ABRUPTO

11.3.05


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (8ª série)



Alguma da liberdade que conquistei ao longo da vida veio dos livros que li.
Ainda hoje, e com muita regularidade, exilo-me em páginas onde o pensamento ou a realidade descrita superam o espaço onde me movo, seja no meio dos outros ou quando estou simplesmente comigo mesmo.
Existem quatro bibliotecas de referência na minha vida: a extinta biblioteca Calouste Gulbenkian de Fafe, lugar onde na infância ia buscar os livros que me obrigavam ler, pois não me conseguia relacionar com objectos que não me pertencessem e, nisso, os livros não eram excepção. Nessa idade apenas gostava dos livros que comprava ou que me ofereciam, os que eram só meus e que se não devolviam.

A biblioteca municipal do Porto, em frente ao jardim de São Lázaro, onde tardes sem conta me dediquei à escrita e à leitura de poesia para fugir a um enfadonho curso de Direito que então frequentava, aprofundando o amor que ganhei às palavras de Eugénio e de Al Berto.

A Biblioteca da Fundação Gulbenkian em Lisboa, onde conheci um dos melhores significados da leitura e do silêncio, da pacificação e do misticismo do tempo, por ser um local belíssimo, calmo, onde a leitura se espraiava para lá da sala de leitura com vista para os jardins. Na Gulbenkian, as coisas aconteciam-me em catadupa: a leitura livre e quase casual dos livros, as sucessivas visitas aos quadros de Eloy e de Almada, pelo menos uma vez por mês, tal e qual como se fossem gente, e o almoço encantador na cantina da Fundação em horas mortas para que as poucas pessoas que restavam na sala pudessem significar.

A Biblioteca Nacional, contudo, teve e tem um enorme fascínio. A Nacional é o meu espaço de uma leitura de confronto, de aprendizagem, de estatuto. Quando leio lá o que quer que seja, tenho a sensação de estar a fazer algo de extraordinária importância, fruto do trabalho e da dedicação seríssima, não só do autor, mas de toda aquela gente que guarda religiosamente o espólio impresso da nação.
Fiz-me sociólogo na Biblioteca Nacional. Saía dos Barcos do Barreiro às 7 da manhã para, às 9, estar de café tomado e alma pronta, na porta da B.N.. Há uns meses regressei lá para pesquisar uma bibliografia sobre as Rodas dos Expostos e tive que me reinscrever como leitor. Foram à minha ficha e perguntaram-me se eu era estudante de Sociologia, se morava no Barreiro, etc. Confesso que foi um choque bom ouvir falar outra vez de tudo aquilo. Eu que já sou professor de sociologia, que entretanto já morei uns anos em Lisboa e que há mais anos ainda regressei a Fafe; Eu que já perdi cerca de um terço do cabelo que tinha na fotografia da primeira inscrição e que devo pesar uns quinze quilos a mais. Eu que já sou pai de dois filhos, um dos quais já quase lê. Mas sobretudo o eu que queimou as fitas todas que tinha para queimar e que olha para aquela casa com uma saudade tremenda de quando lá passava as manhãs ou as tardes, de quando esperava ansiosamente por saber que raio de homem seria no futuro, enfim, um eu tão perdidamente apaixonado pelos dias que se preenchiam com a atribulada vida de estudante entre a leitura, a aprendizagem e a convivência sem horas, nem receios ou limitações. Voltar à sala de leitura e aos ficheiros da Biblioteca Nacional é voltar a uma parte de mim que não morre, que se não deteriora, uma parte tão bem guardada como os livros que lá li e, sobre os quais, outros farão o mesmo vida adiante, muito depois de nós, da nossa vida, da nossa única e magnífica vida por esses lugares!

(Pompeu Martins)

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Nascido em casa sem livros, a minha dívida perante as carrinhas da FG é enorme e gostaria também de a deixar aqui registada.

Aproveito para deixar nota da total disfuncionalidade da biblioteca do Iscef em que me formei, na segunda metade dos anos sessenta, mau grado a simpatia eficaz do velho Senhor Estêvão.

E, já agora, para registar a boa surpresa , para não dizer o choque ( não tecnológico) que experimentei, poucos anos volvidos na Universidade americana em que fiz o MBA e constatei que a biblioteca era o edifício mais imponente de todo o campus. Já deslumbrado com quase um milhão de volumes ao alcance físico da minha mão, das 7 às 24h, obtive a informação de que na outra Universidade da cidade, o número se aproximava dos dois milhões e funcionava 24horas por dia. E que estava também à nossa disposição, porque, sendo do Estado, estava à disposição de toda a Comunidade…

(Amf)

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Fascinada. Fascinada, é a palavra que transmite todo este encantamento na leitura das viagens pela bibliotecas. E que me fez partir à descoberta da resposta para esta interrogação, colocada interiormente: Como é que nasceu a minha viagem?
E dei comigo, pequenita e interrogativa a olhar para as lombadas dos livros do meu pai, livros alinhados nas estantes sem ordem nem sequência, livros que já eram velhos era eu ainda tão novinha, livros que na altura só falavam comigo pelo cheiro do papel e pelas cores dos titulos....E dei ainda comigo e ainda pequenita a soletrar esses títulos, sem saber ainda, que pouco mais tarde os devoraria numa velocidade vertiginosa de leitura, às escondidas porque o pai não deixava que eu lesse O Menino de Engenho, Usina, Capitães de Areia...à mistura, já mais velha, com Pitigrilli que por lá também andava. E dei comigo, já com sorrisos na alma, a lembrar-me das horas que passei, sentada no chão, a ver, fascículo a fascículo, A Selva, do Ferreira de Castro e a ficar chocada, sem perceber porquê, porque a minha mãe destacava esta e aquela gravura e mandava emoldurar para pendurar nas paredes do corredor. E, ao correr desta escrita, ainda dou comigo a recordar os folhetins literários que eram publicados diariamente no Diário de Notícias, jornal lá de casa, onde a aventura e os romances se misturavam aos folhetins de cordel, dramalhões de faca na liga e lágrimas abundantes, que nos eram colocados por baixo da porta das traseiras uma vez por semana, por um preço que já em le lembro....
Ainda conservo a quase totalidade da biblioteca do meu pai, com livros incompletos que o tempo lhes levou as folhas...Juntei-lhes, qual sal e pimenta da minha vida, os que encontro nos alfarrabistas daqui e dali e dos que vou comprando pelas livrarias, apesar de terem preços pecaminosos...

(Fernanda Maria Gouveia)

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