ABRUPTO

6.3.05


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (4ª série)


Hercules Segers

Tive o privilégio de ter nascido e vivido, sempre rodeada de livros. Na minha família acreditava-se no poder e valor da leitura. Desde cedo me tornei uma leitora insaciável: quando visitava as casas de amigas, elas, antes de eu chegar, fechavam os seus livros à chave para que não me pudesse enfronhar neles e afastar-me das brincadeiras que se queriam generalizadas. Apesar de, numa primeira fase, a biblioteca dos meus pais não ser muito grande, a do meu avô – aberta à minha exploração – era interminável. Ou, pelo menos, assim me parecia. A ela recorria quando tinha de estudar, a ela recorri quando quis ler Stephan Zweig, Júlio Verne ou os franceses da viragem do século. Foi lá também que li os números do ABCzinho e descobri as aventuras do Cavaleiro Andante.

Chegada ao Liceu D. Felipa de Lencastre, descobri a biblioteca (tão pouco frequentada no início dos anos 70!) e Júlio Dinis, Eça de Queirós ou Wenceslau de Morais. Cheguei a estar horas sozinha sentada entre as estantes fechadas que uma funcionária abria para retirar os tesouros que ajudaram à minha formação, que acompanharam a minha fantasia e esquecer-me das horas de voltar para as aulas…

Fui para a faculdade e continuei a ler. Não surpreendentemente escolhi Línguas e Literaturas Modernas e, mais tarde, por imperativos de carreira, corri muitas e muitas bibliotecas, da Casa do Infante ao Arquivo Histórico da Educação, da Biblioteca Municipal do Porto (sim, também passei por lá!) às várias Bibliotecas Nacionais ou à biblioteca de Évora, Braga ou Lagos. O perigo que era ir para a biblioteca da Gulbenkian! Aquela janela, os sofás confortáveis, os livros fascinantes… Quem é que nos tirava dali? Bibliotecas tão diferentes entre si, mas todas elas homenagens ao gosto e ao prazer da leitura. Todas elas espaços de convívio com esse ser misterioso que é o livro antes de ser aberto.

Sinto-me bem entre livros. São companheiros, professores amigos. Gosto do seu cheiro quando são velhos, da textura do papel, do grafismo das capas. Como mãe, esforcei-me sempre para que as minhas filhas ganhassem o amor pela leitura, como professora tentei encorajar os meus alunos a lerem para lá do que os curricula obrigavam, como leitora continuo a ler e a procurar que mais gente o faça.

Nunca consegui deitar um livro fora: acho um crime. E agora, que os 15.000 volumes da minha primeira biblioteca, a biblioteca do meu avô, me vieram ter à mão, é com muito prazer e carinho que dou seguimento ao que foi a sua vontade: oferecê-la à Junta de Freguesia da terra onde morava. Para que mais gente possa ter o prazer de descobrir mais uma biblioteca. Para que, daqui a uns anos, num outro blog qualquer, haja gente que continua a escrever sobre o prazer que é entrar numa biblioteca para descobrir o que os livros têm para lhes dizer…

(MJA)

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Há momentos únicos nas nossas vidas. Por isso, também eu gostaria de falar de uma biblioteca. A minha primeira biblioteca. Diferente. Sem claustros, lareiras ou jardins, mas com rodas. Igualmente digna, a minha primeira biblioteca. Chegava uma vez por mês, lá pelos finais de 60 e início dos 70.
Ainda hoje não consigo decifrar a magia que levava um significativo número de miúdos de uma aldeia dos arredores de Viseu, a percorrer cinco ou seis quilómetros, a pé, para ir trocar os livros que no mês anterior tinham requisitado. Sei apenas que, para muitos, essa foi a semente que fez nascer o gosto e o amor pelo livro e pela magia da leitura. É engraçado que muitos anos e muitas Bibliotecas depois, continuam claramente presentes na minha memória as pequenas estantes apinhadas de livros de aventuras e de mundos desconhecidos.A velha carrinha Citroën (acho que eram dessa marca) deve agora enferrujar no fundo de algum silvado. Fica, no entanto, um perene reconhecimento à Fundação Gulbenkian e ao saudoso David Mourão Ferreira por terem permitido a muitos miúdos olhar para dentro de um livro.

(D.S.)

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Os "apanhados" transcritos no seu Abrupto sobre o amor aos livros de tanta gente, comoveram-me até às lágrimas e fizeram-me pensar.
Da verdadeira dimensão da leitura e da humanidade jacente na história que nos contam, na ideia que transmitem, na possibilidade de parar para pensar, voltar atrás e reflectir.
Só nós e o livro.
Em todas as mensagens existia ternura e instrospecção e todas reflectiam uma paz interior dos seus autores dada, julgo que indiscutívelmente, pelo facto de serem...leitores interessados.

(MGC)

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Com onze anos morava em Vale de Santarém. Curso Comercial só em Lisboa para onde viajava de comboio diariamente.

Comecei pela Escola Eugénio dos Santos em Alvalade e, quando me mostraram a Biblioteca Municipal do Palácio Galveias, fui frequentador habitual durante dois anos. Voltei anos depois para confirmar que o fascínio do ambiente novo e a visão de estantes altíssimas cheias de mistérios, me marcou para sempre.

Por uma porta que lá um dia se entreabriu, consegui ver num relance, outras estantes em corredores obscuros onde, de umas prateleiras para as outras, os livros decerto conversavam entre si.

Frequentei depois a Escola Veiga Beirão no Carmo e, muito perto dali, na rua Ivens, tínhamos a Biblioteca Pública, agora extinta. Pedia para ler o que via pelas montras: Muito Júlio Verne misturado com O Crime do Padre Amaro; o Fel de José Duro e algumas biografias (de Edison, Napoleão, Toulouse-Lautrec...), entremeados com o Amor de Perdição e o Camões dos Sonetos. Aí bebi também as Prosas Bárbaras, e as Lendas e Narrativas bem como o Eurico.

Fui mesmo a tempo de ler na altura certa os clássicos juvenis: Mark Twain, Stevenson, Salgari, Dickens... Mas a verdadeira revelação foi para mim a Biblioteca Nacional, onde ela era e foi: no largo a seguir à rua Ivens logo antes da Victor Cordon: A sala de leitura vasta para os meus olhos, a frequência quase nula, e a toda a volta Enciclopédias e dicionários. Lá me perdi com a Larousse do sec. XIX e a do sec. XX, com a Britânica e o seu extraordinário volume de Atlas. E não me cansei a folhear a Universal (creio que era argentina). Lembro-me também de uma outra, alemã, uma obra em dezenas de volumes de uma grande perfeição tipográfica. Muitas das ilustrações, eram estampas em extra-texto, coladas pelo topo no espaço em branco reservado na página. Dava gosto procurar Lisboa e encontrar “Lissabon”, ou “Portugal” ... Pela primeira vez vi a sanha do vandalismo:
muitas dessas ilustrações, (fotografias, desenhos, reprodução de quadros...) tinham sido arrancadas, e muitas das páginas de suporte estavam danificadas.

Saíamos dali cientes de que o mundo era vasto e que era preciso aprender italiano, alemão ou geometria. No entanto, o mais extraordinário era o enorme móvel de ficheiros ao fundo da sala onde centenas (?) de gavetas mostravam nas fichas, os títulos com algarismos elevados (p.ex. xxxxxxxx
xxx12 ), o que queria dizer que aquele titulo se encontrava em 12º lugar no identificado volume Miscelânea. Os volumes de Miscelâneas eram (são) encadernações de materiais heterogéneos: Buscando um título encontrávamos os mais incríveis assuntos: a separata de uma revista, o catálogo de uma exposição, um discurso, um estudo de criptografia, uma tese...

Desde então, nas bibliotecas desencanto minutos para encontrar o inesperado e apreciar a surpresa possível.

(M.Neves Mendes)

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Recordo as carrinhas da Fundação, que só eram cinzentas na cor, que nos apareciam de vez em quando junto à Escola Primária ou no Parque junto ao rio, em Vila Praia de Âncora. E aí havia "festa na aldeia". Sonhava, não sei se de sonho sonhado ou acordado, que entrava nessas cabanas de quatro rodas e levava todos os livros para casa...Hergé, Conan Doyle, Verne como dieta inicial. Ainda hoje dou comigo, quase com inconsciência, encostado às montras das livrarias a contar aqueles que levaria para o aconchego do lar. Definitivamente, os sonhos podem levar ao crime.

(António Filipe Meira)

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Memórias de Bibliotecas / Memórias de uma menina bem-comportada...

Muito acertadinha, subia duas vezes por semana a rua onde vivia para ir ter aulas particulares de piano no Colégio da Paz, perto do Marquês, no Porto. Naquele tempo, e não foi há tanto assim, ia sozinha, aprendendo a saborear aqueles quinze minutos de independência valiosíssimos para os meus sete ou oito anos de idade. Não me lembro de sentir perigo algum, nem de haver muito trânsito nas ruas, nem de transeuntes ameaçadores, nem mesmo que chovesse ou fizesse muito frio (algo de muito improvável no Porto, o que prova quão selectiva é a nossa memória...): eu lá ia depois do almoço, com a pasta das pautas debaixo do braço. Sentia-me abrigada entre dois portos seguros, o de minha casa e o da pesada porta do Colégio da Paz, que se abria para um convidativo e amplo átrio interior. Acabada a meia hora de aula de piano, havia sempre um sorriso benévolo e meigo de despedida no rosto da freirinha que estivesse à porta. E eu gostava desse ritual, do caminho de ida e volta que se me afigurava longo e interessante. Foi assim que me fui habituando a observar o semblante dos rostos das pessoas por quem passava, a pisar as folhas castanhas e caídas trazidas pelo vento de Outono, a tentar responder por mim às perguntas que iam surgindo a cada nova descoberta. Mas a melhor descoberta de todas foi feita num dia de desacerto de rotina, quando (já não sei por que razão), ao sair do Colégio, virei à esquerda em vez de virar à direita, como era costume, e dei por mim a atravessar o Jardim do Marquês para ir conhecer a pequena biblioteca que lá existia. Lembro-me do edifício, pequeno, claro e envidraçado. Lembro-me de haver mesas e bancos cá fora onde velhos jogavam às cartas e ao dominó. Lembro-me das folhas caídas no chão de Outono, que eu pisava num ritmo de dança só meu e que, ainda hoje, volvidos trinta anos, continuo a ensaiar cada vez que sinto folhas secas debaixo dos pés. Lembro-me, sobretudo, dos livros. Não deviam ser muitos, pois tratava-se de uma pequena biblioteca. Mas um local com livros sempre exerceu em mim um sortilégio especial. E aquele ficava num jardim lindíssimo, com altas e frondosas árvores. Para uma menina que crescia numa cidade, havia algo de mágico naquela casinha rodeada de árvores e arbustos. Nessa primeira tarde, não entrei. Cautelosa como sempre fui, limitei-me a observar de longe. Dois dias depois, voltei. Dessa vez, não consegui conter a minha curiosidade. Entrei, olhei em volta e não consegui resistir. Já não me lembro se algum funcionário que lá estivesse falou comigo, ou se eu me dirigi a alguém. Sei, sim, que foi ali que, a partir daquele momento, li muitos "livros aos quadradinhos", como eu lhes chamava. Como era bom poder rir com as aventuras de Tintim e as façanhas do Astérix depois de exercícios de escalas, solfejo e pequenas peças para piano orientadas por uma professora competente, porém um pouco austera. Se alguma vez cheguei a casa mais tarde do que a hora prevista, nunca ninguém fez qualquer reparo. Não por desleixo, decerto. A minha conduta bem-comportada havia-me granjeado alguma liberdade...

Estudei piano durante doze anos. Aquela foi a minha rotina durante todo esse tempo, pautada pelas inevitáveis mudanças: o caminho a pé feito a pensar nos meus dilemas de adolescente, a descoberta de uma Barcarola de Mendelssohn ou a euforia sentida por conseguir tocar uma valsa de Chopin. Nessa altura, já a biblioteca do Marquês fazia parte da minha memória de infância, a paixão pelos livros e pela Literatura estava bem enraizada em mim... Às vezes, ia até ao jardim para ter a certeza que a biblioteca ali permanecia, com as árvores e os velhos à sua volta. Parecia querer fotografar aquela imagem na minha memória...

Hoje, sei que quando voltar ao Marquês, não mais verei o que se mantém gravado na minha memória. Tenho evitado passar por lá. Quando o fizer, será provavelmente de metro, e, provavelmente, estarei a ler um livro ou a folhear um jornal. Ou, se me lembrar, procurarei ler o poema que estiver escrito no interior da carruagem. Pode ser que seja sobre música ou árvores, ou folhas de Outono. Se assim for, esboçarei um sorriso...

(Marta Correia)

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