ABRUPTO

7.3.05


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (5ª série)


Anónimo do século XVII

Não era verdadeiramente uma biblioteca. Era uma parte de casa com ramificações para um sótão onde se amontoavam milhares de livros, revistas, recortes de jornais numa despreocupada desordem sempre justificada pela necessidade de os "ter à mão". A família, sobretudo a minha avó, referia-se aquele local labiríntico como a "ilha", num misto de desdém e de inquietação pelo pó e desarrumação que lá adivinhava. É que ninguém estava autorizado a lá entrar. A não ser eu, a neta mais velha, quando vinham as férias. Cedo tive consciência de que este privilégio para além de representar uma "deferência" especial para com a minha "pessoa" era um caminho, uma passagem, que me transportava para a um outro mundo de dimensões mágicas insuspeitas no resto da casa. Teria 5, 6 anos mas jamais esquecerei as longas horas de puro prazer a observar a intimidade e o infinito cuidado com que meu avô manuseava os livros, a maioria já muito gastos e amarelecidos, e a ouvir as maravilhosa histórias de fadas e duendes que povoaram a minha infância. Guardo com profunda emoção e saudade cada um desses momentos.

(GC)

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Os livros e jornais estão nas minhas memórias mais antigas. Vivia numa aldeia da Beira Baixa (como se designava antes de nomenclaturas mais "a moda") e lembro-me de me deixarem brincar com uma encadernação de jornais franceses, provindos de um tio avô, com ilustrações, e de ter tido uma fixação deslumbrada e um pouco arrepiada do “Radeau de la Méduse” do Géricault, que retenho ainda hoje na memória, naquele desbotado preto e branco próprio de papel de jornal, e que me conduziu muitos anos mais tarde ao Louvre, para quase me deixar esmagar pela dramática jangada, em tamanho “plus que nature”…

O meu Pai era professor primário e teve desde sempre uma relação com a leitura, ao mesmo tempo profunda, séria e cheia de prazer. Naquele fim de mundo, usava um processo de se manter actualizado, de que vim a reconhecer a dimensão quando ficaram nas minhas mãos as suas infindáveis estantes: mantinha assinaturas de edições por fascículos, que julgo ser hoje um processo em desuso (adoptado e adaptado pela publicação de colecções dos jornais?). Mas lembro-me bem de chegarem regularmente no correio esses fascículos – o Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa de Artur Bívar (desafio qualquer pessoa a procurar uma palavra que lá não encontre…), A Volta ao Mundo do Ferreira de Castro, os da colecção Cosmos, tantos outros. Vim a encontrar um “atado” com fascículos não encadernados, ainda nos seus sobrescritos de correio, com o selo “caravela” de $10 (nem sei como designar este valor - um tostão?…) da edição da Enciclopédia Pedagógica Progredior , fundada pelo Professor Adolfo Lima e publicada pela Livraria Escolar Progredior, do Porto .

E desde antes da escola, os meus livros pessoais - a Alice no País das Maravilhas (que , naturalmente , não acompanhei nas suas deambulações, mas de que muito me seduziam as gravuras) os Contos de António Botto, e mais tarde os da Colecção Azul, e mais, mais tarde, tardes inteiras fechada a percorrer a Enciclopédia Luso Brasileira, até cansar, por caminhos em rede, de um para outro vocábulo, cheios de informação que não me convinha buscar em conversa. ..

E não resisto a trazer aqui também a magia da Biblioteca Nacional, na Rua Ivens, que comecei a frequentar ainda no liceu, para escolher peças de teatro do Camilo para a récita dos finalistas. E aí foi só o começo, porque todo o tempo da Faculdade (de Letras) para lá caminhei no eléctrico 28, mergulhando horas e horas. Mas o que eu queria evocar era aquela figura memorável, que me penitencio por não me lembrar do nome dele, que nos dava acesso às cotas dos livros. Estarei confusa? Mas a minha ideia é que nós não mexíamos nas fichas, manuscritas com aparo, numa ortografia elegantíssima, arrumadas numas caixas de madeira marcada pelo uso, com as fichas num estado vetusto, dobradas, vergadas pelo uso das décadas. Como se chamava esse senhor de cabelos brancos que, afinal, nem precisava de manusear as fichas, porque sabia as cotas todas de cor?

Bem podia desfiar ainda tantas memórias dos próprios livros, lugares das melhores viagens pela condição humana, pelos tempos, pelos lugares mais longe e até, também os de perto. Quem neste mundo pode responder com honestidade à pergunta sobre o livro da sua vida?

Maria José Martins


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Obrigada por me ter dado a ver a sala de leitura da Biblioteca Municipal do Porto. Não a via há 45 anos. Foi praticamente lá que me fiz leitora. Era, então, estudante do Liceu Rainha Santa Isabel (na transição do velho palacete para o novo edifício). Ia de Ovar para o Porto, diariamente, e a Biblioteca era aminha sala de espera pela hora do comboio. Lembro o frio, mas também o sol que à tarde batia nas janelas (era desse lado que costumava ficar, mas também cheguei a estar na área reservada pelo grosso cordão vermelho - amabilidade do funcionário, quando as mesas do lado de cá estavam totalmente ocupadas). Aí li muito Garrett, muito Herculano, muito Camilo, todo o Júlio Dinis, muito Eça. Hoje sou professora de Português.

(N. Maria Graça)

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