ABRUPTO

1.1.04


MAIS "UTENTES"

"O que me levou a escrever este comentário foi a troca de posts entre os dois [Vital Moreira e JPP] face às noções de utente e consumidor, justamente a propósito da saúde. Talvez discorde de ambos, mas vamos por partes.

No plano da utilização das referidas "comissões de utentes" , nomeadamente pelo PCP com o intuito exclusivo de aproveitamento de um canal de batalha partidária, instrumentalizando as ditas comissões, nos casos que conheço à boa maneira do PC que conhecemos. Por razões profissionais (trabalho em planeamento e desenvolvimento local) dei com casos em que as mesmas pessoas me apareceram em reuniões do sector da saúde, do sector dos transportes, etc. sempre como "representantes" da comissão de utentes do respectivo sector ou ainda de "amigos do hospital x". Não posso aqui discordar mais de Vital Moreira na medida em que não sendo "a paternidade" das comissões de utentes do PCP, aquele partido usa-as , as que pode, como terreno partidário e portanto nesse caso não são "os utentes (...) organizados em "grupos de interesse" com força suficiente para contrabalançar o peso dos sindicatos de funcionários e das ordens profissionais", até porque, muitas vezes, aquelas pessoas nem sequer são "utentes", por exemplo, de transportes públicos, mas estão ali como militantes partidários para ocupar, digamos, "tempo de antena". Ora, não é disto que o exercício da cidadania precisa, a meu ver, mas sim da participação activa dos cidadãos enquanto tal e não enquanto militantes funcionários de um partido com uma lógica que nada tem a ver com a lógica da democracia participativa onde os cidadãos, enquanto tal, exercem direitos e deveres cívicos (citizenship - no sentido de relação jurídica entre o cidadão e o Estado) mas ainda, e disso a nossa democracia é ainda mais deficitária, de uma cidadania "em acção" (citizenry). O trabalho na comunidade local (community work), onde teríamos muito a aprender com experiências locais enraízadas em culturas democráticas como as do norte da américa (EUA e Canadá).

Lá fora, para usar a expressão de Vital Moreira, não se trata de "comissões de utentes", mas sim de cidadãos que assumem na prática, em pleno, essa condição, nomeadamente ao nível territorial de proximidade aos problemas reais e à vida quotidiana dos mesmos cidadãos, isto é, ao nível das respectivas comunidades locais.

No plano dos conceitos de utente e consumidor, no modelo de sociedade e respectiva economia, em que vivemos, é enquanto consumidores que também deveremos exercer a nossa cidadania e não vejo que "venha mal ao mundo" por sermos consumidores, também de serviços públicos, e nessa condição, precisamente, sermos consumidores activos e não meros utentes passivos de um serviço que é visto como obrigação que o Estado tem em prestar aos "utentes de serviços públicos". Numa sociedade em que os cidadãos têm também deveres como contribuintes, entre outros, e aí sim, o Estado tem também deveres face a esses cidadãos, tendo preocupações sociais, nomeadamente, no sentido de conferir poder aos que dele mais afastados estão. Portanto, independentemente de estar ou não de acordo com a forma e o modelo de empresarialização dos hospitais - não é isso que se discute aqui - julgo que a ideia de menorização do nosso papel de consumidor e de valorização do nosso suposto papel de "utente" é errónea.

Em primeiro lugar porque o consumidor não é um "simples consumidor", mas é, ou deveria ser cada vez mais, isso sim, um consumidor-cidadão, activo, também, e por maioria de razão, numa economia de mercado, onde o seu papel é crucial ao funcionamento da mesma. Em segundo lugar porque a lógica do consumo inevitavelmente numa sociedade que nele se baseia estendeu-se igualmente aos serviços. Certamente que consumir serviços de saúde, de educação, de cultura, não é equivalente de consumir detergentes, mas também o consumo de obras de arte não é equivalente do consumo de dentífricos, mas nem por isso todos eles deixam de ser práticas de consumo uma vez levadas a efeito no âmbito de uma economia de mercado. E sabemos bem que a produção de serviços de saúde, educação, cultura, etc. se faz, crescentemente, tendo em conta a sua mercadorização, e não vejo que, também por aí, "venha mal ao mundo", assim os critérios de concorrência que a tal obrigam sejam claros e pautados pela optimização da qualidade e excelência face à sua procura no mercado por consumidores cada vez mais informados e exigentes.

O que é fundamental é que os direitos e deveres de consumidores e produtores estejam acautelados e que os cidadãos tenham, também enquanto consumidores, crescente poder. Quanto ao "utente" ele parece-me fazer parte de outra era. Justamente uma era em que o cidadão era tratado, no "guichet", como mero utente, sem direitos e apenas com obrigações de reverência face ao Estado. O ideal seria, de facto, caminharmos para uma sociedade de consumidores activos, responsáveis e com poder de exercício activo da sua cidadania. O que precisamos é da expressão organizada dos cidadãos (também como consumidores de serviços públicos e privados) e não de "utentes"...
"

(Walter Rodrigues)

"Sou o Presidente da Direcção da Associação de Utilizadores do IP4 e será bom esclarecer a génese desta associação, e até do seu nome (que é utilizadores e não utentes propositada e precisamente pela ordem de ideias exposta no seu comentário de 2"6.12).

O comentário de Rui M. é todo ele injusto pela sua generalização e ligeiro até na identificação da comissão do IC19 que não é de utilizadores mas sim de utentes e isso faz muita diferença - até para se perceber quem é prolongamento e quem não é.

A nossa associação constituiu-se regularmente por escritura pública e tem em andamento o processo do seu reconhecimento legal; nas fichas de adesão para sócios recolhemos sugestões e opiniões de todas as cerca de 1000 pessoas que se associaram; a todas elas enviámos convocatórias para a assembleia geral que elegeu os órgãos socias onde explicitámos os objectivos estatutários da associação pelos quais temos regido toda a nossa actividade; todas as folhas de recolha de assinaturas (cerca de 11000) duma petição que entregámos ao PM tinham o texto completo e o fundamento legal da petição; temos as nossas continhas implacavelmente documentadas; a direcção é composta de um militante partidário (eu, efectivamente, que até me vi a contribuir para um programa eleitoral mais por ser da "sociedade civil" - outro termo bonito - que por ser militante, e mesmo quando enquanto militante até tenho algum empenho em produzir documentos e propostas; outra boa questão: não poderiam os partidos abertamente ter actividade nestas causas das associações? não serão elas escapes para o anquilosamento dos partidos?) de resto, na direcção, é mais um informático paraquedista, uma jurista, um eng.º, um piloto de ralis, um benfiquista e a associação de estudantes do Piaget de Macedo de Cav.

Houve no nosso caso um sério processo de legitimação e a meia dúzia de pessoas que constitui a nossa direcção é gente de bem (não é que os militantes do PCP não o sejam, claro está...). A democracia custa a praticar, mas consegue-se, e era bom que Rui M. soubesse que há quem tente e não ande aqui pela imagem, nem cede nos princípios. Sendo pertinente a observação de Rui M. quanto à legitimidade, porque de facto já pensei muitas vezes que posso numa entrevista estar a ser apresentado como representante de pessoas que nunca pediram ou quiseram ser representadas por esta associação, mas esta pode ser uma questão da qualidade do jornalismo que se faz mais que da legitimidade de quem é entrevistado; Dispenso-me de elencar o que tem sido a nossa actividade, as nossas campanhas, as nossas propostas, não obstante muitas vezes, por não saberem o que fazemos ou dizemos de facto nos ponham na boca palavras que nunca dissemos.

(…)

Rui M. não sabe por ex. que nunca fizemos qualquer manifestação, qualquer corte de estrada; que todas as nossas iniciativas visaram sempre um propósito de sensibilização (por pouco eficaz que esta possa ser). O termo utilizadores foi por nós propositadamente usado como fuga, como alternativa ao termo utentes e o termo associação também foi propositadamente usado, e legalizado, como alternativa a esse das comissões, bastante mais fáceis de constituir.
O comentário dos telefonemas aos jornalistas é também ele injusto, mas neste caso para os jornalistas, pois pressupõe que os mesmos não têm critério para escolher ou avaliar a credibilidade de quem entrevistam. E no nosso caso até nem é por telefonemas, é por mail. Dizemos o que vamos fazer, se cobrem a iniciativa cobrem, se não cobrem não cobrem. O resultado é o mesmo que se não tivéssemos um milhar de associados, é verdade, mas sabe muito melhor assim, sabe a democracia. E olhe que também já provámos muitas vezes o sabor à demagogia e o que é curioso é que essa é-nos sempre servida por "democratas" dos partidos (todos, até do meu)."


(Luís Mota Bastos)



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