Há uma razão iniludível pela qual a DREN tem que ser demitida e o governo fica muito mal se o não fizer - o acto da senhora DREN é apenas o momento mais vísivel de um problema de fundo da nossa administração pública: a politização das suas chefias. A biografia da senhora professora que é actuamente a DREN revela essa sobreposição entre carreiras no estado e compromissos partidários. Sendo profissionalmente educadora de infância, foi dirigente da Juventude Socialista, sindicalista muito activa contra o governo de Cavaco Silva com o mesmo zelo com que hoje toma medidas anti-sindicais, e o seu currículo revela a estrita correspondência dos cargos de nomeação governamental com as datas em que o PS chega ao poder, com Guterres em 1995 e Sócrates em 2005, para além do seu papel no gabinete do ministro Santos Silva. Esta biografia é reveladora e é típica dos militantes socialistas (e do PSD quando este está no poder) que são nomeados por fidelidade e clientelismo partidário a assumir funções de controlo político de áreas sensíveis da administração pública.
Se se permite que este tipo de prepotências claramente politizadas passe impune, contribui-se para um clima de medo e retaliação na função pública no momento muito delicado em que se estabelecem quotas de classificações e se preparam quadros de excedentes. O ambiente na função pública já é demasiado carregado, por boas e más razões, com muito medo instalado, medo mesmo, para se dar mais essa machadada na legitimidade das chefias quando são chamadas a escolher, a decidir sobre a vida das pessoas. Já chega a notória incapacidade de muitas chefias na função pública para reconhecerem um mérito que elas próprias raramente tem, para agora permitir em público uma exibição grosseira de controlo político-partidário.
Este é um dos calcanhares de Aquiles de qualquer reforma da administração pública: a confiança de que as classificações atribuídas aos funcionários têm a ver com o mérito e não com o partido ou as simpatias políticas. Se a DREN ficar nas suas funções, e não se demitir ou for demitida, o medo crescerá, mas o potencial das reformas, que já é escasso, será ainda mais minado por dentro. Esta é que é a questão de fundo.
Embora todos os anos se diga que a Feira (de Lisboa) está pior, para um bibliófilo está mesmo cada vez pior. A culpa não é da Feira em si, que, melhor ou pior, continua a ser uma boa iniciativa urbana, a culpa primeira está nos mais vocais queixosos da Feira, os editores. São os editores que publicando quilómetros de lixo, que enchem as livrarias e os balcões da Feira, tornam o livro que se vende novo completamente desinteressante. Há excepções, claro, excelentes editoras, mas a regra é o livrinho de capa frívola e texto imbecil de qualquer autor secundário na moda este ano, desaparecido do mapa no seguinte. Cada vez mais reforço a minha moratória de só ler livros (de ficção) que resistam dez anos em qualquer memória viva. Assim, é natural que acabem por ser os balcões dos alfarrabistas aqueles que mais gente tem à volta, e foi isso o que observei na Feira. Nos alfarrabistas, infelizmente poucos, encontram-se as verdadeiras "novidades", os velhos livros que nunca conhecera, os livros que sempre quisera ter e não tivera dinheiro para comprar, os livros que antes nunca pensei comprar e agora compro com gosto. Os livros é assim, sempre surpresas, sempre infinitos, cabem sempre mais. Na colheita deste ano, na primeira apanha, aqui estão alguns.
Várias grandes capas, com relevo para uma do mestre Sebastião Rodrigues, num livro de William Styron:
Depois há aquilo que um frequentador de alfarrabistas encontra vezes sem conta: bibliotecas mortas, em decomposição, cada livro vendido misturado anonimamente em pilhas que anunciam os preços, um euro, dois, cinco. Percebe-se que já houve um nexo, uma escolha, uma selecção, entretanto perdida, quase sempre por morte, por doença, por pobreza, raras vezes por desinteresse. Os herdeiros, esses grandes inimigos das bibliotecas pessoais, fizeram aqui a sua obra dissolvente. Em mais do que um alfarrabista, nos tabuleiros, encontrei esses restos que agora, combatendo contra a seta do tempo, vou tentar reconstituir, até ao meu próprio Dia.
Por exemplo, alguém gostava de livros sobre as tecnologias dos transportes, barcos e aviões,
alguém gostava de literatura francesa dos anos trinta e quarenta (os anos da sua juventude?), Mauriac, em particular, Gide, Julien Benda, Colette. Este livro de Benda, uma série de críticas literárias, nunca tinha visto.
Depois há os restos que já vivem solitários, que se compram individualmente, mais por curiosidade, por mania bibliófila: um Múrias "imperial", um João das Regras comentando em tempo quase real, os julgamentos de Nuremberg, uma biografia de Chiang Kai Shek (na grafia da época), um livro curioso e raro sobre ocultismo.
1033 - Tout ce qui m'est extérieur m'est étranger désormais.
Tout ce qui m'est extérieur m'est étranger désormais. Je n'ai plus en ce monde ni prochain, ni semblables, ni frères. Je suis sur la terre comme dans une planète étrangère, où je serais tombé de celle que j'habitais. Si je reconnais autour de moi quelque chose ce ne sont que des objets affligeants et déchirants pour mon coeur, et je ne peux jeter les yeux sur ce qui me touche et m'entoure sans y trouver toujours quelque sujet de dédain qui m'indigne, ou de douleur qui m'afflige. Ecartons donc de mon esprit tous les pénibles objets dont je m'occuperais aussi douloureusement qu'inutilement. Seul pour le reste de ma vie, puisque je ne trouve qu'en moi la consolation, l'espérance et la paix, je ne dois ni ne veux plus m'occuper que de moi. C'est dans cet état que je reprends la suite de l'examen sévère et sincère que j'appelai jadis mes Confessions. Je consacre mes derniers jours à m'étudier moi-même et à préparer d'avance le compte que je ne tarderai pas à rendre de moi. Livrons-nous tout entier à la douceur de converser avec mon âme puisqu'elle est la seule que les hommes ne puissent m'ôter. Si à force de réfléchir sur mes dispositions intérieures je parviens à les mettre en meilleur ordre et à corriger le mal qui peut y rester, mes méditations ne seront pas entièrement inutiles, et quoique je ne sois plus bon à rien sur la terre, je n'aurai pas tout à fait perdu mes derniers jours. Les loisirs de mes promenades journalières ont souvent été remplis de contemplations charmantes dont j'ai regret d'avoir perdu le souvenir. Je fixerai par l'écriture celles qui pourront me venir encore; chaque fois que je les relirai m'en rendra la jouissance. J'oublierai mes malheurs, mes persécuteurs, mes opprobres, en songeant au prix qu'avait mérité mon coeur.
(Jean-Jacques Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire.)
Tendo em conta a nossa experiência actual de uma sua variante estandartizada, vale a pena rever um mestre Robot Politician muito mais divertido, feito por Peter Ustinov e o Muppet Show. .
The year's at the spring, And day's at the morn; Morning's at seven; The hill-side's dew-pearl'd; The lark's on the wing; The snail's on the thorn; God's in His heaven-- All's right with the world!
LENDO VENDO OUVINDO ÁTOMOS E BITS de 30 de Maio de 2007
Uma característica dos nossos dias: a enorme hostilidade comunicacional às greves, tão evidente em noticiários como o da SIC. O governo agradece que o olhar dos jornalistas sobre a greve seja uma réplica do seu, tão evidente no efeito de espelho dos jornalistas, que queriam que a CGTP usasse a mesma grelha de análise dos secretários de estado. O modo como impediram Carvalho da Silva de falar contrasta com o silêncio reverencial com que ouviram secretários de estado tirar "lições políticas" da greve. Diante deles, mal ou bem, Carvalho da Silva dava informações que nenhum órgão de comunicação tinha dado, como, por exemplo, que houve cerca de sessenta voos cancelados nos aeroportos. Eu gostava de o ter ouvido, para fazer o meu julgamento, em particular os exemplos concretos dados, mesmo sem os números globais que são fáceis de avançar pelo governo mas que são (como muitos números sindicais) uma mistificação. Sinais dos tempos.
NOTA suplementar - Pelo contrário, a SICN, no noticiário das 22 horas com Ana Lourenço, está a tratar com muita seriedade a questão da greve. Faz uma diferença!
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E só porque estou ao computador enquanto vejo o telejornal na tv, o que faz deste um mail de impulso.2 pontos:
1.não posso deixar de me perguntar quem são os "intended observers" dessa conferência de imprensa do governo. Os óbvios seriam: o país e os sindicatos. Mas se é perfeitamente lógico perceber o segundo caso, o mesmo não se passa para o primeiro. Sobretudo porque hoje em dia os eventos escondem múltiplas causas: a fraca adesão à greve será provavelmente melhor explicada por receios em casos de precaridade no trabalho do que por concordância com as políticas do governo. O que faz, na minha opinião, com que todos desenvolvam má vontade para com o governo. Ninguém gosta de ver as suas circunstâncias difíceis expostas na praça pública como uma vitória.
2. Esquecendo as causas, o evento em si, que parece de facto não ter atingido os propósitos, também me remete para uma outra questão: é que se começamos a falar de "cabeças-duras", devemos talvez olhar também para os sindicatos. Há 20 anos que vemos as mesmas caras, com os mesmos discursos; e não é segredo para ninguém que dentro das empresas (tanto privadas como públicas) os sindicatos começam a ter tão má imagem como as administrações prepotentes, e não conseguem disfarçar certas fragilidades, e certas tentações. Pessoalmente, acabo por respeitar Carvalho da Silva. Mas não chega para limpar a imagem gasta e falsa de muitos outros. Não deveriam estas organizações ser também mais democráticas?
(Paulo L)
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Eu por acaso senti o oposto, ao ver o da RTP1: tudo estava fechado, nada funcionava e não foi assim o meu dia. Num país com alguns milhões de trabalhadores poderá uma reportagem de telejornal ser exacta ou fazer mais que ilustrar com meia dúzia de exemplos uma impressão geral? A verdadeira notícia seria dada em números: “tantos trabalhadores (% do total) fizeram greve”, incluindo na contagem os do sector privado, que também são portugueses e trabalhadores (embora nestes dias pareça que só são trabalhadores os dos transportes, educação e saúde). É deplorável dizer que fecharam mais de mil escolas, sem dizer o que ouvi mais tarde que é serem 11 mil o total das escolas e sem dizer o que é a minha experiência pessoal: numa escola com cerca de 20 professores, 3 educadores de infância e meia dúzia de auxiliares, fecha por greve da meia dúzia de auxiliares, com os professores e educadores à porta sem poderem entrar.
(Mónica G.)
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Se há coisa para a qual já não tenho pachorra, em dias de greve-geral, é ouvir as discussões em torno dos números de grevistas e não-grevistas.
Como se sabe, sindicatos e governo dizem o que gostariam que fosse verdade, chamam-se mutuamente de mentirosos, e o mundo continua a rodar... até à próxima.
No entanto, desta feita, fomos surpreendidos com uma novidade: o governo lembrou-se de usar os dados do consumo de energia como indicador da redução da actividade económica do país motivada pela greve.
«Boa!» - pensei eu - «Ora aí está uma medida inteligente!». Só que não estava preparado para a revelação que veio a seguir: o consumo de energia AUMENTOU!
Ou seja: já não temos só 20% de grevistas, nem 10%, nem mesmo zero: pelos vistos, desta vez, até houve... um número negativo deles!
Bourvil cantando La Tactique du Gendarme do filme Le Roi Pandore de 1949. Nisto os franceses foram sempre bons.
Les gens disent oh les gendarmes quand on a Besoin d'eux, ils ne sont jamais là. Je réponds du tac au tac Car pensez j'ai ma tactiqu', Attendez un peu que j'vous expliqu'
La taca taca tac tac tiqu', Du gendarme C'est d'être toujours là Quand on ne l'attend pas.
So hangs the hour like fruit fullblown and sweet, Our strict and desperate avatar, Despite that antique westward gulls lament Over enormous waters which retreat Weary unto the white and sensual star. Accept these images for what they are-- Out of the past a fragile element Of substance into accident. I would speak honestly and of a full heart; I would speak surely for the tale is short, And the soul's remorseless catalogue Assumes its quick and piteous sum. Think you, hungry is the city in the fog Where now the darkened piles resume Their framed and frozen prayer Articulate and shafted in the stone Against the void and absolute air. If so the frantic breath could be forgiven, And the deep blood subdued before it is gone In a savage paternoster to the stone, Then might we all be shriven.
UMA VIDA, UMA FICHA- um dia da vida de "João Silva", funcionário público, e o seu rastro digital e analógico- + NOVO comentários de Daniel Polónio, António Fonseca e Emanuel Ferreira.
João Silva e a mulher vivem no Montijo. Ele trabalha em Lisboa, a mulher é funcionária da autarquia e fica na localidade onde habita. Vamos deixar para já a mulher, e a filha de cinco anos, na sua terra e na sua vida, e acompanhemos João Silva num dos seus dias.
João Silva vive no Montijo porque a Ponte Vasco da Gama existe e ele encontrou lá melhores condições para comprar o seu apartamento e pagar o seu empréstimo à habitação. O banco pediu-lhe imensos papéis e ele contou ao banco sobre o que ganhava, a sua saúde, a sua família, o seu emprego. Tudo normal. João Silva até é um homem moderno, não acabou o seu curso numa universidade privada, mas há-de acabar. Há-de ser advogado, ou melhor, jurista. Não será assim tão difícil e ele, que já é um homem do seu tempo, justificou a casa no Montijo por razões "ecológicas", o Tejo, o campo, etc., etc.
João Silva faz um bocado de auto-estrada e a ponte. Hoje atrasou-se, mas também já há menos trânsito. Acelera um pouco e o seu carro foi fotografado pela polícia. Foi também observado por uma câmara que controla a auto-estrada. Bom, mais uma multa. À chegada às portagens, travou muito. Ele leu nos jornais que a polícia agora vai controlar os tempos de passagem entre as portagens e a hora a que passou fica registada na Via Verde. O parque de estacionamento que vai usar no Parque Eduardo VII (João é funcionário num dos tribunais do Palácio da Justiça) tem também Via Verde e regista o tempo da sua entrada e o da sua saída e a matrícula do carro. Normalmente ele estacionaria em cima de qualquer passeio, mas hoje está atrasado.
De passagem, verifica que tem pouco dinheiro e tem uma "coisa" combinada com uns colegas para o fim da tarde, e precisa de ter algum dinheiro. No Multibanco levanta dinheiro e corre para o emprego, "pica" o ponto que regista a sua entrada e o seu atraso. Está a ser um dia negro, uma multa, um atraso tão evidente. João Silva começa pela primeira vez a pensar na sua classificação como funcionário. Mas João Silva é conhecido como homem de esquerda, já tivera simpatias pelos comunistas e agora vota ou no PS ou no BE e a mulher é mesmo socialista "de cartão". O seu chefe subiu a chefe com os socialistas no governo e não deixará de proteger os "seus", agora que os PSD estão na mó de baixo. Antes mandavam "eles", agora mandamos "nós". As quotas de "muito bons" até devem chegar para si, enquanto as coisas não mudarem. Por isso, vocifera contra esta campanha vergonhosa que o Belmiro está a fazer com o diploma do engenheiro Sócrates. "Eles" querem "é vir outra vez ao de cima". Isso não o impede de fazer circular no seu e-mail mais um vídeo do YouTube com umas graças dos Gato sobre o curso e os papéis bizarros do primeiro-ministro. "Então não somos um país livre?" Somos, claro.
Senta-se à sua secretária e vai ler os jornais, os desportivos e os do serviço, que foram três (tivera um chefe em tempos de vacas gordas que achava que o serviço devia comprar o Correio da Manhã, o Público e um diário económico), mas agora só há o Correio da Manhã. Entre o jornal que já lhe chega quase desfeito, alguém cortou um cupão para um concurso, outro roubou a página do sudoku, e a Internet, ele lê distraído uma notícia sobre a criação de uma base de dados de perfis de ADN "ao serviço da investigação criminal" com "dados de pessoas condenadas a penas de prisão iguais ou superiores a três anos", a que se soma "um ficheiro para dados de investigação civil (...) "alimentado" por voluntários que quiserem depositar ali os seus dados pessoais". Ele acha muito bem e passa adiante. João Silva, quando chega à hora do almoço, já deixou os seus dados em fotografia, vídeo e em várias bases de dados da polícia, do Multibanco e do Estado. Daqui a uns dias, com as novas câmaras de videovigilância que António Costa quer instalar em Lisboa se ganhar as eleições, vai ser filmado na rua várias vezes.
Costa tem uma longa tradição de introdução de instrumentos de vigilância. Veja-se esta notícia no Diário de Notícias de 26 de Setembro de 2005:
O Governo vai aprovar amanhã a utilização do sistema de vídeo-vigilância nas estradas portuguesas para efeitos de fiscalização rodoviária. O decreto-lei será aprovado em Conselho de Ministros e deverá entrar em vigor antes do final do ano, confirmou ontem António Costa. O ministro da Administração Interna anunciou ainda que a PSP e a GNR vão receber novos equipamentos para uma maior eficácia na fiscalização dos condutores, nomeadamente computadores que permitem aceder ao cadastro do condutor e a inserção directa da multa no sistema da Direcção-Geral de Viação (DGV).
Até ao final do ano, as forças de segurança vão poder utilizar os dados captados por sistemas de vigilância para multar os condutores que infringirem o Código da Estrada. Segundo António Costa, o sistema vai funcionar através da "rede de câmaras instaladas nas estradas portuguesas, que permitem monitorizar o que acontece na via. Esse equipamento permite detectar algumas infracções e outras não, mas as que forem detectadas serão autuadas. Estas imagens terão o mesmo valor probatório da visão directa de um agente da autoridade", garantiu.
Fez também uns telefonemas com o telemóvel, devidamente registados numa base de dados, e andou pela Internet...
O tipo de informação existente nas bases de dados dos serviços telefónicos pode dar uma ideia do seu potencial para vigilância. O serviço de facturação detalhada da TMN fornece os sequintes dados:
- Data e hora das chamadas efectuadas - Data e hora da chamadas recebidas (quando em Roaming) - N.º chamado - Duração e custo das chamadas - Tipo de serviço: Voz, Fax, Dados, Sms, transferência de chamadas, etc. - Código do operador (quando em Roaming).
O seu computador, ligado a um servidor do Ministério da Justiça - não esqueçamos que ele é funcionário judicial -, regista todo o seu "passeio" pela Internet, os seus e-mails, incluindo as graçolas ao primeiro-ministro, a leitura de um sítio sobre desporto, uns blogues "engraçados", e, em particular, um blogue anónimo, A Chama da Justiça, que ele sabe que é feito por um funcionário da sala ao lado e que tem uns boatos e umas "revelações" sobre os seus chefes. João Silva, que assina uns comentários anónimos com o nickname de "Leão Castigador", costuma deixar lá umas frases pouco abonatórias sobre os seus colegas e umas "revelações" de sua lavra sobre quem anda com quem. Quando assina "Castigador", fica feliz com a sua obra. Com os colegas homens e a cumplicidade sorridente das colegas mulheres, vão todos os dias religiosamente ver as "gajas" ao Hi5 Porcas, onde ele já tinha encontrado as fotos de uma vizinha com as amigas numa discoteca de Almada. Tudo como deve ser, e é, em milhares de escritórios públicos e privados.
Com os amigos, vai almoçar e combinam ir depois do emprego "beber uns copos" a uma espécie de bar que tem striptease. Ele pensava que essas casas só funcionavam à noite escura, mas descobriu que não muito longe dali, em Campolide, o fim da tarde era animado pelo tropel de funcionários e uns jovens yuppies duns escritórios, que iam divertir-se numa espécie de alterne mitigado num bar com música muito alta, onde batiam com as mãos nas costas uns dos outros, diziam umas piadas e bebiam uns uísques. Nada que multidões de homens sós não fizessem desde os tempos das legiões romanas. Só que, pensando bem, tinha que pagar a dinheiro, porque a mulher podia ver as despesas do bar no cartão de crédito e já basta de maçadas.
À saída, já vai um pouco mais feliz, mas há que voltar ao Montijo, o que o torna mais infeliz. Dá por si a dar razão mental ao ministro Mário Lino, aquilo de facto é um deserto e eu quero lá saber do Tejo e do campo para alguma coisa! Fica contente por ser "politicamente incorrecto" durante uns segundos, talvez abra um blogue. Depois passa pela farmácia a comprar uns medicamentos para a asma da filha, com a receita que lhe passaram. O registo da compra fica no recibo, que irá dar às Finanças, no Multibanco, na Segurança Social, no ficheiro do médico que o passou. Todos podem saber que ele comprou aquele medicamento, e o mesmo se passava se fosse um tratamento "vergonhoso", ou a pílula do dia seguinte, ou Viagra. As Finanças, em particular, estão cada vez mais curiosas sobre tudo e "cruzam" muitos dados.
Quando João Silva volta a casa, passa de novo pela Via Verde, matrícula, local, hora e velocidade ficam registadas por comparação. As câmaras da ponte continuam a gravá-lo no caminho, até que seja o olhar da mulher, que desconfia do atraso e do vago perfume misturado com o tabaco, a gravá-lo com ainda maior intensidade. Um olhar humano é ainda mais perfeito do que o das câmaras, ela "vê" o bar do fim da tarde, com grande nitidez, mas sabe bastante menos do que o Estado. À noite, com a mulher deitada e a filha a dormir, quando ele vê um filme na sua TV Box, ele está a ser registado e fichado, mesmo que a empresa lhe prometa que não manda a discriminação dos filmes na sua factura, por razões óbvias. A TV Cabo sabe que há esposas e pais e vizinhos que às vezes apanham a carta errada.
Mas isso é para enganar os papalvos. Numa qualquer base de dados, numa qualquer ficha real ou potencial, a vida de João Silva cabe toda, em particular sexo e dinheiro, os grandes fautores da curiosidade alheia, as marcas da fragilidade, as Grandes Mentiras. O Estado sabe que todas estas coisas podem vir a ser úteis.
Um dia.
João Silva está longe de o saber.
(No Público de 26 de Maio de 2007)
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Comentando o artigo que hoje publica no seu blogue é curioso que ainda hoje pensei precisamente nesse tema. Fui consultar junto de um quiosque num centro comercial as condições para ter televisão via ligação de internet com o meu fornecedor, e só precisei de dar o meu nº de contribuinte para a assistente do quiosque ficar a saber, sem eu lhe ter de relatar em pormenor, os dados necessários sobre a minha ligação. Se fosse no banco seria a mesma coisa, nos impostos idem, no supermercado idem, na água, na energia eléctrica, no gás, idem. Se assim não fosse teria óbviamente de perder tempos infindos cada vez que necessitasse de dialogar com qualquer organização que me fornece um serviço regular. Eles sabem o que eu sei sem precisar de lhes dizer, precisamente o que você faz aqui no seu blogue. Isto apenas para dizer que existe uma comissão nacional de protecção de dados e legislação que regulam estas coisas.
(The Trap por Adam Curtis, exibido na BBC no inicio do ano)
em vez da TVCabo, se calhar também começava a pensar, mas, como se sabe, isso é um perigo para a sociedade ...
A meio do episódio 2 (min 36:50 até 46:50) podemos encontrar um dos mais demolidores ataques ao governo britânico que tenho memória, ridicularizando nomeadamente Gordon Brown, putativo sucessor de Tony Blair. Tudo isto exibido num canal secundário da BBC em horário nobre. Sintomático ...
Igualmente sintomático que se esteja a passar o mesmo em Portugal neste momento, com uma imitação barata de Tony Blair. Como é sabido, "when you pay peanuts, you get monkeys"
(Daniel Polónia)
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Quando há uns anos optei por diminuir as operações com cartão Multibanco e não utilizar a Via Verde, fui visto como alarmista por alguns colegas, os mesmo que hoje cabisbaixos comentam “eles cruzam todos os dados”…
Mas mesmo assim há o outro lado da medalha, o lado em que o estado e suas várias faces se recusam a cruzar dados. Após morte de um familiar, vi-me face a uma parede de burocracias/obrigações que remontam ainda para o velho século XX. Descobri que, apesar de toda a máquina do estado, uma viúva, após a morte do cônjuge, só terá direito à sua pensão cerca de 4/5 meses após declarar o óbito. O dinheiro a que tem direito virá sob a forma de retroactivos, mas ninguém explica quais os meios financeiros a que terá de recorrer durante esse período.
Pasmei também ao saber que um prédio devidamente registado nas finanças, que paga o IMI devido, para mudar de dono – leia-se passar do marido falecido para a agora viúva – precisa de um longo processo burocrático que envolve levantar cópias da planta original na câmara – mesmo já havendo uma caderneta predial urbana – e que esbarra no imobilismo de uma máquina mastodôntica e ultrapassada.
Em conclusão, temos um estado que cada vez mais cruza dados para proveito próprio, e raramente para bem do cidadão. Um estado que cria serviços e taxas que o engordam, fazem aumentar os seus funcionários, e que em nada serve aos cidadãos e até os afasta de cumprir as suas obrigações.
Uma última observação: ao longo de todo este processo de transição de bens, tenho ido a bancos e a serviços camarários, levo uns papeis que ninguém lê e tenho obtido dados sobre uma pessoa e suas contas bancárias. Foi-me possível obter a planta de uma habitação particular sem que em momento algum tivesse de mostrar um simples bilhete de identidade a comprovar o parentesco, quanto mais uma certidão de óbito que justificasse os meus actos…
The great man turns his back on the island. Now he will not die in paradise nor hear again the lutes of paradise among the olive trees, by the clear pools under the cypresses. Time
begins now, in which he hears again that pulse which is the narrative sea, ar dawn when its pull is stongest. What has brought us here will lead us away; our ship sways in the tined harbor water.
Now the spell is ended. Giove him back his life, sea that can only move forward.