ela , por governos que de há muito fazem tudo para retirar a discussão europeia da agenda política nacional , que tem medo de consultas e referendos . No caso português , parece que tudo se lhe rendeu , pelo efeito perverso de PSD , PS e PP terem hoje a mesma comunidade de silêncios europeus . O Presidente até já mostrou reticências públicas a que a Constituição da Convenção venha a ser referendada em Portugal e ninguém disse nada . Um dia adormecemos com a Constituição portuguesa e no outro acordamos com uma Constituição europeia , que é suposto ser "binding" da nossa . Lembro aliás que um dos objectivos da Convenção não era tanto tomar o freio nos dentes e ir colocar os governos entre a Constituição e parede , mas proceder a um "grande debate europeu" sobre os Tratados - cujo não existe por desinteresse , e por sentimento de pouca necessidade . O que os "convencionais" chamam debates tem sido colóquios mais ou menos académicos , mais ou menos institucionais , onde todos os participantes são escolhidos pelos mesmos métodos de "consenso" com que funciona a Convenção . As opiniões críticas de todo o processo são cuidadosamente excluídas para produzir um efeito de inevitabilidade . Daí , a segunda questão essencial : o cada vez maior défice democrático do processo europeu , retirado do debate político nacional e entregue cada vez mais apenas aos "europeístas" , que tem medo que o debate das suas propostas se transforme num debate "à inglesa" , exactamente o único país , goste-se ou não , onde se discutem estas questões
(Escolha de Vera Silva)
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SEMPER IDEM: 12 DE JULHO DE 2007
NUNCA É TARDE PARA APRENDER: OS LOUCOS QUE QUEREM SABER TUDO
Simon Winchester, The Professor and the Madman, HarperCollins, 1998
Os autores de dicionários e enciclopédias tendem a enlouquecer com a tarefa. Esta é matéria que percebo muito bem, estando no ofício da referência. Cada entrada nova no meu dicionário-enciclopédia, a que dedico "o melhor dos meus dias", como se dizia antigamente, tem o hábito de se alargar por pelo menos mais três ou quatro entradas. Para cada entrada nova, parece haver mais dez à espreita. E quando se quer fichar tudo, registar tudo, o espaço por preencher tem tendência para aumentar à medida que campos e campos de palavras já enchem uma vastidão atrás. A regra é que atrás está sempre uma pequena vastidão e à frente uma gigantesca vastidão. Vejam lá como isto é pouco normal... Tudo isto exige um grão de loucura prévia, que tende a agravar-se. Mas o caso do Dr. W. C. Minor, médico, militar, erudito, flautista, pintor de aguarelas e "lunático criminoso" vai um pouco mais longe. Os eruditos têm loucuras habitualmente mansas, mas o Dr. Minor estava internado perpetuamente porque um dia saiu à rua de pistola em punho e matou um desgraçado que lhe apareceu numa esquina, convencido que assim eliminava os seus "inimigos". Estes "inimigos" entravam-lhe à noite no quarto pelo soalho (mandou depois colocar um chão de zinco) ou pelos interstícios do telhado, pegavam nele e levavam-no para um qualquer bordel de Istambul, onde o obrigavam a praticar "actos imorais" com rapazes e raparigas. Noite, após noite, após noite. Já muitos anos depois de internado, o Dr. Minor resolveu castrar-se para ver se os seus "inimigos" o deixavam em paz. Não deixaram.
Pois este Dr. Minor, diagnosticado como tendo dementia praecox,
agravada pelo traumatismo de ter assistido como médico militar a
algumas selvajarias da Guerra Civil americana, preso num asilo inglês,
durante décadas tornou-se o mais prolixo, preciso e rigoroso amador,
entre os muitos que apoiavam a redacção de uma das mais gigantescas
obras de erudição de sempre, o Oxford English Dictionary (OED).
Durante anos, sem saber qual era a origem das ajudas preciosas que
recebia - verbetes de palavras, apoiadas por citações quanto aos seus
diferentes significados e primeiro uso conhecido por escrito - o outro
doido, mas manso neste caso, o célebre editor do dicionário, James
Murray, que se abalançou à tarefa de registar em papel uma língua, o
inglês, cada vez tinha em maior consideração e utilidade as
contribuições que recebia dum tal Dr. Minor que escrevia de Broadmoor.
Mais tarde veio a descobrir que era um "lunático criminoso" que lhe
enviava os verbetes cuidadosamente redigidos, apoiados em leituras de
livros do século XVII e numa paixão pelas palavras sem paralelo. Murray
encontrou em Minor alguém que percebia muito bem o objectivo do
dicionário e se interessava não apenas pelos vocábulos raros e caídos em
desuso, ou por regionalismos ignorados, como muito lexicógrafos
amadores faziam, mas pelas palavras comuns e pelas finas gradações de
significado que continham e que era suposto ficarem registadas nesse
grande catálogo da língua.
Quando Murray veio a conhecer o Dr. Minor, uma história que correu mundo na época (primeira década do século XX) numa versão tablóide, tornou-se seu amigo e ajudou-o como pode a suportar melhor a sua doença e internamento. Ambos se correspondiam e durante vários anos, os contributos do Dr. Minor para o dicionário chegavam diariamente ao Scriptorium de Oxford onde uma equipa diligente ia arrumando em cacifos as muitas contribuições voluntárias que chegavam pelo correio de todo o lado. Mais de uma dezena de milhar de citações enviadas de Broadmoor pelo Dr. Minor fazem parte ainda hoje do OED .
(Escolha de António Bettencourt)
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SEMPER IDEM: 9 DE OUTUBRO DE 2008
VER A NOITE
Hoje ainda mais mentirosa que ontem, a velha silvery moon,
que já tanta coisa fez ao contrário que não sabe falar direito, que nos
engana com aquela luz branca batendo contra os loureiros, até junto às
pedras do lago, como se não fosse noite como devia ser. Como devia ser.
(Escolha de A.)
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© José Pacheco Pereira
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