ABRUPTO

9.3.05


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (7ª série)

Ao ver uma imagem de uma carrinha das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian no seu blogue, explodi em memórias e, ao correr da tecla, quero declarar que muito de quem sou culturalmente, o devo a essa lata com rodas que ia visitar a minha terra, uma pequena vila sem direito a concelho a dez quilómetros de Coimbra, onde nos anos sessenta tive o direito a formar-me, graças aos conselhos de um notável bibliotecário-motorista, cujo nome não registei, mas que pegando num miúdo de dez anos me orientou bibliograficamente até à minha entrada na Universidade. Graças a ele, formei-me em marxismo quase clandestinamente logo aos catorze anos, o que foi uma adequada vacina, e talvez uma desilusão para o formador, mas agradeço, sobretudo, a perspectiva estética que me deu, sobretudo o Arrabal e a fundura daquele magnífico boletim inspirado por António Quadros que me trouxe a filosofia portuguesa, o Leonardo Coimbra, o Álvaro Ribeiro e o Agostinho da Silva. E eis como o meu bibliotecário, misto de surrealista e marxista, produziu em mim uma complexidade formativa deslumbrante, bem como o acesso a um mundo de sociedade aberta que as janelas e as portas fechadas do salazarismo elevavam à esquizofrenia. Bendita biblioteca que a tantos fez este bem de nos dar a liberdade de escolher. Bem gostaria de saber o nome de tal benfeitor, para o homenagear. Se alguém me souber dizer quem era esse empregado da Gulbenkian que percorria a zona rural de Coimbra nos anos sessenta, agradecia.

(José Adelino Maltez)

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Não feche o assunto “bibliotecas” sem lembrar as bibliotecas de associações culturais e recreativas do Barreiro nos anos 40: “Franceses”, Penicheiros” e “ Fut. Clube Barreirense”.

Repositórios públicos de livros de fronteira, entre o que era permissível ler e o que era proibido, cheios de “coleção azul”, de Blasco Ybanez, Emílio Salgari, mas também detentores de livros guardados, que só eram acessiveis a poucos “iniciados” ; estantes secretas (o meu tio Armando, bibliotecário dos “Franceses” e serralheiro extraordinário, tinha feiro uma dupla, com rolamentos, que podia abrir-se e tinha, no “lado falso”, Marx, Lenine, Engels, Jorge Amado – “Os subterrâneos da Liberdade” – John dos Passos, Bakunine, os que mais vêm à memória).

Nessas bibliotecas, o “proletariado” discutia, lia, conspirava.

Foi na do Barreirense que conheci Julio Verne; foi na dos “Franceses” que li “Estes dias tumultuosos”, do Pierre Van der Passen (onde paras, livro?!) e “O Processo Histórico” e a História Universal do César Cantu em 20 volumes, que haveria de adquirir em Cascais, num alfarrabista, há 15 anos, por 8 contos!

Eram salas grandes, com mesas e cadeiras de madeira envernizada, incómodas e ingénuas como nós.Que saudades!

Parafraseando Eça “Eramos assim, em 1948!”, antes do relatório Kruschev e da repressão na Hungria.

Quantas horas e quantas saudades da emoção, da sinceridade ingénua, da indignação verdadeira, alimentada diariamente pelos desfiles diários da cavalaria da GNR, com o capitão Homero de Matos à frente, de monóculo e “pingalim”… Foi lá que criei este amor perene pelos livros e pela leitura.

(Luis)

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A minha "biblioteca" era uma livraria na Av. de Roma, em Lisboa, a Livraria Barata. Na altura, era um espaço minúsculo, com uma secção infantil de duas ou três prateleiras, tutelada pelo Sr. Barata e pelo Sr. Afonso.

Lembro-me de aí ter passado incontáveis fins de tarde a ler, acocorada a um canto. Sempre que exagerava no tempo de leitura, o Sr. Afonso vinha "apanhar-me" e pôr-me na rua.

Mais circunspecto e sempre triste, o Sr. Barata fingia não me ver.

Mas nada me intimidava e todos os dias voltava, para continuar a ler o livro na página onde o deixara.

Hoje, já quarentona, sempre que encontro o Sr. Afonso na rua me dá vontade de rir: ele nem sonha, certamente, que foi uma das figuras mais temidas da minha infância.

(GA)

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