ABRUPTO

11.3.05


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (8ª série)



Alguma da liberdade que conquistei ao longo da vida veio dos livros que li.
Ainda hoje, e com muita regularidade, exilo-me em páginas onde o pensamento ou a realidade descrita superam o espaço onde me movo, seja no meio dos outros ou quando estou simplesmente comigo mesmo.
Existem quatro bibliotecas de referência na minha vida: a extinta biblioteca Calouste Gulbenkian de Fafe, lugar onde na infância ia buscar os livros que me obrigavam ler, pois não me conseguia relacionar com objectos que não me pertencessem e, nisso, os livros não eram excepção. Nessa idade apenas gostava dos livros que comprava ou que me ofereciam, os que eram só meus e que se não devolviam.

A biblioteca municipal do Porto, em frente ao jardim de São Lázaro, onde tardes sem conta me dediquei à escrita e à leitura de poesia para fugir a um enfadonho curso de Direito que então frequentava, aprofundando o amor que ganhei às palavras de Eugénio e de Al Berto.

A Biblioteca da Fundação Gulbenkian em Lisboa, onde conheci um dos melhores significados da leitura e do silêncio, da pacificação e do misticismo do tempo, por ser um local belíssimo, calmo, onde a leitura se espraiava para lá da sala de leitura com vista para os jardins. Na Gulbenkian, as coisas aconteciam-me em catadupa: a leitura livre e quase casual dos livros, as sucessivas visitas aos quadros de Eloy e de Almada, pelo menos uma vez por mês, tal e qual como se fossem gente, e o almoço encantador na cantina da Fundação em horas mortas para que as poucas pessoas que restavam na sala pudessem significar.

A Biblioteca Nacional, contudo, teve e tem um enorme fascínio. A Nacional é o meu espaço de uma leitura de confronto, de aprendizagem, de estatuto. Quando leio lá o que quer que seja, tenho a sensação de estar a fazer algo de extraordinária importância, fruto do trabalho e da dedicação seríssima, não só do autor, mas de toda aquela gente que guarda religiosamente o espólio impresso da nação.
Fiz-me sociólogo na Biblioteca Nacional. Saía dos Barcos do Barreiro às 7 da manhã para, às 9, estar de café tomado e alma pronta, na porta da B.N.. Há uns meses regressei lá para pesquisar uma bibliografia sobre as Rodas dos Expostos e tive que me reinscrever como leitor. Foram à minha ficha e perguntaram-me se eu era estudante de Sociologia, se morava no Barreiro, etc. Confesso que foi um choque bom ouvir falar outra vez de tudo aquilo. Eu que já sou professor de sociologia, que entretanto já morei uns anos em Lisboa e que há mais anos ainda regressei a Fafe; Eu que já perdi cerca de um terço do cabelo que tinha na fotografia da primeira inscrição e que devo pesar uns quinze quilos a mais. Eu que já sou pai de dois filhos, um dos quais já quase lê. Mas sobretudo o eu que queimou as fitas todas que tinha para queimar e que olha para aquela casa com uma saudade tremenda de quando lá passava as manhãs ou as tardes, de quando esperava ansiosamente por saber que raio de homem seria no futuro, enfim, um eu tão perdidamente apaixonado pelos dias que se preenchiam com a atribulada vida de estudante entre a leitura, a aprendizagem e a convivência sem horas, nem receios ou limitações. Voltar à sala de leitura e aos ficheiros da Biblioteca Nacional é voltar a uma parte de mim que não morre, que se não deteriora, uma parte tão bem guardada como os livros que lá li e, sobre os quais, outros farão o mesmo vida adiante, muito depois de nós, da nossa vida, da nossa única e magnífica vida por esses lugares!

(Pompeu Martins)

*

Nascido em casa sem livros, a minha dívida perante as carrinhas da FG é enorme e gostaria também de a deixar aqui registada.

Aproveito para deixar nota da total disfuncionalidade da biblioteca do Iscef em que me formei, na segunda metade dos anos sessenta, mau grado a simpatia eficaz do velho Senhor Estêvão.

E, já agora, para registar a boa surpresa , para não dizer o choque ( não tecnológico) que experimentei, poucos anos volvidos na Universidade americana em que fiz o MBA e constatei que a biblioteca era o edifício mais imponente de todo o campus. Já deslumbrado com quase um milhão de volumes ao alcance físico da minha mão, das 7 às 24h, obtive a informação de que na outra Universidade da cidade, o número se aproximava dos dois milhões e funcionava 24horas por dia. E que estava também à nossa disposição, porque, sendo do Estado, estava à disposição de toda a Comunidade…

(Amf)

*

Fascinada. Fascinada, é a palavra que transmite todo este encantamento na leitura das viagens pela bibliotecas. E que me fez partir à descoberta da resposta para esta interrogação, colocada interiormente: Como é que nasceu a minha viagem?
E dei comigo, pequenita e interrogativa a olhar para as lombadas dos livros do meu pai, livros alinhados nas estantes sem ordem nem sequência, livros que já eram velhos era eu ainda tão novinha, livros que na altura só falavam comigo pelo cheiro do papel e pelas cores dos titulos....E dei ainda comigo e ainda pequenita a soletrar esses títulos, sem saber ainda, que pouco mais tarde os devoraria numa velocidade vertiginosa de leitura, às escondidas porque o pai não deixava que eu lesse O Menino de Engenho, Usina, Capitães de Areia...à mistura, já mais velha, com Pitigrilli que por lá também andava. E dei comigo, já com sorrisos na alma, a lembrar-me das horas que passei, sentada no chão, a ver, fascículo a fascículo, A Selva, do Ferreira de Castro e a ficar chocada, sem perceber porquê, porque a minha mãe destacava esta e aquela gravura e mandava emoldurar para pendurar nas paredes do corredor. E, ao correr desta escrita, ainda dou comigo a recordar os folhetins literários que eram publicados diariamente no Diário de Notícias, jornal lá de casa, onde a aventura e os romances se misturavam aos folhetins de cordel, dramalhões de faca na liga e lágrimas abundantes, que nos eram colocados por baixo da porta das traseiras uma vez por semana, por um preço que já em le lembro....
Ainda conservo a quase totalidade da biblioteca do meu pai, com livros incompletos que o tempo lhes levou as folhas...Juntei-lhes, qual sal e pimenta da minha vida, os que encontro nos alfarrabistas daqui e dali e dos que vou comprando pelas livrarias, apesar de terem preços pecaminosos...

(Fernanda Maria Gouveia)

(url)


INTENDÊNCIA

Continua o preenchimento da bibliografia dos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO, que vai demorar séculos, mas anda...

(url)


EARLY MORNING BLOGS 447

A DON LUIS DE GÓNGORA


¿Qué firme arquitectura se levanta
del paisaje, si urgente de belleza,
ordenada, y penetra en la certeza
del aire, sin furor y la suplanta?

Las líneas graves van. Mas de su planta
brota la curva, comba su justeza
en la cima, y respeta la corteza
intacta, cárcel para pompa tanta.

El alto cielo luces meditadas
reparte en ritmos de ponientes cultos,
que sumos logran su mandato recto.

Sus matices sin iris las moradas
del aire rinden al vibrar, ocultos,
y el acorde total clama perfecto.


(Vicente Aleixandre)

*

Bom dia!

(url)


SINAIS

Vai ser interessante ver como o governo do PS vai organizar a sua “central de comunicação” e tentar alargar o seu espaço de tranquilidade na comunicação social. Alguns preliminares já são visíveis para quem esteja atento aos sinais.

A ofensiva contra os comentadores políticos que lhes podem ser hostis ou criar problemas já está em curso, só que não é feita da forma grosseira como o governo Santana a fez, mas sim mais sofisticada, baseada em critérios “jornalísticos” ou “institucionais”. Já se nota poder novo no ar...

(url)

10.3.05


BIBLIOGRAFIA SISTEMÁTICA SOBRE O PCP, OS MOVIMENTOS COMUNISTAS E RADICAIS E A OPOSIÇÃO POLÍTICA E SOCIAL ATÉ 25 DE ABRIL DE 1974 (Em organização)

nos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO

Ainda de uma forma experimental vou começar a organizar uma bibliografia sistemática sobre o PCP, o movimento comunista e radical (incluindo a extrema-esquerda), e a oposição política e social à ditadura. Trata-se de ir progressivamente actualizando todo um trabalho bibliográfico que foi iniciado nos Estudos sobre o Comunismo (em papel), na Análise Social e no Boletim de Estudos Operários, e depois retomado nos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO. Dado que se trata de lidar com centenas de referências bibliográficas e para não privar os interessados de tudo aquilo que possa de imediato ser inserido nesta bibliografia, ela será continuamente alimentada por módulos.

São bem-vindas todas as colaborações para este trabalho, pela sua própria natureza muito complexo.

(url)


INTENDÊNCIA

Actualizados os ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO.

Como as primeiras discussões sobre o novo governo se vão concentrar na política externa, coloquei um artigo publicado no Público, em Novembro de 2002, intitulado "Os "conselhos" europeus aos EUA" no VERITAS FILIA TEMPORIS. O artigo foi escrito a pensar em posições como as de Mário Soares e de Freitas do Amaral.

(url)


A QUADRATURA DO CÍRCULO

O programa mais conservador desta nossa terra, que não quer mudar, nem quer ter novidades, mas não pode infelizmente impedir a terra de mudar à sua volta nem o PS de ter ido para o governo. E lá se vai o José Magalhães para uma pasta incompatível com a discussão. Boa sorte! Virá o Jorge Coelho na sua vez para quatro anos de inferno, mas ele aguenta bem. Seja bem-vindo!

(url)


COISAS SIMPLES


Kuzma Petrov-Vodkin

(url)


EARLY MORNING BLOGS 446

ROMANCE DE DOÑA ALDA


En París está doña Alda, la esposa de don Roldán,
trescientas damas con ella para bien la acompañar:
todas visten un vestido, todas calzan un calzar,
todas comen a una mesa, todas comían de un pan.
Las ciento hilaban el oro, las ciento tejen cendal,
ciento tañen instrumentos para a doña Alda alegrar.
Al son de los instrumentos doña Alda adormido se ha;
ensoñado había un sueño, un sueño de gran pesar.
Despertó despavorida con un dolor sin igual,
los gritos daba tan grandes se oían en la ciudad.
—¿Qué es aquesto, mi señora qué es el que os hizo mal?
—Un sueño soñé, doncellas, que me ha dado gran pesar:
que me veía en un monte en un desierto lugar:
y de so los montes altos un azor vide volar;
tras dél viene una aguililla que lo ahincaba muy mal.
El azor con grande cuita metióse so mi brial,
el águila con gran ira de allí lo iba a sacar;
con las uñas lo despluma, con el pico lo deshace.
Allí habló su camarera, bien oiréis lo que dirá:
—Aquese sueño, señora, bien os lo entiendo soltar:
el azor es vuestro esposo que de España viene ya,
el águila sedes vos, con la cual ha de casar,
y aquel monte era la iglesia, donde os han de velar.
—Si es así, mi camarera, bien te lo entiendo pagar.
Otro día de mañana cartas de lejos le traen:
tintas venían de fuera, de dentro escritas con sangre,
que su Roldán era muerto en la caza de Roncesvalles.
Cuando tal oyó doña Alda muerta en el suelo se cae.

*

Bom dia!

(url)

9.3.05


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (7ª série)

Ao ver uma imagem de uma carrinha das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian no seu blogue, explodi em memórias e, ao correr da tecla, quero declarar que muito de quem sou culturalmente, o devo a essa lata com rodas que ia visitar a minha terra, uma pequena vila sem direito a concelho a dez quilómetros de Coimbra, onde nos anos sessenta tive o direito a formar-me, graças aos conselhos de um notável bibliotecário-motorista, cujo nome não registei, mas que pegando num miúdo de dez anos me orientou bibliograficamente até à minha entrada na Universidade. Graças a ele, formei-me em marxismo quase clandestinamente logo aos catorze anos, o que foi uma adequada vacina, e talvez uma desilusão para o formador, mas agradeço, sobretudo, a perspectiva estética que me deu, sobretudo o Arrabal e a fundura daquele magnífico boletim inspirado por António Quadros que me trouxe a filosofia portuguesa, o Leonardo Coimbra, o Álvaro Ribeiro e o Agostinho da Silva. E eis como o meu bibliotecário, misto de surrealista e marxista, produziu em mim uma complexidade formativa deslumbrante, bem como o acesso a um mundo de sociedade aberta que as janelas e as portas fechadas do salazarismo elevavam à esquizofrenia. Bendita biblioteca que a tantos fez este bem de nos dar a liberdade de escolher. Bem gostaria de saber o nome de tal benfeitor, para o homenagear. Se alguém me souber dizer quem era esse empregado da Gulbenkian que percorria a zona rural de Coimbra nos anos sessenta, agradecia.

(José Adelino Maltez)

*

Não feche o assunto “bibliotecas” sem lembrar as bibliotecas de associações culturais e recreativas do Barreiro nos anos 40: “Franceses”, Penicheiros” e “ Fut. Clube Barreirense”.

Repositórios públicos de livros de fronteira, entre o que era permissível ler e o que era proibido, cheios de “coleção azul”, de Blasco Ybanez, Emílio Salgari, mas também detentores de livros guardados, que só eram acessiveis a poucos “iniciados” ; estantes secretas (o meu tio Armando, bibliotecário dos “Franceses” e serralheiro extraordinário, tinha feiro uma dupla, com rolamentos, que podia abrir-se e tinha, no “lado falso”, Marx, Lenine, Engels, Jorge Amado – “Os subterrâneos da Liberdade” – John dos Passos, Bakunine, os que mais vêm à memória).

Nessas bibliotecas, o “proletariado” discutia, lia, conspirava.

Foi na do Barreirense que conheci Julio Verne; foi na dos “Franceses” que li “Estes dias tumultuosos”, do Pierre Van der Passen (onde paras, livro?!) e “O Processo Histórico” e a História Universal do César Cantu em 20 volumes, que haveria de adquirir em Cascais, num alfarrabista, há 15 anos, por 8 contos!

Eram salas grandes, com mesas e cadeiras de madeira envernizada, incómodas e ingénuas como nós.Que saudades!

Parafraseando Eça “Eramos assim, em 1948!”, antes do relatório Kruschev e da repressão na Hungria.

Quantas horas e quantas saudades da emoção, da sinceridade ingénua, da indignação verdadeira, alimentada diariamente pelos desfiles diários da cavalaria da GNR, com o capitão Homero de Matos à frente, de monóculo e “pingalim”… Foi lá que criei este amor perene pelos livros e pela leitura.

(Luis)

*

A minha "biblioteca" era uma livraria na Av. de Roma, em Lisboa, a Livraria Barata. Na altura, era um espaço minúsculo, com uma secção infantil de duas ou três prateleiras, tutelada pelo Sr. Barata e pelo Sr. Afonso.

Lembro-me de aí ter passado incontáveis fins de tarde a ler, acocorada a um canto. Sempre que exagerava no tempo de leitura, o Sr. Afonso vinha "apanhar-me" e pôr-me na rua.

Mais circunspecto e sempre triste, o Sr. Barata fingia não me ver.

Mas nada me intimidava e todos os dias voltava, para continuar a ler o livro na página onde o deixara.

Hoje, já quarentona, sempre que encontro o Sr. Afonso na rua me dá vontade de rir: ele nem sonha, certamente, que foi uma das figuras mais temidas da minha infância.

(GA)

(url)


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: PARA TERMINAR COM A LÍNGUA ALEMÃ E EDUARDO PRADO COELHO

Esta indicação de José Carlos Santos do texto The Awful German Language de Mark Twain.

*

Hoje deparei com um conjunto de comentários glosando o mérito e o demérito das observações de EPC a propósito da língua alemã. Sem desprimor pela qualidade opinativa dos leitores interrogo-me sobre o interesse do tema e sobre o que a ele se pode acrescentar. Talvez lembrar que sendo a coerência e a permanência da opinião geralmente saudada como traço de carácter, em não menor medida o deve ser a flexibilidade e a capacidade regeneradora daqueles que conservam coragem e fulgor para mudar de opinião quando o erro ou a precariedade se tornam evidentes.

(GC)

*

A língua alemã - que EPC não conhece - não produziu apenas cânticos militares ou vozes de comando. Aliás, quem provar Zarah Leander, não voltará mais às"lamechisses" cançoneteiras das Piaf, dos Aznavour ou dos Lama. A língua francesa é pleno artifício, sacrificando a inteligência e o raciocínio à forma.
O francês compraz-se com a sonoridade, o embelezamento e a graça. É, decididamente, uma excelente língua para salões literários ou convívios de senhoras.
Continuamos ainda a pagar pesada factura da absoluta rendição de sucessivas gerações portuguesas às letras francesas. Um dos mais persistentes problemas da inautencidade e inutilidade da universidade portuguesa será uma das muitas sequelas dessa hegemonia que a cultura francesa deteve. Quem ouve hoje a música francesa, quem conhece os autores franceses vivos, quem vê cinema francês.
Encurralados num autismo lancinante, os francófilos esbracejam pateticamente num mundo dominado pelo inglês e pelo castelhano. Quanto ao alemão, transformou-se em língua incontornável para os estudos filosóficos e politológicos. Longe vai o "século de Sartre", muito mais longe ainda os séculos de Voltaire e Hugo.

(Mig ACBF)

(url)


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: ALEXANDRE HERCULANO, O ALEMÃO E O INGLÊS

Vasco Graça Moura recordou-me nas Lendas e Narrativas "as páginas em que o A. Herculano refere as características do inglês, do alemão (1 e 2) e do francês (3 e 4)..." "a propósito de uma viagem de barco, de Jersey a também não sei onde, tem uma página "notável" comparando as belezas do alemão com as perfídias do inglês..."

Aqui fica um pequeno fragmento de "De Jersey a Granville"



(url)


UMA OBSERVAÇÃO SOBRE A MEMÓRIA DAS BIBLIOTECAS

Ninguém, em tantos textos e memórias, se referiu à Biblioteca Nacional que parece não suscitar a nostalgia biográfica e afectiva de muitas outras bilbiotecas...

(url)


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (6ª série)

Ver o comentário de Desidério Murcho a estas "memórias", lembrado por Nuno Coelho.

*

Curioso como nos esquecemos de algumas pequenas coisas que nos ajudaram a crescer. Aqui fica um pequeno relato da minha experiência como utente da Biblioteca Itinerante Calouste Gulbenkian.

Uma visita por mês era o que a minha vila tinha direito. Para uma miúda da beira interior com uma enorme curiosidade e muita vontade de ler, a carrinha da Gulbenkian era a melhor coisa do mundo!

Às sete da noite lá estava ela, a carrinha Citroën, serie H, cinzenta, de chapa canelada, com taipais. Interessante como a memória funciona, lembro-me perfeitamente da primeira vez que lá fui com a minha mãe, devia ter cinco anos, também ela fora frequentadora assídua da carrinha da Gulbenkian, nos seus tempos de escola.

A carrinha era conduzida por dois senhores, que estacionavam sempre no mesmo sitio, junto ao restaurante 'O Julio', quando chegavam fosse Verão ou Inverno já a canalha se acotevala para ver quem ficava a frente na bicha (era bicha que se dizia!). Pois isso significava ser o primeiro a entrar e a descobrir quais eram os 'novos' livros. O ritual era igual todos os meses, a janela da porta direita abria-se e um dos senhores pedia-nos o cartão e os livros que requisitamos no mês passado. A carrinha no interior estava forrada a livros do chão ao tecto, ao fundo havia uma bancada para se preencher a referência dos livros requisitados no cartãozinho previamente fornecido pelo funcionário da Gulbenkian. Uma vez lá dentro era o ver se te havias, porque não tinha muito tempo para procurar os três livros (máximo possível), e depois havia o condutor/bibliotecário, que mais parecia o polícia das fitas adesivas! Uma das coisas que me irritava era que só podia levar livros com fita adesiva verde, e está claro os de cor laranja ou, pior ainda, vermelha, os das prateleiras de cima eram precisamente os que queria levar. Muitos foram os livros que li durante os 12 anos que religiosamente visitei a carrinha da Gulbenkian.
Recordo-me agora particularmente do livro 'Beatriz e o Plátano' de Ilse Losa.
Os meus pais incutiram-me o gosto pela leitura mas foi definitivamente a carrinha da Gulbenkian que ajudou a cultivá-lo. A carrinha não só abriu as portas para o mundo da leitura mas criou também em mim um sentido de responsabilidade, e civismo e orgulho, pois quando se entregavam os livros a tempo e horas e estimados, podia eventualmete aceder-se aos tão desejados livros 'laranja' e 'vermelhos'.

Mais tarde na minha vida de estudante visitei muitas bibliotecas; a Biblioteca Nacional com o seu hipnotisante painel de Tapeçaria de Portalegre de Guilherme Camarinha, a desactualizada Bibiloteca do Palácio das Galveias, no Campo Pequeno e a mãe de todas as bibliotecas para uma estudante de Arte em Lisboa, a Gulbenkian. Mas o cocktail de sentimentos causado pela carrinha da Gulbenkian, esse até hoje nunca foi superado.
É com nostalgia que do alto dos meus 28 anos penso neste serviço que ajudou a fazer de mim o que sou hoje. Grata ao Sr. Gulbenkian e a quem iniciou e pôs em prática este serviço.

(Sofia Gonçalves)

*

Tive o previlégio de nascer no seio de uma família onde os livros - e a leitura - eram centrais no nosso quotidiano familiar. O meu pai, funcionário publico, de poucas posses, tinha a paixão pelos livros e tudo fez para partilhar esse amor. Quer eu, quer o meu irmão, fomos brindados com livros, desde sempre.
A leitura tem sido sempre marcante na minha vida. Quase morri no preciso momento em que, aos cinco anos, descobri que sabia ler. Nesse dia, acordei com febre e fiquei na cama, com direito a que a minha mãe me lesse e contasse todas as histórias que eu já sabia de cor. Sempre que adoeciamos, era certo que, à hora de almoço, o pai trazia livros novos para nos ajudar a passar o tempo. Com esse entusiasmo, consegui soletrar o titulo de um livro... mas só me restou o tempo eminente para gritar «oh, mãe, eu leio...»! Fiquei roxa e perdi os sentidos. Diziam os meus pais que o médico, chamado à pressa, diagnosticou uma paragem cardíaca, levada pela febre e pela emoção.
Naquela época, lia-se tudo aquilo que nos aparecia à frente. Numa cidade de província, sem meios para partir para férias, o verão transformava-se no território de todos os perigos! No calor da noite, lia-se na cama até nascer o dia. Foi assim que desbravei a biblioteca do pai, sem grandes interdições. No entanto, o peso da época fazia com que eu e o meu irmão fossemos mestres a desenvolver estratégias de clandestinidade, na forma como escondíamos algumas leituras, um do outro e dos próprios pais. Foi assim que, pelos meus treze anos, guardei só para mim, a leitura secreta de «O Amante de Lady Chattterley» de DH Lawrence ou «A Romana» de Morávia.
Outro marco interessante deste percurso foi sem dúvida as caminhadas entusiasmantes para a Biblioteca do Museu Tavares Proença, em Castelo Branco. Lembro sobretudo as vezes que lá fui e que me via forçada a regressar acompanhada da minha mãe, para poder requisitar obras de Camilo ou de Eça. Embora já a frequentar os 3º ou 4º anos do liceu, a minha idade não permitia algumas aventuras.
Não posso ainda deixar de salientar a importância das livrarias, no tempo em que, também elas, tinham umas trazeiras recônditas onde se guardavam os livros proibidos, apenas disponíveis para clientes especiais. Em Castelo Branco, a Livraria do Sr. Feijão era um local de eleição. Devo a essas leituras o bom domínio da língua francesa, dado que muitos desses livros não se publicavam em Portugal.
E que dizer da galáxia de emoções que nos avassalam quando chega o momento de nos confrontarmos com a morte de uma biblioteca! Dois anos após a morte dos pais, tive de desfazer a casa e vi-me assim confrontada com a morte de um entidade única - a biblioteca dá casa de meus pais. Nela residia o designio de uma unicidade afectiva, que respirava um espaço e um tempo irrepetíveis. Uma biblioteca familiar é sempre uma caixa de surpresas e um esconderijo de outras memórias: anotações, papéis com citações, bilhetes de cinema, cartas de amor, postais de viagens, panfletos clandestinos, folhas secas, fotografias. Arrumados em caixotes, todos os livros vieram para a minha casa em Lisboa, onde talvez possam ganhar outra vida. Vive-se e morre-se nestas andanças! Nós somos o que fica das leituras sôfregas desse tempo... sem tempo!

(Júlia Matos Silva)

*

Existem bibliotecas marcantes para qualquer um de nós, no meu caso o mundo das letras abriu-se com a biblioteca municipal de Lagos e com as carrinhas itenerantes de marca – julgo – Citroen que passavam junto á minha casa, naquela que eu chamava a minha rua. A banda desenhada com que aí contactei era fabulosa, muito para além das edições Mirim brasileiras. À medida que o tempo passava fui perdendo os desenhos e conquistando as letras, a tal ponto que fiquei fascinado com a Filosofia. Foi assim que cheguei à Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, e aí á Biblioteca Universal João Paulo II. Esta, apesar de ser fruto, fundamentalmente, das necessidades bibliográficas que as faculdades que a compõem, e dos seus consequentes corpos docentes, faz jus à designação de Biblioteca Universal, especialmente nos domínios da Filosofia, da Teologia e do Direito. É sem dúvida um elemento preponderante para a escolha da instituição de ensino que se pretende frequentar, dadas as magníficas instalações e qualidade do seu conteúdo. É sem dúvida um exemplo que se afirma pela quantidade de investigadores, professores e alunos das mais variadas proveniências, exteriores à Católica, que a ela recorrem.

(Luis Loia)

*

Há referências muito fortes à "lembrança" nos posts dos seus leitores. Lembrança da infância e tentativa de recuperação de memórias idas. Como se hoje a azafama diária não permitisse a frequência de bibliotecas. O António Lobo Antunes agradeçe mesmo o tempo que os leitores lhe dedicam, depois de trabalho, transportes e lida da casa. Embora tal seja mais fazível na adolescência, quando as tardes são livres e se pode contar com os longos meses de férias de verão para se esperar e procurar, vejo que algumas bibliotecas estão repletas de gente aos fins-de-semana. É o caso da belíssima Biblioteca Almeida Garrett sita nos jardins do Palácio de Cristal no Porto. Casa de livros, revistas, filmes e CD's, as duas últimas classes ainda um pouco depauperadas, tem também uma excelente biblioteca para crianças, onde o barulho é permitido e o convívio entre adultos e crianças é estimulado.

Uma nota também para a biblioteca de arte do Museu de Serralves, onde nos perdemos, aprendemos e surpreendemos com livros e paisagem.

(PPM)

(url)


INTENDÊNCIA

Actualizada a nota O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: A LÍNGUA ALEMÃ E EDUARDO PRADO COELHO.

Actualizados os ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO.

(url)


GRANDES NOMES: "O POSSO [sic] INESGOTÁVEL DE PASPALHICES"

Ou seja, eu, segundo um sr. José Da Silva que enviou um comentário ao Correio da Manhã do seguinte teor:

"Este indivíduo excede-se em despautérios e inconsistência. O pior é q de quando em vez, lá temos q ouvi-lo. Qdo, por falta de protagonismo é repelido ao segundo plano, logo temos uma investida, mostrando q é um posso inesgotável de paspalhices. Fazia um grande bem a nação, se se quedasse pelo silêncio."

(url)

8.3.05


AR PURO


A. Dürer

(url)


INTENDÊNCIA

Actualizados os ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO e inseridos na VERITAS FILIA TEMPORIS alguns textos da série A Lagartixa e o Jacaré, publicada na Sábado, sobre as eleições, o PP e o BE, a morte da Irmã Lúcia, e o comportamento dos jornais, entre outras coisas.

Entre hoje e amanhã publicarei uma nova série, a última, com novas Memórias de Biliotecas.

(url)


EARLY MORNING BLOGS 445


¡Cal as nubes no espazo sin límites
errantes voltexan!
Unhas son brancas,
outras son negras;
unhas, pombas sin fel me parecen,
despiden outras
luz de centela...

Sopran ventos contrarios na altura
i á desbandada,
van levándoas sin orden nin tino,
nin en sei pra onde,
nin sei por que causa.

Van levándoas, cal levan os anos
os nosos ensoños
i a nosa esperanza.

(Rosalia de Castro)

*

Bom dia!

(url)


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: A LÍNGUA ALEMÃ E EDUARDO PRADO COELHO

Eduardo Prado Coelho, no Clube dos Jornalistas, RTP2, dissertou sobre a língua alemã: língua marcial (sem a graça, a leveza, a elegância do Francês ou do Italiano), ao ouvi-la ouvem-se as botas e os tanques vêm atrás... Como é possível, meu Deus! (em momentos destes, quase nos tornamos crentes), como é possivel que alguém como ele diga tais coisas? Talvez ele não seja como ele... Os Alemães não escrevem cartas de amor? Como se pode pensar que uma língua humana (que, portanto, diz as coisas) não é capaz de exprimir a delicadeza? Que pensar então de Vogelweide, de Goethe, de Heine, Schiller, Lessing, Celan, Thomas Mann, Brecht, etc. Por que escolheu Schubert poemas de Goethe? E Grieg? E aqueles textos que têm a bota em passo-de-ganso, têm os Panzer, a brutalidade germânica, mas como realidades negadas?...

(Carlos David Botelho)

*
Não ouvi a dissertação de E.P.C. sobre a língua alemã mas li o comentário de Carlos Botelho e, a ser verdade, também eu me insurjo veementemente: como é possível alguém com as responsabilidades do dito professor fazer afirmação tão facciosa e esterotipada? Concordo plenamente com os argumentos aduzidos a favor da musicalidade do alemão e penso também que o achar uma língua "bonita" ou "feia" é uma questão de gosto pessoal. O som cantante do italiano, por exemplo, vem-lhe da profusão de vogais, própria das línguas românicas, em contraste com as germânicas, em que abundam as consoantes. Mas o que mais me impressiona é o que a afirmação de E.P.C. revela, o que parece estar subjacente à referència às "botas"e aos "tanques" citados por C.B. E sem querer cair num processo de intenção, veio-me à memória os comentários várias vezes feitos por alunos forçados por razões de currículo escolar a aprender alemão: "é a línguas dos nazis". Será que para E.P.C. o povo alemão ainda é o povo dos nazis?
(Maria Emília Malta)

*
Pode discordar-se do que diz Eduardo Prado Coelho e pode gostar-se imenso da língua alemão, utilizá-la em casa para as canções de embalar que se murmuram enquanto se deitam os bebés ; para dizer coisas dulcíssimas às namoradas, quando estamos deitados na relva dos Jerónimos, à frente do Tejo ; para agradecer com ternura, no final dos almoços de domingo que já não há, às nossas avós que nos prepararam o cozido tradicional ; para saudar, gentilmente, os nossos chefes (para não dizer líderes!), à chegada ao escritório, estremunhados ainda antes do café matinal ; ou simplesmente, como parece implicar Prado Coelho, para dar ordens naquela forma martelada a que nos habituaram os filmes sobre os oficiais alemães. Ou pode não se gostar nada dela, preferir-se a graça musical do italiano, a modularidade cartesiana do francês, a clareza sintética do inglês – e porque não a estranheza gutural do chinês e do japonês ; e já agora a leveza incompreensível do hindu. Pode até gostar-se do catalão ou do basco ; ou preferir-se um dos muitos dialectos que ainda se falam por essa Europa fora: o mirandês que desaparece, o «breton» que quase já desapareceu...

Agora, o que me parece é que estas críticas a Eduardo Prado Coelho, com o tom que têm (Eduardo é faccioso ; Eduardo é destemperado ; Eduardo é estereotipado ; talvez Eduardo não seja como Eduardo – embora eu não perceba bem o que se quer dizer com isto!) esquecem que, mal ou bem, ele tem o direito de não gostar do alemão (que digo eu? ele tem o direito de detestar o alemão) e de ver, por detrás das palavras de amor, as botas e os tanques, como outros têm o direito de ver nessa língua principalmente as palavras de Schiller ou de Rilke

Sempre que nos indignamos com o facto de outrem exprimir uma opinião – o que é diferente de nos indignarmos com as opiniões expressas – restringimos o nosso espaço de liberdade. É a «political correcteness» que desponta por detrás de bem pensantes opiniões.

Isto posto, também eu não concordo com a opinião de Eduardo Prado Coelho a propósito do alemão. Recomendo-lhe, quando à musicalidade, qualquer boa colectânea de «lieder» de Schubert: um qualquer disco com Dietrich-Fischer Dieskau a cantar deve ser suficiente. Mas isso é outro problema.
(José Pedro Pessoa e Costa)

(url)

7.3.05


BIBLIOFILIA: NÃO HÁ LIVROS PACÍFICOS

Este parece um normal livro sobre campismo, mas as actividades de “ar livre” foram fomentadas e popularizadas em Portugal pelos comunistas e pela oposição que lhe era próxima. Militantes como Joaquim Campino tiveram papel destacado na história associativa do campismo, e os acampamentos eram um local privilegiado para realizar encontros políticos clandestinos.

Este volume da célebre Biblioteca Cosmos, organizada por Bento de Jesus Caraça, é um exemplo dessa influência. Escrito por Mário Mendes de Moura, estudante de agronomia, depois engenheiro, militante do MUDJ, membro da sua Comissão Central, preso em 1948, posteriormente exilado na Venezuela e no Brasil, e actualmente editor, não escondia no seu prefácio a sua preocupação com os “trabalhadores”. O mesmo tipo de interesses era partilhado pelo ilustrador Daniel Morais, ele próprio também membro do MUDJ e preso na mesma altura de Mário Moura, cujas ilustrações “citam” a linguagem gráfica das publicações comunistas.

(Nota mais detalhada sobre o campismo e a oposição está nos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO.)

(url)


VASCO GRAÇA MOURA: EX-LIBRIS



(apresentação para um livro de depoimentos sobre livros que ainda não saiu e não sei se chegará a sair...)

Em 28 de Agosto de 1819, Keats escrevia a sua irmã Fanny, “dêem-me livros, fruta, vinho francês e bom tempo e uma musiquinha lá fora, tocada por alguém que eu não conheça”... Francamente, eu prefiro este princípio de prazer, ligado ao trato com os livros, a uma série de profundas considerações sobre a sua importância e utilidade, ou à especulação sobre o livro como símbolo onde se inscreve a imagem do mundo, que, da Bíblia a Jorge Luís Borges, passando por Ernst Robert Curtius, determina muita da nossa ontologia na matéria. Que têm a sua importância, sim, mas nós não temos de passar a vida a fazer congeminações simbólicas.
Dêem-me livros, ameixas pretas secas, um vinhito português (do Douro, claro!) e uma musiquinha. Não estou preocupado com o tempo que faz e na música há muitas opções aceitáveis para o meu hedonismo egoísta e concentrado quando pego num livro. Mas é bom que haja uma poltrona para quem lê se espolinhar devidamente. E, no Inverno, uma boa lareira. E, na cama, uma boa almofada e um bom candeeiro.

Há também outros prazeres, tácteis em certas encadernações e qualidades encorpadas das folhas e em certos livros, sobretudo antigos, impressos em papel de linho, cujas páginas parecem crepitar ao serem percorridas nos bordos do corte com um toque do polegar; visuais, ligados ao formato, ao aspecto, à tipografia, à mise-en-page, à ilustração; enfim, intelectuais ligados ao que se tem debaixo dos olhos, a esse pastar da vista, sôfrego ou tranquilo, envolvido ou reflexivo.
Porque não há receitas para pegar num livro ou para amar um livro. Há vícios bem-aventurados. Ler é um deles. Outro, afim, é o dos livros, enquanto livros, daqueles objectos paralelipipédicos que se encostam uns aos outros na estante e começam logo por dar o prazer de serem muitos e ordenáveis de muitas e desvairadas formas, o dos livros como matéria de forro do espaço doméstico, o dos livros que vemos em casa dos amigos, o dos livros como objectos que se encontram nos lugares de peregrinação que são as livrarias e as bibliotecas, o dos livros que se leram de uma assentada, o dos livros que se fecharam para serem retomados mais tarde, até o dos livros que se esqueceram, até o dos livros que são mostrados em revistas de livros ou de decoração, nestas, quando calha haver uma secção dedicada a bibliotecas, sem falar no dos livros que recomendamos e que oferecemos, no dos que lemos nos transportes públicos, e assim por diante.

Há mais um prazer, só possível para quem alguma vez foi editor, embora arremedável por quem adquira um livro para levar para casa: o do exercício do jus primae noctis, o da primeira noite que se passa deitado e deleitado com o primeiro exemplar de um livro acabado de chegar da tipografia...

Já uma vez escrevi, no boletim de informação bibliográfica da Oiro do Dia (e o texto também vai agora arquivado neste conjunto), sobre Aby Warburg, o erudito alemão, fundador da Iconologia como disciplina histórica e interpretativa, que, em finais do século XIX, sendo primogénito de uma família de banqueiros judeus, renunciou à primogenitura por contrato com os irmãos, que ficaram com a administração do banco e se obrigaram a comprar-lhe todos os livros que ele quisesse ao longo da vida. E às vezes, dou comigo a pensar porque é que o meu pai não foi banqueiro, para eu poder saciar a minha fome de livros e para os meus irmãos acabarem a perceber que afinal não teriam feito propriamente um negócio da China com tão volumoso prato de lentilhas... (Era de Warburg a "lei da boa vizinhança" - Gesetz der guten Nachbarkeit - que pode enunciar-se assim: o livro de que precisas não é aquele de que andas à procura, mas sim o que está ao lado dele na estante).

Não, ai de mim, a minha relação com os livros na perspectiva da aquisição deles não tem nada de “warburgiano”: começou ainda no tempo dos calções curtos, comigo a juntar moedas de vinte e cinco tostões da semanada para comprar este ou aquele volume que ia aparecendo no Jomar da Foz, ali à entrada da Rua da Senhora da Luz, a preços entre os dez e os quinze escudos. Antes, era a razoável biblioteca familiar, o ar pausadamente entretido da minha mãe a abrir as folhas de algum volume que chegava, o que ela gostava muito de fazer e eu detesto, e sobretudo o forte estímulo paterno, que me atraía para eles e que muitas vezes citava o Castilho: “há livros que, semelhantes a barquinhas milagrosas, vogando no oceano das ideias”... Nunca tive grande paciência para o Castilho, salvo nas análises sobre “estilo e preconceito” do Fernando Venâncio. Nunca encontrei (nem procurei) a página em que ele diz isso e que, se estou bem lembrado, começava enfaticamente: “A leitura, meus amigos, sabeis vós bem o que é a leitura?...”. Mas devo-lhe, através do meu pai, essa síntese metafórica do livro como barca milagrosa que me tem acompanhado e em que tenho vogado e vagado ao longo da vida. Eram também noites inteiras de leitura devoradora, por vezes clandestina, para que não se pensasse haver prejuízo no levantar cedo para ir para o colégio. Era o que não se percebia à primeira no que se lia, mas depois acabava por se perceber.

O grande problema da minha relação com os livros é o da vertigem de tudo o que nunca li. Não o de tudo o que nunca chegarei a ler, hélas!. Mas o daquilo que sei que ainda hei-de ler e continua a ser uma compulsão, talvez a verdadeira utopia dos amanhãs que cantam na palavra escrita dos livros.

Este volume recolhe textos de índole muito diversa, alguns de autêntica "poética do livro" (por exemplo, Albano Martins, Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Rebordão Navarro), outros mais preocupados com a sua importância para o desenvolvimento do ser humano e das sociedades (por exemplo, Álvaro Cunhal), outros pondo a tónica no testemunho autobiográfico de uma relação com o livro estruturada desde a infância e para toda a vida (por exemplo, Eugénio Lisboa, João Bigotte Chorão, Miguel Veiga, Maria Alzira Seixo), outros dando conta de deambulações, fascinações, vagabundagens e achamentos por alfarrabistas e livreiros, bibliotecas, catálogos e repertórios bibliográficos (por exemplo, Armando Castro, Cunha Freitas, Jacinto Baptista, Rúben de Carvalho, José-Augusto França). Em quase todos, a relação pessoal com o livro, não apenas intelectual, mas também táctil, visual, afectiva, doméstica, terna, poética e até irónica, emaranha-se, organizando um labirinto de percursos que acaba por reconduzir-nos ao arquétipo da biblioteca e um caleidoscópio de impressões que encontra homologia com um célebre filme de Chris Marker sobre Toute la mémoire du monde.
A este conjunto valeria a pena agregar, quanto mais não fosse para fins de contraposição, o soneto um tanto ou quanto pessimista que o venerável António Ferreira escrevia em 1557 e que veio depois a ser incluído por seu filho Miguel Ferreira, em 1598, como primeiro texto dos Poemas Lusitanos:

Livro, se luz desejas, mal te enganas.
Quanto melhor será dentro em teu muro
Quieto, e humilde estar, inda que escuro,
Onde ninguém t'impece, a ninguém danas!

Sujeitas sempre ao tempo obras humanas
Coa novidade aprazem; logo em duro
Ódio e desprezo ficam: ama o seguro
Silêncio, fuge o povo, e mãos profanas.

Ah! não te posso ter! deixa ir cumprindo
Primeiro tua idade; quem te move
Te defenda do tempo, e de seus danos.

Dirás que a pesar meu foste fugindo,
Reinando Sebastião, Rei de quatro anos:
Ano cinquenta e sete: eu vinte e nove.


Enfim, com tanta variedade de testemunhos como a que se encerra neste livro “sobre os livros”, creio que neles se abordam muitas coisas que eu deixo por abordar para evitar repetições ou até, aqui e ali, dessintonias. Com certeza que há, em muitas outras páginas, um semelhante comprimento de onda. É interessante e importante que os escritores falem sobre a sua relação com os livros que não escreveram, mas que em grande medida determinaram o que eles são. Porque nunca não há nada de verdadeiramente novo, a não ser nos livros que continuam a ler-nos por dentro.

Vasco Graça Moura

(url)


INTENDÊNCIA

Novas actualizações na nota OUVINDO LUIGI NONO / GRANDE NOMES : LA LONTANANZA NOSTALGICA UTOPICA FUTURA.

Actualizado os ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO.

(url)


OUVINDO "O BEIJO E OUTROS MOVIMENTOS"

e
Michael Nyman, The Kiss & Other Movements e as 11 Sonatas para Piano de Haydn por Brendel.

(url)


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (5ª série)


Anónimo do século XVII

Não era verdadeiramente uma biblioteca. Era uma parte de casa com ramificações para um sótão onde se amontoavam milhares de livros, revistas, recortes de jornais numa despreocupada desordem sempre justificada pela necessidade de os "ter à mão". A família, sobretudo a minha avó, referia-se aquele local labiríntico como a "ilha", num misto de desdém e de inquietação pelo pó e desarrumação que lá adivinhava. É que ninguém estava autorizado a lá entrar. A não ser eu, a neta mais velha, quando vinham as férias. Cedo tive consciência de que este privilégio para além de representar uma "deferência" especial para com a minha "pessoa" era um caminho, uma passagem, que me transportava para a um outro mundo de dimensões mágicas insuspeitas no resto da casa. Teria 5, 6 anos mas jamais esquecerei as longas horas de puro prazer a observar a intimidade e o infinito cuidado com que meu avô manuseava os livros, a maioria já muito gastos e amarelecidos, e a ouvir as maravilhosa histórias de fadas e duendes que povoaram a minha infância. Guardo com profunda emoção e saudade cada um desses momentos.

(GC)

*

Os livros e jornais estão nas minhas memórias mais antigas. Vivia numa aldeia da Beira Baixa (como se designava antes de nomenclaturas mais "a moda") e lembro-me de me deixarem brincar com uma encadernação de jornais franceses, provindos de um tio avô, com ilustrações, e de ter tido uma fixação deslumbrada e um pouco arrepiada do “Radeau de la Méduse” do Géricault, que retenho ainda hoje na memória, naquele desbotado preto e branco próprio de papel de jornal, e que me conduziu muitos anos mais tarde ao Louvre, para quase me deixar esmagar pela dramática jangada, em tamanho “plus que nature”…

O meu Pai era professor primário e teve desde sempre uma relação com a leitura, ao mesmo tempo profunda, séria e cheia de prazer. Naquele fim de mundo, usava um processo de se manter actualizado, de que vim a reconhecer a dimensão quando ficaram nas minhas mãos as suas infindáveis estantes: mantinha assinaturas de edições por fascículos, que julgo ser hoje um processo em desuso (adoptado e adaptado pela publicação de colecções dos jornais?). Mas lembro-me bem de chegarem regularmente no correio esses fascículos – o Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa de Artur Bívar (desafio qualquer pessoa a procurar uma palavra que lá não encontre…), A Volta ao Mundo do Ferreira de Castro, os da colecção Cosmos, tantos outros. Vim a encontrar um “atado” com fascículos não encadernados, ainda nos seus sobrescritos de correio, com o selo “caravela” de $10 (nem sei como designar este valor - um tostão?…) da edição da Enciclopédia Pedagógica Progredior , fundada pelo Professor Adolfo Lima e publicada pela Livraria Escolar Progredior, do Porto .

E desde antes da escola, os meus livros pessoais - a Alice no País das Maravilhas (que , naturalmente , não acompanhei nas suas deambulações, mas de que muito me seduziam as gravuras) os Contos de António Botto, e mais tarde os da Colecção Azul, e mais, mais tarde, tardes inteiras fechada a percorrer a Enciclopédia Luso Brasileira, até cansar, por caminhos em rede, de um para outro vocábulo, cheios de informação que não me convinha buscar em conversa. ..

E não resisto a trazer aqui também a magia da Biblioteca Nacional, na Rua Ivens, que comecei a frequentar ainda no liceu, para escolher peças de teatro do Camilo para a récita dos finalistas. E aí foi só o começo, porque todo o tempo da Faculdade (de Letras) para lá caminhei no eléctrico 28, mergulhando horas e horas. Mas o que eu queria evocar era aquela figura memorável, que me penitencio por não me lembrar do nome dele, que nos dava acesso às cotas dos livros. Estarei confusa? Mas a minha ideia é que nós não mexíamos nas fichas, manuscritas com aparo, numa ortografia elegantíssima, arrumadas numas caixas de madeira marcada pelo uso, com as fichas num estado vetusto, dobradas, vergadas pelo uso das décadas. Como se chamava esse senhor de cabelos brancos que, afinal, nem precisava de manusear as fichas, porque sabia as cotas todas de cor?

Bem podia desfiar ainda tantas memórias dos próprios livros, lugares das melhores viagens pela condição humana, pelos tempos, pelos lugares mais longe e até, também os de perto. Quem neste mundo pode responder com honestidade à pergunta sobre o livro da sua vida?

Maria José Martins


*

Obrigada por me ter dado a ver a sala de leitura da Biblioteca Municipal do Porto. Não a via há 45 anos. Foi praticamente lá que me fiz leitora. Era, então, estudante do Liceu Rainha Santa Isabel (na transição do velho palacete para o novo edifício). Ia de Ovar para o Porto, diariamente, e a Biblioteca era aminha sala de espera pela hora do comboio. Lembro o frio, mas também o sol que à tarde batia nas janelas (era desse lado que costumava ficar, mas também cheguei a estar na área reservada pelo grosso cordão vermelho - amabilidade do funcionário, quando as mesas do lado de cá estavam totalmente ocupadas). Aí li muito Garrett, muito Herculano, muito Camilo, todo o Júlio Dinis, muito Eça. Hoje sou professora de Português.

(N. Maria Graça)

(url)


EARLY MORNING BLOGS 444

Requiescat


Direi, pela noite, não ódio que tivesse
Nem detestar vida corpórea e ninhos de manha,
Mas meu alto cansaço, a tristeza de lá
Onde se sente o aqui traído, a falsa entranha.

Direi --- não "fora!" ao mundo que me cinge
(Outro onde o sei e como chegaria?),
Mas dos anos de ver, pensar durando
Retiro uma moeda de nada,
Fruto do meu suor, e pago o pão que se me deve,
Compro o silêncio que se me deve
Por ter cumprido a palavra,
Trabalhado nas palavras,
E por elas merecido a terra leve.


(Vitorino Nemésio)

*

Bom dia!

(url)

6.3.05


INTENDÊNCIA

Actualizada a nota OUVINDO LUIGI NONO / GRANDE NOMES : LA LONTANANZA NOSTALGICA UTOPICA FUTURA

Em breve serão feitas as colocações de novos textos da série A Lagartixa e o Jacaré no VERITAS FILIA TEMPORIS. Um dos textos, publicado há duas semanas, inclui este fragmento, que queria lembrar aqui à luz da ridícula história do retrato de Freitas do Amaral enviado pelo correio ao PS, verdadeira "garotice" como foi classificado e bem.

BLOCO DE ESQUERDA E PP

são partidos muito mais parecidos do que alguma vez queiram admitir. São miméticos no seu ódio recíproco, como só os pequenos partidos podem odiar-se entre si na sua couraça de radicalidade. Tem ambos dirigentes muito semelhantes: o que é que há de mais parecido a Portas do que Louça e vice-versa? Ambos moralistas, self-righteous até dizer chega, não conseguem abrir a boca sem nos dar uma lição do que se deve ou não deve fazer. Ambos politicamente correctos um na sua missa, outro no seu ocasional e admitido charro, um no seu fato, outro na sua camisa, ambos usando o que vestem como uma farda de serviço, uma extensão do seu manifesto político.
Nestas eleições o BE ganhou ao PP, subiu onde ele desceu, também porque Louça é mais genuíno do que Portas. Portas não consegue esconder a agressividade, que nele assume a forma de arrogância, da pose. Querendo ser inglês, mordaz e cínico, anarco-conservador como vem nos livros e no Spectator, falta-lhe o estofo e o saber, e acaba por ser ultra-montano e beato, e ávido de uma realpolitik no fundo paroquial e provinciana. Louça é o que é há muito tempo, tem muito treino, é um ideólogo frio e capaz, tem o mundo completamente encaixado, sem uma dúvida, auxiliado por uma maior cultura e cosmopolitismo. A sua arrogância, parecida com a de Portas, manifesta-se pelo verbo, mas é menos susceptível de soçobrar no ridículo, até porque protegida por uma comunicação social simpatizante.
Depois o Portugal de Louça cresce e o de Portas encolhe. Os jovens radicais urbanos bem nascidos hão-de sempre ser mais do lado do Bloco, porque o politicamente correcto é a ideologia do nosso ensino, e só uma pequena minoria, não muito diferente na origem social mas de famílias diferentes, engrossa os admiradores do PP. Quem podia fazer crescer o PP, os empresários e a “cultura da iniciativa” desconfiam do radicalismo de Portas e preferem outros, Sócrates neste caso.

(url)


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (4ª série)


Hercules Segers

Tive o privilégio de ter nascido e vivido, sempre rodeada de livros. Na minha família acreditava-se no poder e valor da leitura. Desde cedo me tornei uma leitora insaciável: quando visitava as casas de amigas, elas, antes de eu chegar, fechavam os seus livros à chave para que não me pudesse enfronhar neles e afastar-me das brincadeiras que se queriam generalizadas. Apesar de, numa primeira fase, a biblioteca dos meus pais não ser muito grande, a do meu avô – aberta à minha exploração – era interminável. Ou, pelo menos, assim me parecia. A ela recorria quando tinha de estudar, a ela recorri quando quis ler Stephan Zweig, Júlio Verne ou os franceses da viragem do século. Foi lá também que li os números do ABCzinho e descobri as aventuras do Cavaleiro Andante.

Chegada ao Liceu D. Felipa de Lencastre, descobri a biblioteca (tão pouco frequentada no início dos anos 70!) e Júlio Dinis, Eça de Queirós ou Wenceslau de Morais. Cheguei a estar horas sozinha sentada entre as estantes fechadas que uma funcionária abria para retirar os tesouros que ajudaram à minha formação, que acompanharam a minha fantasia e esquecer-me das horas de voltar para as aulas…

Fui para a faculdade e continuei a ler. Não surpreendentemente escolhi Línguas e Literaturas Modernas e, mais tarde, por imperativos de carreira, corri muitas e muitas bibliotecas, da Casa do Infante ao Arquivo Histórico da Educação, da Biblioteca Municipal do Porto (sim, também passei por lá!) às várias Bibliotecas Nacionais ou à biblioteca de Évora, Braga ou Lagos. O perigo que era ir para a biblioteca da Gulbenkian! Aquela janela, os sofás confortáveis, os livros fascinantes… Quem é que nos tirava dali? Bibliotecas tão diferentes entre si, mas todas elas homenagens ao gosto e ao prazer da leitura. Todas elas espaços de convívio com esse ser misterioso que é o livro antes de ser aberto.

Sinto-me bem entre livros. São companheiros, professores amigos. Gosto do seu cheiro quando são velhos, da textura do papel, do grafismo das capas. Como mãe, esforcei-me sempre para que as minhas filhas ganhassem o amor pela leitura, como professora tentei encorajar os meus alunos a lerem para lá do que os curricula obrigavam, como leitora continuo a ler e a procurar que mais gente o faça.

Nunca consegui deitar um livro fora: acho um crime. E agora, que os 15.000 volumes da minha primeira biblioteca, a biblioteca do meu avô, me vieram ter à mão, é com muito prazer e carinho que dou seguimento ao que foi a sua vontade: oferecê-la à Junta de Freguesia da terra onde morava. Para que mais gente possa ter o prazer de descobrir mais uma biblioteca. Para que, daqui a uns anos, num outro blog qualquer, haja gente que continua a escrever sobre o prazer que é entrar numa biblioteca para descobrir o que os livros têm para lhes dizer…

(MJA)

*

Há momentos únicos nas nossas vidas. Por isso, também eu gostaria de falar de uma biblioteca. A minha primeira biblioteca. Diferente. Sem claustros, lareiras ou jardins, mas com rodas. Igualmente digna, a minha primeira biblioteca. Chegava uma vez por mês, lá pelos finais de 60 e início dos 70.
Ainda hoje não consigo decifrar a magia que levava um significativo número de miúdos de uma aldeia dos arredores de Viseu, a percorrer cinco ou seis quilómetros, a pé, para ir trocar os livros que no mês anterior tinham requisitado. Sei apenas que, para muitos, essa foi a semente que fez nascer o gosto e o amor pelo livro e pela magia da leitura. É engraçado que muitos anos e muitas Bibliotecas depois, continuam claramente presentes na minha memória as pequenas estantes apinhadas de livros de aventuras e de mundos desconhecidos.A velha carrinha Citroën (acho que eram dessa marca) deve agora enferrujar no fundo de algum silvado. Fica, no entanto, um perene reconhecimento à Fundação Gulbenkian e ao saudoso David Mourão Ferreira por terem permitido a muitos miúdos olhar para dentro de um livro.

(D.S.)

*

Os "apanhados" transcritos no seu Abrupto sobre o amor aos livros de tanta gente, comoveram-me até às lágrimas e fizeram-me pensar.
Da verdadeira dimensão da leitura e da humanidade jacente na história que nos contam, na ideia que transmitem, na possibilidade de parar para pensar, voltar atrás e reflectir.
Só nós e o livro.
Em todas as mensagens existia ternura e instrospecção e todas reflectiam uma paz interior dos seus autores dada, julgo que indiscutívelmente, pelo facto de serem...leitores interessados.

(MGC)

*

Com onze anos morava em Vale de Santarém. Curso Comercial só em Lisboa para onde viajava de comboio diariamente.

Comecei pela Escola Eugénio dos Santos em Alvalade e, quando me mostraram a Biblioteca Municipal do Palácio Galveias, fui frequentador habitual durante dois anos. Voltei anos depois para confirmar que o fascínio do ambiente novo e a visão de estantes altíssimas cheias de mistérios, me marcou para sempre.

Por uma porta que lá um dia se entreabriu, consegui ver num relance, outras estantes em corredores obscuros onde, de umas prateleiras para as outras, os livros decerto conversavam entre si.

Frequentei depois a Escola Veiga Beirão no Carmo e, muito perto dali, na rua Ivens, tínhamos a Biblioteca Pública, agora extinta. Pedia para ler o que via pelas montras: Muito Júlio Verne misturado com O Crime do Padre Amaro; o Fel de José Duro e algumas biografias (de Edison, Napoleão, Toulouse-Lautrec...), entremeados com o Amor de Perdição e o Camões dos Sonetos. Aí bebi também as Prosas Bárbaras, e as Lendas e Narrativas bem como o Eurico.

Fui mesmo a tempo de ler na altura certa os clássicos juvenis: Mark Twain, Stevenson, Salgari, Dickens... Mas a verdadeira revelação foi para mim a Biblioteca Nacional, onde ela era e foi: no largo a seguir à rua Ivens logo antes da Victor Cordon: A sala de leitura vasta para os meus olhos, a frequência quase nula, e a toda a volta Enciclopédias e dicionários. Lá me perdi com a Larousse do sec. XIX e a do sec. XX, com a Britânica e o seu extraordinário volume de Atlas. E não me cansei a folhear a Universal (creio que era argentina). Lembro-me também de uma outra, alemã, uma obra em dezenas de volumes de uma grande perfeição tipográfica. Muitas das ilustrações, eram estampas em extra-texto, coladas pelo topo no espaço em branco reservado na página. Dava gosto procurar Lisboa e encontrar “Lissabon”, ou “Portugal” ... Pela primeira vez vi a sanha do vandalismo:
muitas dessas ilustrações, (fotografias, desenhos, reprodução de quadros...) tinham sido arrancadas, e muitas das páginas de suporte estavam danificadas.

Saíamos dali cientes de que o mundo era vasto e que era preciso aprender italiano, alemão ou geometria. No entanto, o mais extraordinário era o enorme móvel de ficheiros ao fundo da sala onde centenas (?) de gavetas mostravam nas fichas, os títulos com algarismos elevados (p.ex. xxxxxxxx
xxx12 ), o que queria dizer que aquele titulo se encontrava em 12º lugar no identificado volume Miscelânea. Os volumes de Miscelâneas eram (são) encadernações de materiais heterogéneos: Buscando um título encontrávamos os mais incríveis assuntos: a separata de uma revista, o catálogo de uma exposição, um discurso, um estudo de criptografia, uma tese...

Desde então, nas bibliotecas desencanto minutos para encontrar o inesperado e apreciar a surpresa possível.

(M.Neves Mendes)

*

Recordo as carrinhas da Fundação, que só eram cinzentas na cor, que nos apareciam de vez em quando junto à Escola Primária ou no Parque junto ao rio, em Vila Praia de Âncora. E aí havia "festa na aldeia". Sonhava, não sei se de sonho sonhado ou acordado, que entrava nessas cabanas de quatro rodas e levava todos os livros para casa...Hergé, Conan Doyle, Verne como dieta inicial. Ainda hoje dou comigo, quase com inconsciência, encostado às montras das livrarias a contar aqueles que levaria para o aconchego do lar. Definitivamente, os sonhos podem levar ao crime.

(António Filipe Meira)

*

Memórias de Bibliotecas / Memórias de uma menina bem-comportada...

Muito acertadinha, subia duas vezes por semana a rua onde vivia para ir ter aulas particulares de piano no Colégio da Paz, perto do Marquês, no Porto. Naquele tempo, e não foi há tanto assim, ia sozinha, aprendendo a saborear aqueles quinze minutos de independência valiosíssimos para os meus sete ou oito anos de idade. Não me lembro de sentir perigo algum, nem de haver muito trânsito nas ruas, nem de transeuntes ameaçadores, nem mesmo que chovesse ou fizesse muito frio (algo de muito improvável no Porto, o que prova quão selectiva é a nossa memória...): eu lá ia depois do almoço, com a pasta das pautas debaixo do braço. Sentia-me abrigada entre dois portos seguros, o de minha casa e o da pesada porta do Colégio da Paz, que se abria para um convidativo e amplo átrio interior. Acabada a meia hora de aula de piano, havia sempre um sorriso benévolo e meigo de despedida no rosto da freirinha que estivesse à porta. E eu gostava desse ritual, do caminho de ida e volta que se me afigurava longo e interessante. Foi assim que me fui habituando a observar o semblante dos rostos das pessoas por quem passava, a pisar as folhas castanhas e caídas trazidas pelo vento de Outono, a tentar responder por mim às perguntas que iam surgindo a cada nova descoberta. Mas a melhor descoberta de todas foi feita num dia de desacerto de rotina, quando (já não sei por que razão), ao sair do Colégio, virei à esquerda em vez de virar à direita, como era costume, e dei por mim a atravessar o Jardim do Marquês para ir conhecer a pequena biblioteca que lá existia. Lembro-me do edifício, pequeno, claro e envidraçado. Lembro-me de haver mesas e bancos cá fora onde velhos jogavam às cartas e ao dominó. Lembro-me das folhas caídas no chão de Outono, que eu pisava num ritmo de dança só meu e que, ainda hoje, volvidos trinta anos, continuo a ensaiar cada vez que sinto folhas secas debaixo dos pés. Lembro-me, sobretudo, dos livros. Não deviam ser muitos, pois tratava-se de uma pequena biblioteca. Mas um local com livros sempre exerceu em mim um sortilégio especial. E aquele ficava num jardim lindíssimo, com altas e frondosas árvores. Para uma menina que crescia numa cidade, havia algo de mágico naquela casinha rodeada de árvores e arbustos. Nessa primeira tarde, não entrei. Cautelosa como sempre fui, limitei-me a observar de longe. Dois dias depois, voltei. Dessa vez, não consegui conter a minha curiosidade. Entrei, olhei em volta e não consegui resistir. Já não me lembro se algum funcionário que lá estivesse falou comigo, ou se eu me dirigi a alguém. Sei, sim, que foi ali que, a partir daquele momento, li muitos "livros aos quadradinhos", como eu lhes chamava. Como era bom poder rir com as aventuras de Tintim e as façanhas do Astérix depois de exercícios de escalas, solfejo e pequenas peças para piano orientadas por uma professora competente, porém um pouco austera. Se alguma vez cheguei a casa mais tarde do que a hora prevista, nunca ninguém fez qualquer reparo. Não por desleixo, decerto. A minha conduta bem-comportada havia-me granjeado alguma liberdade...

Estudei piano durante doze anos. Aquela foi a minha rotina durante todo esse tempo, pautada pelas inevitáveis mudanças: o caminho a pé feito a pensar nos meus dilemas de adolescente, a descoberta de uma Barcarola de Mendelssohn ou a euforia sentida por conseguir tocar uma valsa de Chopin. Nessa altura, já a biblioteca do Marquês fazia parte da minha memória de infância, a paixão pelos livros e pela Literatura estava bem enraizada em mim... Às vezes, ia até ao jardim para ter a certeza que a biblioteca ali permanecia, com as árvores e os velhos à sua volta. Parecia querer fotografar aquela imagem na minha memória...

Hoje, sei que quando voltar ao Marquês, não mais verei o que se mantém gravado na minha memória. Tenho evitado passar por lá. Quando o fizer, será provavelmente de metro, e, provavelmente, estarei a ler um livro ou a folhear um jornal. Ou, se me lembrar, procurarei ler o poema que estiver escrito no interior da carruagem. Pode ser que seja sobre música ou árvores, ou folhas de Outono. Se assim for, esboçarei um sorriso...

(Marta Correia)

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]