ABRUPTO

26.5.13


O GOSTO E O DESGOSTO



Muitas das semanas em que escrevo para o PÚBLICO tenho o dilema habitual de quem tem de escolher o assunto sobre o qual deve escrever e não aquele sobre o qual gostaria de escrever. Às vezes juntam-se os dois, o dever e o gosto, mas com a vida pública estagnada nas profundezas, mas agitada à superfície, o dever torna-se tão repetitivo e sombrio, que o gosto brilha ainda mais no escuro lá longe. Seja, faz parte dos tempos.

Na verdade, se escrevesse sobre o que me apetecia, escreveria sobre arquitectura romana como amador curioso, sobre a extrema-esquerda ou o PCP como historiador, ou sobre papéis antigos e em risco como caçador-recolector. Arquitectura romana? Sim, nos meus tempos de iPad, tenho seguido as aulas de Yale da professora Diana Kleiner sobre arquitectura romana e aprendido muito. Mandei vir o livro clássico sobre arquitectura imperial romana, o Ward-Perkins, e como estes cursos são a sério - 25 aulas de uma hora - aprende-se muito. De Roma à Atenas romana, de Ostia a Leptis Magna na Líbia, de Petra na Jordânia a Balbeek no mortífero Vale de Bekaa entre o Líbano e a Síria, a análise que Kleiner faz dos edifícios de todo o tipo, templos, armazéns, casas, palácios, lojas, túmulos, teatros, deu-me uma dimensão muito diferente do império romano muito para além dos textos que lera e da história. Agora tenho de ver com outros olhos muitos dos edifícios que vi mal e ir ver alguns que nos guias aparecem apenas como curiosidades. Excelente, nunca é tarde para aprender e o mundo seria muito mais aborrecido se não fosse assim.

Para além disso, faço nestes dias o meu book tour do livro sobre a imprensa da extrema-esquerda, e escrevo o próximo volume da biografia de Cunhal. Poderia, com facilidade e gosto, escrever sobre tudo isto, explicar a dificuldade que cada volume de Cunhal oferece, sempre diferentes entre si. Fazer uma "estória" da história. Antes de 1960, rareavam os depoimentos e os documentos é que permitiam a narração. Havia os manuscritos de Pato, com notas que permitiam reconstruir o interior das reuniões do topo do PCP, perante o silêncio dos participantes que ainda eram vivos. Agora, para os anos 60, há muitos depoimentos e testemunhos, mas há menos documentos acessíveis do núcleo duro do poder partidário. A PIDE não apreendeu nenhum grande arquivo central do PCP depois das prisões de 1961 e o PCP passou a mandar para fora de Portugal os papéis, que depois do 25 de Abril trouxe e fechou. E, como se sabe, a memória é perigosa sem os papéis. 

Poderia também escrever no PÚBLICO de como é interessante traçar a génese do Rumo à Vitória, a principal obra teórica de Cunhal, como o autor a preparou em Moscovo, com que apoio e com que fontes, e, como, por detrás da "linguagem de pau", aparece um Cunhal muito mais nacionalista do que se pensa, e um homem que dedicava mais atenção aos campos do que às fábricas. Ou, de como Cunhal, contrariamente ao que diziam os esquerdistas, se preocupou (e tentou) desencadear acções armadas praticamente desde que fugiu da cadeia e a contraciclo da URSS de Khrustchov. 

E há aquilo que, depreciativamente, alguns classificam do meu lado de coleccionador, lado para que durmo melhor, sendo que durmo bastante bem para todos os lados. E, aí, gostaria de falar daquilo que os bibliófilos compulsivos também fazem, da recolha semanal, do prazer de salvar um núcleo de documentos originais sobre a campanha eleitoral de Delgado, ou sobre a história do movimento estudantil nos anos 60, ou jornais do século XIX, uma espécie ameaçada, ou de como, num álbum de fotos do Carnaval na região oeste, nos anos 10 e 20 do século passado, me apareceu uma fotografia original do 5 de Outubro, ou de como num caderno de notas está uma muito interessante história de Salazar seminarista que nenhum dos seus biógrafos conhece. 

Ou seja, não faltam temas para escrever a gosto. Mas há os temas a desgosto, há "outra" semana, mais cruel e dura e conforme com os tempos. Na rua, as pessoas que me falam, e são cada vez mais, transmitem desespero, medo e muita raiva. Querem ter "voz", porque não a tem.

Uma completa desmotivação, uma forma elegante de referir uma invisível greve de zelo, atravessa o Estado e a sociedade, resultado da perda de tónus social que vem do empobrecimento. Funcionários públicos aviltados que quereriam fazer greve, mas sabem que vão ser as "chefias" a decidir quem vai para o Sistema de Requalificação da Administração Pública, nome orwelliano para o despedimento. 

Há quem perceba que, pela primeira vez, não tem dinheiro para pagar impostos e percebe que a partir de agora a vida vai ser um calvário do "outro lado da Lua". Há quem, reformado e idoso, receba uma carta ameaçadora de um senhorio pedindo cinco, dez vezes mais, com ameaça de o pôr na rua da sua habitação de há 30 anos. Isto já depois de ter actualizado a renda. Há quem, como toda a correnteza de pequenas lojas comerciais da Baixa de Lisboa, restaurantes, cafés, alfarrabistas, clubes centenários, vá para a rua nos próximos meses, porque os senhorios decidiram "fazer obras". O mais dramático disto tudo é que a lei está tão mal feita que vai acabar de certeza por ser corrigida e muitos aspectos mais gravosos serão suspensos, mas deixando para trás um rastro de sofrimento e insegurança escusada. 

À minha volta, no centro de Lisboa, vai fechar dentro de dias uma mercearia que aguentou várias décadas de "proximidade", ou seja, de fiado e vizinhança. Várias lojas de uma urbanização trendy, que foi prevista para restaurantes da moda, lojas de roupa fina, galerias de arte, agências de viagem e de real estate, já desapareceram há muito. Uma muito activa e numerosa família paquistanesa vai ocupando com os seus negócios, malas e géneros, quinquilharia e pequenos serviços, as lojas preparadas para serem gourmet e venderem apartamentos de luxo. Ironia das ironias foi a rápida mudança de uma agência imobiliária para pequena mercearia com um jovem que mal fala português vendendo aquilo que as lojas de conveniência indianas e árabes vendem: refrigerantes, bolachas, latas de conserva, fruta e, num armário fechado, umas versões bizarras de whisky e vodka de marcas desconhecidas. 

Por mim até está bem, dá-me mais jeito. Porém, a maioria das lojas permanece fechada, e, para além desta pequena Islamabad, desaparecerem as lojas de informática, as tabacarias, e há agora umas lojas brasileiras oferecendo depilação integral, umas pedras para colocar nas costas e uma loja de unhas e cabelos fulvos, também brasileira. Não vão durar muito.

Os meus interlocutores e amigos das outras classes mais de cima, chamemos-lhe assim, também não sabem para onde se virar. Alguns, patrões e trabalhadores em uníssono, contam-me como são ao mesmo tempo dramáticas e ridículas as reuniões da concertação social, onde, com a política demagógica de "acabar" com as chefias, se entregou as assessorias e consultadorias a uns jovens das jotas cuja incompetência é "épica" para tratar de questões sérias. 

A inutilidade de todo o esforço das pessoas, a quem milhares de milhões já foram retirados não se sabe para quê e com que resultados, leva a tudo que pareça autodefesa face ao poder. Muita gente tira o dinheiro dos bancos para o colocar no colchão, e, como se sabe, nos balcões mais populares, encenam-se mil e uma estratégias para dificultar tal retirada como se o dinheiro fosse do banco e um crime retirá-lo. Irá, a seu tempo, aparecer nas estatísticas. Gente pequena que tinha pequenas poupanças que sabe estarem agora inseguras. Para eles ser abaixo dos 100.000 euros ou acima é irrelevante: os bancos deixaram de ser fiáveis e o Governo parece ser capaz de tudo "para ir buscar dinheiro". 

Podia continuar sem limite, olhando à esquerda, direita, centro, para cima e para baixo. Compreendam que, neste contexto, eu quero pouco saber das habilidades de Portas, ou das sistemáticas fugas de informação destinadas a nos enganar, ou de um governo que parece estar nas vascas da agonia, mexendo-se sem nexo, mas com muito ruído, ou de uma agenda comunicacional que aceita sem reservas a linguagem, os temas e os limites do poder. E as distracções. 

Voltando a Roma, haverá um tempo em que a damnatio memoria apagará estas faces patéticas e fugazes. Só que depois de muitos estragos e depois de muito tempo. E custa.

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© José Pacheco Pereira
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