ABRUPTO

7.1.04


A QUADRATURA DO CÍRCULO

ou o Flashback de novo, igual em tudo ao original, o mesmo Carlos Andrade, o mesmo José Magalhães, o mesmo António Lobo Xavier, o mesmo eu, na SIC Notícias no domingo. Saudades de discutir.

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UM BLOGUE SOBRE OS CADERNOS DE CAMUS

Repito aqui uma sugestão que já tinha feito há uns meses: usar os cadernos de Camus como texto inicial para um blogue de literatura e filosofia, e, a partir dos seus textos, colocar outros textos, meta-textos sobre as entradas originais de Camus, numa espécie de trabalho colectivo, uma never ending story de inspiração camusiana. Para este tipo de coisas os blogues são uma boa fórmula e o resultado pode vir a ser publicado mais tarde em livro. (Agora que escrevo isto, outros textos também dariam blogues interessantes, certas partes da Bíblia por exemplo.)

Para resultar bem, terá que haver moderação, um grupo responsável. Se houver voluntários, passa-se à prática.

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PROTO-HISTÓRIA DOS BLOGUES



Blogues antes de haver blogues encontram-se em muitos diários, em particular nos diários, ou colecções de notas arranjadas cronologicamente. Textos como os cadernos de Camus e Paul Valery, ou os diários de Tolstoi, ou os fragmentos de Kafka, já foram aqui referidos como paradigmas de escrita que se aproxima ( e nalguns casos se afasta) do modelo dos blogues. Os blogues são herdeiros dessa escrita e a ideia original de usar os celebres diários de Samuel Pepys, colocando-os em linha, de forma a coincidir com as datas do mês, revela as diferenças e as semelhanças do quotidiano com quatrocentos anos de diferença.

Foi assim que Pepys passou o dia do senhor , o domingo de 6 de Janeiro de 1660, tal como escreveu no seu blogue:

"(Lord’s day). My wife and I to church this morning, and so home to dinner to a boiled leg of mutton all alone. To church again, where, before sermon, a long Psalm was set that lasted an hour, while the sexton gathered his year’s contribucion through the whole church. After sermon home, and there I went to my chamber and wrote a letter to send to Mr. Coventry, with a piece of plate along with it, which I do preserve among my other letters. So to supper, and thence after prayers to bed."


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TINTAS SECRETAS

É muito interessante a lista dos dez mais antigos documentos americanos por desclassificar existentes nos Arquivos Nacionais dos EUA. São os seguintes:

Memo, Heingelman to Marlenck 2 pages Created 30 October 1917

Report: Detection of Secret Ink 6 pages Created 01 January 1918

Pamphlet on Invisible Photography & Writing, Synthetic Ink,... 2 pages Created 01 January 1918

U.S. Naval Mines, Mine Anchor, Mark VI 21 pages Created 26 January 1918

Report: Secret Inks 1 page Created 16 March 1918

U.S. Naval Mines, Mine Anchor, Mark VI 42 pages Created 01 May 1918

Ordnance Pamphlet 575, Enemy Mines 62 pages Created 01 June 1918

German Secret Ink Formula 1 pages Created 14 June 1918

Report: German Secret Ink Formula 3 pages Created 14 June 1918

Ordnance Pamphlet 643 Mine Mark VI and Mods. Description and Operation 114 pages Created 01 January 1938



Embora, num ou noutro caso, a desclassificação não se tenha dado porque provavelmente nunca foi pedida, há um padrão no seu conjunto. Todos são documentos da I Guerra Mundial, com uma excepção, e têm a ver com munições e tintas secretas. As tintas secretas, que tanto entusiasmo suscitaram nos livros de espionagem da primeira metade do século XX, parecem ainda hoje ter interesse operacional. Segundo uma recusa de desclassificação de um destes documentos, (James Madison Project v. NARA, No. 98-2737 (D.D.C. Mar. 5, 2002), a CIA ainda utiliza algumas destas fórmulas.

Embora muito raramente, ainda nos anos sessenta e até ao 25 de Abril, tintas secretas eram usadas nas comunicações mais protegidas dos grupos radicais clandestinos contra o regime, em conjunto com variantes de códigos do tipo "one time pad". Ainda me lembro de escrever uma ou outra carta com tinta secreta, com o texto nas entrelinhas de uma carta vulgar, como precaução suplementar em relação a nomes de pessoas que já seguiam também em código. Se calhar dava jeito, nessa altura, conhecer estas "german secret inks", porque desconfio que a fórmula que usávamos era muito primitiva e a PIDE não teria muita dificuldade em revelá-la.

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EARLY MORNING BLOGS 111

não podiam regressar melhor do que com uma manhã camoneana, a da Ode V. Verdade seja dita que, onde estou, a "noite grave" continua e as "naus" dificilmente se podem alegrar, porque não há "raios" nenhuns. Deixo de parte, como é evidente, qualquer "luz" dos "olhos vossos", porque isso não é matéria de blogue.

Ode V

Nunca manhã suave,
Estendendo seus raios pelo Mundo,
Depois de noite grave,
Tempestuosa, negra, em mar profundo,
Alegrou tanta nau, que já no fundo
Se viu em mares grossos,
Como a luz clara a mim dos olhos vossos.

Aquela fermosura
Que só no virar deles resplandece,
Com que a sombra escura
Clara se faz, e o campo reverdece,
Quando meu pensamento se entristece,
Ela e sua viveza
Me desfazem a nuvem da tristeza.

O meu peito, onde estais,
É, pera tanto bem, pequeno vaso;
Quando acaso virais
Os olhos, que de mim não fazem caso,
Todo, gentil Senhora, então me abraso
Na luz que me consume
Bem como a borboleta faz no lume.

Se mil almas tivera
Que a tão fermosos olhos entregara,
Todas quantas tivera
Pelas pestanas deles pendurara;
E, enlevadas na vista pura e clara,
Posto que disso indinas,
Se andaram sempre vendo nas meninas.

E vós, que descuidada
Agora vivereis de tais querelas,
De almas minhas cercada,
Não pudésseis tirar os olhos delas.
Não pode ser que, vendo a vossa entre elas,
A dor que lhe mostrassem,
Tantas ũa alma só não abrandassem.

Mas, pois o peito ardente
Ũa só pode ter, fermosa Dama,
Basta que esta somente,
Como se fossem duas mil, vos ama,
Pera que a dor de sua ardente flama
Convosco tanto possa
Que não queirais ver cinza ũa alma vossa.


(Camões)

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6.1.04


TEMPO, TEMPO

a caminho. Mesmo assim (ou assim mesmo?), pego o tempo a caminho. Em breve, volto. Cada vez mais breve. Até já.

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NENHUM, NENHUM

tempo para o Abrupto. Volto em breve.

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4.1.04



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O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES

Sobre NECROLOGIAS

Um pouco à margem do tema deste post lamento a ligação "provincianismo-Minho" que, embora sirva aqui apenas para adjectivar, bem ou mal, o indivíduo em causa, nos remete para a eterna visão "de Lisboa e Porto e o resto é paisagem" ainda presente no imaginário colectivo nacional, sublinhada pela generosa inclusão "mesmo" de uma cidade como o Porto nessa classificação.

Julgo que nos dias de hoje, mesmo os maiores cidadãos do mundo não deixam nunca de ter presente os diferentes graus de identidade geográfica por onde se movem, ou por onde já passaram, sejam de nível regional, nacional ou civilizacional. A falta de um desses elementos parece-me difícil de acontecer a quem quer que seja, podendo, talvez mesmo, acumular diferentes "níveis", como os muitos migrantes que, mudando de cidade dentro de um mesmo país, alteram o próprio sotaque.

Por outro lado, no nosso país, a dicotomia capital-província ter-se-à acentuado no século passado graças a anos de isolamento do exterior, centralismo excessivo típico de um país pouco desenvolvido, e pela longa manutenção de um império colonial com sede em Lisboa. A rotulagem de Braga como "província" foi ainda brutalmente ampliada pelo seu conhecido posicionamento político durante as passadas décadas, tendo a cidade sido absolutamente ostracizada após o 25 de Abril, o que só não se reflectiu no seu desenvolvimento, ironicamente, pela "ditadura" que se auto impôs.

Num mundo global, em que os traços de pertença regional dos sujeitos continuam insistentemente a sobreviver (embora já condenados à extinção vezes sem conta) e se vão integrando noutros de nível mais vasto, correspondentes aos diferentes palcos por onde se movem, não será, isso sim, sinal de provincianismo, a tentativa de manutenção desse velho e sufocante paradigma de divisão geográfica "capital-província"? Vista de Berlim ou Bruxelas, haverá alguma coisa mais provinciana que a velha revista do Parque Mayer?


(Luis Pedro Machado)

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3.1.04


NECROLOGIAS

Está visto que o dia está fadado para necrologias. Deve ser sina dos dias bonitos de Inverno. Leio no Aviz e no Almocreve das Petas notícias sobre o suicídio de Eduardo Guerra Carneiro. São escritas com saudade, amizade, proximidade e com o incómodo, com a culpa, que os suicidas espalham à sua volta.

Eu também estive neste ofício dos mortos, a escrever uma nota necrológica sobre Victor Sá para os Estudos sobre Comunismo. Com uma diferença: no pouco que conheci pessoalmente de Victor Sá, nunca tive a menor simpatia pelo homem. Tenho dele uma impressão de arrogância dogmática e sectária, muito comum nos comunistas provincianos do Minho, de Famalicão, de Braga, mesmo do Porto. Acresce que ele escrevia sobre o movimento operário, e a mesma ortodoxia agressiva perpassava nos textos. Depois do 25 de Abril, quando tiveram algum poder, eram intransigentes e bem pouco “democratas”.

No entanto, quando se faz de Deus e se escrevem estes balanços de vida, fica uma sensação contraditória sobre o homem. Ele teve uma vida que a PIDE, e essa personagem sinistra que era Santos da Cunha, se encarregaram de estragar com afã. E ele voltava ao mesmo, a fazer as mesmas coisas, com uma persistência que só uma fé poderosa e moderna como era o comunismo explicava. Ainda hoje não sei como é que nesta rectidão, motivada pelas piores ideias, se define uma moral, se há uma moral. Garanto-vos que, visto de perto, não é simples.

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SEM VÓS O QUE SÃO OS MEUS OLHOS ABERTOS?


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EARLY MORNING BLOGS 110

Devia falar de manhãs, à luz destas manhãs esplendorosas de Inverno, com sol e frio. Mas hoje fico pelo tempo, o que nunca se fixa, o que faz as manhãs diferentes:

Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!....

Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
– Porque ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos?
– O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...

Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
– Estranha sombra e movimentos vãos
.”

(Camilo Pessanha)

*

Bom dia!

*

Breve nota de engano meu: afinal o poema de Eleanor Farjeon, musicado por Cat Stevens, já tinha sido publicado há 60 manhãs atrás. Obrigado a José Carlos Santos que o enviou originalmente e que me recordou o erro.

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VER A NOITE

Não deve andar muita gente lá fora, a estas horas. Nas terras ali fora, no campo, sem ser de carro, a pé. Está uma noite estranha, uma combinação de vento forte com rajadas muito frias, mesmo muito frias. À luz de uma metade de Lua, com algumas estrelas ao fundo, num céu apesar de tudo negro. O frio manda, atravessando as árvores sem folhas. Ao longe, numa árvore iluminada para as festas, as pequenas luzes oscilam furiosamente com o vento. Não temos florestas “negras”, mas, se as tivéssemos, não era hora para atravessar nenhuma.

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2.1.04


PRAISE FOR THE SWEETNESS OF THE WET GARDEN


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EARLY MORNING BLOGS 109

Este “Morning has broken” cantado por Cat Stevens, enviado pela Isabel Goulão, representa para mim parte de uma memória especial, gravada pelo mesmo processo inapagável pelo qual um som ou um cheiro nos trazem todo um mundo. O poema é de Eleanor Farjeon, uma escritora menor, amiga de D.H. Lawrence e Robert Frost, entretanto esquecida. A voz de Cat Stevens era a única que me acompanhava numa casa em que estive escondido da PIDE antes do 25 de Abril, e durante tempo demais, quase às escuras pelo que era difícil ler, esperava que o meu único contacto com o mundo exterior me trouxesse jornais, comida e , acima de tudo, notícias sobre o que podia estar a desabar à nossa volta, os amigos presos, a ansiedade em perceber o que se estava a passar, com os ténues meios que se podiam usar. O único disco que havia naquela casa era de Cat Stevens e eu tinha que o ouvir muito baixo. Não sei quantas vezes o ouvi, mas foram muitas.

1)
Morning has broken like the first morning,
blackbird has spoken like the first bird.
Praise for them singing, praise for the morning,
praise for them springing, fresh from the world.

(2)
Sweet the rain's new fall sunlit from heaven,
like the first dewall on the first grass.
Praise for the sweetness of the wet garden,
sprung in completeness where his feet pass.

(3)
Mine is the sunlight ! Mine is the morning
born on the one light Eden saw play !
Praise with elation, praise every morning
God's recreation of the new day.


(Cat Stevens / Eleanor Farjeon)

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1.1.04


IMAGENS

dos últimos dias : uma montanha andina de Frank Church, de 1859, uma ponte tirolesa de madeira de Lovis Corinth, o jovem em cima da cama é de Sara Rossberg, de 1985, um ribeiro de Courbet, e um “gobelet d’argent” de Chardin no Ano Novo. É assim, uma poeira de imagens e de coisas, que assenta, pouco a pouco, no branco do ecrã.

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BIBLIOFILIA 7



Livros que estou a ler, ensaios para trás e para a frente, mas que podem ser recomendados em absoluto, mesmo antes de chegar ao fim.

Joan Didion, Political Fictions, Nova Iorque, Vintage International, 2001

Jornalismo político bem escrito, bem documentado e agressivo. Jornalismo político de revista, encomendado com antecedência, o que permite aos autores acompanhar o seu tema (um político, uma campanha, um escândalo) em tempo real. Veja-se o soberbo “Clinton Agonistes”, que começa assim:

No one who ever passed through an American public high school could have watched William Jefferson Clinton running for Office in 1992 and failed to recognize the familiar predatory sexuality of the provincial adolescent”.

Tanta coisa interessante em Portugal que dava livros destes, o caso D. Branca, o Big Brother, a Casa Pia, e não há nada do género…

Esther de Lemos, Estudos Portugueses, Porto. Elementos Sudoeste, 2003

Apesar do “Esther”, esta senhora, que só conhecia das publicações da União Nacional, colige aqui uma série de ensaios sobre a literatura portuguesa muito interessantes. São sobre obras que deixamos de ler, como as Vinte Horas de Liteira de Camilo. Mostram a solidez da crítica literária do passado, esquecida nas páginas do Comércio do Porto, do Graal e do Panorama, sem qualquer paralelo no fôlego teórico e no cuidado analítico, com a dos dias de hoje.

Louis Menand, The Metaphysical Club. A Story of Ideas in América, Nova Iorque, Farrar, Staruss and Giroux, 2000

Um estudo do enorme impacto da Guerra Civil Americana na história das ideias até à Primeira Guerra Mundial.

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MAIS "UTENTES"

"O que me levou a escrever este comentário foi a troca de posts entre os dois [Vital Moreira e JPP] face às noções de utente e consumidor, justamente a propósito da saúde. Talvez discorde de ambos, mas vamos por partes.

No plano da utilização das referidas "comissões de utentes" , nomeadamente pelo PCP com o intuito exclusivo de aproveitamento de um canal de batalha partidária, instrumentalizando as ditas comissões, nos casos que conheço à boa maneira do PC que conhecemos. Por razões profissionais (trabalho em planeamento e desenvolvimento local) dei com casos em que as mesmas pessoas me apareceram em reuniões do sector da saúde, do sector dos transportes, etc. sempre como "representantes" da comissão de utentes do respectivo sector ou ainda de "amigos do hospital x". Não posso aqui discordar mais de Vital Moreira na medida em que não sendo "a paternidade" das comissões de utentes do PCP, aquele partido usa-as , as que pode, como terreno partidário e portanto nesse caso não são "os utentes (...) organizados em "grupos de interesse" com força suficiente para contrabalançar o peso dos sindicatos de funcionários e das ordens profissionais", até porque, muitas vezes, aquelas pessoas nem sequer são "utentes", por exemplo, de transportes públicos, mas estão ali como militantes partidários para ocupar, digamos, "tempo de antena". Ora, não é disto que o exercício da cidadania precisa, a meu ver, mas sim da participação activa dos cidadãos enquanto tal e não enquanto militantes funcionários de um partido com uma lógica que nada tem a ver com a lógica da democracia participativa onde os cidadãos, enquanto tal, exercem direitos e deveres cívicos (citizenship - no sentido de relação jurídica entre o cidadão e o Estado) mas ainda, e disso a nossa democracia é ainda mais deficitária, de uma cidadania "em acção" (citizenry). O trabalho na comunidade local (community work), onde teríamos muito a aprender com experiências locais enraízadas em culturas democráticas como as do norte da américa (EUA e Canadá).

Lá fora, para usar a expressão de Vital Moreira, não se trata de "comissões de utentes", mas sim de cidadãos que assumem na prática, em pleno, essa condição, nomeadamente ao nível territorial de proximidade aos problemas reais e à vida quotidiana dos mesmos cidadãos, isto é, ao nível das respectivas comunidades locais.

No plano dos conceitos de utente e consumidor, no modelo de sociedade e respectiva economia, em que vivemos, é enquanto consumidores que também deveremos exercer a nossa cidadania e não vejo que "venha mal ao mundo" por sermos consumidores, também de serviços públicos, e nessa condição, precisamente, sermos consumidores activos e não meros utentes passivos de um serviço que é visto como obrigação que o Estado tem em prestar aos "utentes de serviços públicos". Numa sociedade em que os cidadãos têm também deveres como contribuintes, entre outros, e aí sim, o Estado tem também deveres face a esses cidadãos, tendo preocupações sociais, nomeadamente, no sentido de conferir poder aos que dele mais afastados estão. Portanto, independentemente de estar ou não de acordo com a forma e o modelo de empresarialização dos hospitais - não é isso que se discute aqui - julgo que a ideia de menorização do nosso papel de consumidor e de valorização do nosso suposto papel de "utente" é errónea.

Em primeiro lugar porque o consumidor não é um "simples consumidor", mas é, ou deveria ser cada vez mais, isso sim, um consumidor-cidadão, activo, também, e por maioria de razão, numa economia de mercado, onde o seu papel é crucial ao funcionamento da mesma. Em segundo lugar porque a lógica do consumo inevitavelmente numa sociedade que nele se baseia estendeu-se igualmente aos serviços. Certamente que consumir serviços de saúde, de educação, de cultura, não é equivalente de consumir detergentes, mas também o consumo de obras de arte não é equivalente do consumo de dentífricos, mas nem por isso todos eles deixam de ser práticas de consumo uma vez levadas a efeito no âmbito de uma economia de mercado. E sabemos bem que a produção de serviços de saúde, educação, cultura, etc. se faz, crescentemente, tendo em conta a sua mercadorização, e não vejo que, também por aí, "venha mal ao mundo", assim os critérios de concorrência que a tal obrigam sejam claros e pautados pela optimização da qualidade e excelência face à sua procura no mercado por consumidores cada vez mais informados e exigentes.

O que é fundamental é que os direitos e deveres de consumidores e produtores estejam acautelados e que os cidadãos tenham, também enquanto consumidores, crescente poder. Quanto ao "utente" ele parece-me fazer parte de outra era. Justamente uma era em que o cidadão era tratado, no "guichet", como mero utente, sem direitos e apenas com obrigações de reverência face ao Estado. O ideal seria, de facto, caminharmos para uma sociedade de consumidores activos, responsáveis e com poder de exercício activo da sua cidadania. O que precisamos é da expressão organizada dos cidadãos (também como consumidores de serviços públicos e privados) e não de "utentes"...
"

(Walter Rodrigues)

"Sou o Presidente da Direcção da Associação de Utilizadores do IP4 e será bom esclarecer a génese desta associação, e até do seu nome (que é utilizadores e não utentes propositada e precisamente pela ordem de ideias exposta no seu comentário de 2"6.12).

O comentário de Rui M. é todo ele injusto pela sua generalização e ligeiro até na identificação da comissão do IC19 que não é de utilizadores mas sim de utentes e isso faz muita diferença - até para se perceber quem é prolongamento e quem não é.

A nossa associação constituiu-se regularmente por escritura pública e tem em andamento o processo do seu reconhecimento legal; nas fichas de adesão para sócios recolhemos sugestões e opiniões de todas as cerca de 1000 pessoas que se associaram; a todas elas enviámos convocatórias para a assembleia geral que elegeu os órgãos socias onde explicitámos os objectivos estatutários da associação pelos quais temos regido toda a nossa actividade; todas as folhas de recolha de assinaturas (cerca de 11000) duma petição que entregámos ao PM tinham o texto completo e o fundamento legal da petição; temos as nossas continhas implacavelmente documentadas; a direcção é composta de um militante partidário (eu, efectivamente, que até me vi a contribuir para um programa eleitoral mais por ser da "sociedade civil" - outro termo bonito - que por ser militante, e mesmo quando enquanto militante até tenho algum empenho em produzir documentos e propostas; outra boa questão: não poderiam os partidos abertamente ter actividade nestas causas das associações? não serão elas escapes para o anquilosamento dos partidos?) de resto, na direcção, é mais um informático paraquedista, uma jurista, um eng.º, um piloto de ralis, um benfiquista e a associação de estudantes do Piaget de Macedo de Cav.

Houve no nosso caso um sério processo de legitimação e a meia dúzia de pessoas que constitui a nossa direcção é gente de bem (não é que os militantes do PCP não o sejam, claro está...). A democracia custa a praticar, mas consegue-se, e era bom que Rui M. soubesse que há quem tente e não ande aqui pela imagem, nem cede nos princípios. Sendo pertinente a observação de Rui M. quanto à legitimidade, porque de facto já pensei muitas vezes que posso numa entrevista estar a ser apresentado como representante de pessoas que nunca pediram ou quiseram ser representadas por esta associação, mas esta pode ser uma questão da qualidade do jornalismo que se faz mais que da legitimidade de quem é entrevistado; Dispenso-me de elencar o que tem sido a nossa actividade, as nossas campanhas, as nossas propostas, não obstante muitas vezes, por não saberem o que fazemos ou dizemos de facto nos ponham na boca palavras que nunca dissemos.

(…)

Rui M. não sabe por ex. que nunca fizemos qualquer manifestação, qualquer corte de estrada; que todas as nossas iniciativas visaram sempre um propósito de sensibilização (por pouco eficaz que esta possa ser). O termo utilizadores foi por nós propositadamente usado como fuga, como alternativa ao termo utentes e o termo associação também foi propositadamente usado, e legalizado, como alternativa a esse das comissões, bastante mais fáceis de constituir.
O comentário dos telefonemas aos jornalistas é também ele injusto, mas neste caso para os jornalistas, pois pressupõe que os mesmos não têm critério para escolher ou avaliar a credibilidade de quem entrevistam. E no nosso caso até nem é por telefonemas, é por mail. Dizemos o que vamos fazer, se cobrem a iniciativa cobrem, se não cobrem não cobrem. O resultado é o mesmo que se não tivéssemos um milhar de associados, é verdade, mas sabe muito melhor assim, sabe a democracia. E olhe que também já provámos muitas vezes o sabor à demagogia e o que é curioso é que essa é-nos sempre servida por "democratas" dos partidos (todos, até do meu)."


(Luís Mota Bastos)



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INTERNET PIMBA

Para os que acreditam que as tecnologias provocam revoluções sem mediação social, ou seja, sem ser em conjugação com os factores sociais que as condicionam, pode-se ver um interessante retrato da Internet através das procuras mais comuns no Yahoo em 2003. Presumo que os resultados omitem as procuras com termos ligados ao sexo, (que ainda devem ser mais comuns no Google) embora o Yahoo tenha deixado elementos para se perceber a sua importância através de estatísticas sobre o caso Paris Hilton que nos enche o correio de spam.
É, são as literacias a montante e a jusante que explicam tudo, não o mero acesso a novas tecnologias. Não é só a televisão que é pimba.

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© José Pacheco Pereira
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