ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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14.5.13
O GUIGNOL
No início do século XIX
apareceu em Lyon um nova versão do teatro de marionetes com uma
personagem central que deu o nome à cena: Guignol. Muitas das suas
personagens são idênticas às da Commedia dell"Arte italiana e incluem
variantes do Arlequim, do Polichinelo, uns criados oportunistas, uns
"burgueses", um militar façanhudo, um polícia e vários ladrões, uns
ingénuos e uns espertos, umas damas de virtude assanhada e outras de
costumes fáceis, etc., etc. A actividade mais popular no Guignol é a
pancadaria, sendo que a cabeça dos bonecos tem sempre que ser feita de
madeira dura para permitir a repetida cena de uma ou várias personagens
andarem com um pau a bater na cabeça uns dos outros. Se se quiser dizer
em português, o Guignol é uma fantochada.
A imagem do Guignol,
cujas variantes nacionais ainda estão nas minhas memórias de infância,
perseguiu-me toda a semana passada enquanto assistia ao espectáculo dado
pelas sucessivas declarações de Passos Coelho e Paulo Portas, os
arrufos e as declarações de amor perpétuo, os elogios da corte de
servidores, a admiração dos jornalistas e comentadores com a supina
inteligência de um e a incompetência "mediática" do outro, num jogo de
cena penoso de se ver, diante de milhões de pessoas a empobrecer,
desempregadas, ameaçadas nos seus direitos mais básicos, velhos sem
qualquer alternativa atirados aos cães da "convergência das pensões".
Era Guignol do mais perfeito: pauladas, tiradas retóricas, choros e arrependimentos, mentiras e maldades.
A
sequência rápida destas últimas semanas diz tudo sobre como estamos.
Comecemos pelo chumbo do Tribunal Constitucional, seguida das
declarações de fúria governamental, da cena de silêncio e ida a Belém
(porquê?), do despacho vingador de Vítor Gaspar, que continua em vigor e
ninguém aplica porque é impraticável; das fugas de informação de que as
reuniões do Conselho de Ministros são campos de batalha entre facções
do Governo, detalhadamente contadas ao Expresso, a Marques
Mendes, a Marcelo, a qualquer órgão de informação que queira saber; do
discurso autocastrador de Cavaco Silva no 25 de Abril; do plano
abstracto de "fomento industrial", anunciado com tanta pompa quanto o
vazio de concretização, por uma facção do Governo ligada ao
"crescimento"; da Assembleia informada de que terá direito a ver um
documento essencial para o futuro do país, "uns minutinhos antes" de
Bruxelas; da Assembleia informada de que pode discutir os créditos swap,
mas que o acesso ao relatório que iliba a secretária de Estado (e feito
sob sua direcção) permanece "confidencial"; do Documento de Estratégia
Orçamental apresentado pela outra facção do Governo, a do "rigor
orçamental", da ordem do imaginário (e aprovado por Portas que também o
acha "irrealista"), dos anúncios sobre anúncios que não anunciam nada,
do "será para depois de amanhã", "afinal os pormenores serão só para
depois", etc., etc. "Menus de propostas", uma ridícula denominação, de
vários tipos: anunciadas; anunciadas mas vetadas por outro ministro do
mesmo Governo; anunciadas mas "abertas" para se cumprir o ritual da
concertação social, e o novo ritual do "consenso"; propostas
"equacionadas"; propostas que quando dão torto passam a "hipóteses" de
trabalho (sendo que os números divulgados noutros documentos de
"poupanças" são as das "hipóteses" e não as das propostas...), propostas
em versão A e B e C, mudadas no espaço de uma semana; propostas
terroristas passadas em fugas à comunicação social para ver no que dá e
para depois vir o Governo congratular-se por afinal não ir fazer tão mal
aos cidadãos como tinha "soprado" a uma imprensa que publica tudo;
não-propostas e antipropostas da ordem da matéria negra e da
antimatéria. Alguém me sabe ou pode dizer, a uma semana do seu anúncio,
que medidas estão efectivamente decididas? Ninguém.
O "menu de
propostas" parece aqueles menus desleixados em que uma cruz significa
que o prato já não há, e depois, quando se pede outro, já não há os
ingredientes e é melhor escolher o que não se tinha escolhido; ou
aqueles menus dos restaurantes de luxo em que um palavreado destinado a épater le bourgeois,
como "emulsão de chouriço", "vinagrete de citrinos" ou "sardinha em seu
suco", ocultam pouco mais do que uma folha de alface com Aceto Balsamico de Modena
feito na Bairrada. E quanto aos preços do "menu" não há um único que
bata certo. Os do Documento de Estratégia Orçamental não são os mesmos
dos de Passos Coelho, nem os de Portas, nem os da contabilidade do "menu
de medidas", nem os do secretário de Estado Rosalino, nem os que são
dados nas reuniões de concertação social. São todos em milhares de
milhões de euros, mas nada bate certo e não é só nas previsões, é nos
números com que se parte para as previsões.
Depois há o uso cada
vez mais ofensivo da instabilidade, da chantagem e do medo para pôr as
pessoas na ordem. Veja-se o que se passa com os despedimentos da função
pública, que, se o Governo pudesse sem violação da lei e da
Constituição, seriam às dezenas de milhares, amanhã mesmo. Mas como não
pode, usa-se uma combinação de chantagem - as rescisões "por mútuo
acordo" - com a colocação de milhares de trabalhadores na absurda (e
ilegal) situação de manterem um vínculo ao Estado sem receberem um
tostão de salário. E como o Governo percebeu que talvez, mesmo apesar
dos inconvenientes pessoais da chamada "mobilidade especial", pudesse
haver um número significativo de funcionários que a pudessem aceitar em
desespero de causa, e como o objectivo, por detrás dessa tralha verbal
tecnocrática, é só despedir, vem agora dizer que "precisamos de
transformar o Sistema de Mobilidade Especial num novo Sistema de
Requalificação da Administração Pública, com o objectivo de promover a
requalificação dos trabalhadores em funções públicas, através de ações
de formação". Poderíamos dizer que teria havido um progresso, visto que se pretendia apenas "requalificar" os trabalhadores. Mas se é assim por que é que a frase seguinte é "...
e da introdução de um período máximo de 18 meses de permanência nessa
condição, pois não é justo para a pessoa, nem é boa administração do
Estado, perpetuar uma situação remuneratória que já não tem justificação
laboral", ou seja "requalificar" significa despedir? Estes jogos de palavras orwellianos são tão habituais neste Governo como respirar. E eles estão ofegantes.
É uma descrição dura e desapiedada a que faço? Ainda me parece mole e meiga, porque a dimensão de Guignol,
de engano, de dolo, de nos querer tomar por tolos, é compulsiva. Não é
para levar a sério, mas é muito sério. É muito sério porque disto tudo
fica um resíduo, um rasto, uma saliva marcando as paredes, uma babugem
qualquer, de medidas, ordens avulsas, leis e directivas, despachos que
destroem sem sentido a vida a muitas pessoas que estão a pagar um
tributo demasiado caro à vaidade do dr. Portas, ao profetismo ignorante
de Passos Coelho, à obstinação tecnocrática de Gaspar, ao servilismo dos
deputados do PSD e do CDS, e à cumplicidade de muitos interesses. Esse
tributo, que vai ser inútil porque dele não virá qualquer adquirido para
os problemas do país, torna este Guignol criminoso.
E não
me venham com desculpas, nada disto tem a ver com o facto de haver uma
coligação, nada disto mostra inteligência, mas apenas esperteza, nada
disto mostra qualquer preocupação com o país, mas apenas instinto de
sobrevivência eleitoral, nada disto mostra qualquer sentido de Estado
mas apenas truques de imagem mediáticos, nada disto tem a ver com
Portugal nem com os portugueses, mas com um sistema político corrompido
pela sua ruptura com o povo e a nação. Guignol por Guignol prefiro o verdadeiro.
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© José Pacheco Pereira
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