ABRUPTO

27.5.07


UMA VIDA, UMA FICHA
João Silva e a mulher vivem no Montijo. Ele trabalha em Lisboa, a mulher é funcionária da autarquia e fica na localidade onde habita. Vamos deixar para já a mulher, e a filha de cinco anos, na sua terra e na sua vida, e acompanhemos João Silva num dos seus dias.

João Silva vive no Montijo porque a Ponte Vasco da Gama existe e ele encontrou lá melhores condições para comprar o seu apartamento e pagar o seu empréstimo à habitação. O banco pediu-lhe imensos papéis e ele contou ao banco sobre o que ganhava, a sua saúde, a sua família, o seu emprego. Tudo normal. João Silva até é um homem moderno, não acabou o seu curso numa universidade privada, mas há-de acabar. Há-de ser advogado, ou melhor, jurista. Não será assim tão difícil e ele, que já é um homem do seu tempo, justificou a casa no Montijo por razões "ecológicas", o Tejo, o campo, etc., etc.

João Silva faz um bocado de auto-estrada e a ponte. Hoje atrasou-se, mas também já há menos trânsito. Acelera um pouco e o seu carro foi fotografado pela polícia. Foi também observado por uma câmara que controla a auto-estrada. Bom, mais uma multa. À chegada às portagens, travou muito. Ele leu nos jornais que a polícia agora vai controlar os tempos de passagem entre as portagens e a hora a que passou fica registada na Via Verde. O parque de estacionamento que vai usar no Parque Eduardo VII (João é funcionário num dos tribunais do Palácio da Justiça) tem também Via Verde e regista o tempo da sua entrada e o da sua saída e a matrícula do carro. Normalmente ele estacionaria em cima de qualquer passeio, mas hoje está atrasado.

De passagem, verifica que tem pouco dinheiro e tem uma "coisa" combinada com uns colegas para o fim da tarde, e precisa de ter algum dinheiro. No Multibanco levanta dinheiro e corre para o emprego, "pica" o ponto que regista a sua entrada e o seu atraso. Está a ser um dia negro, uma multa, um atraso tão evidente. João Silva começa pela primeira vez a pensar na sua classificação como funcionário. Mas João Silva é conhecido como homem de esquerda, já tivera simpatias pelos comunistas e agora vota ou no PS ou no BE e a mulher é mesmo socialista "de cartão". O seu chefe subiu a chefe com os socialistas no governo e não deixará de proteger os "seus", agora que os PSD estão na mó de baixo. Antes mandavam "eles", agora mandamos "nós". As quotas de "muito bons" até devem chegar para si, enquanto as coisas não mudarem. Por isso, vocifera contra esta campanha vergonhosa que o Belmiro está a fazer com o diploma do engenheiro Sócrates. "Eles" querem "é vir outra vez ao de cima". Isso não o impede de fazer circular no seu e-mail mais um vídeo do YouTube com umas graças dos Gato sobre o curso e os papéis bizarros do primeiro-ministro. "Então não somos um país livre?" Somos, claro.

Senta-se à sua secretária e vai ler os jornais, os desportivos e os do serviço, que foram três (tivera um chefe em tempos de vacas gordas que achava que o serviço devia comprar o Correio da Manhã, o Público e um diário económico), mas agora só há o Correio da Manhã. Entre o jornal que já lhe chega quase desfeito, alguém cortou um cupão para um concurso, outro roubou a página do sudoku, e a Internet, ele lê distraído uma notícia sobre a criação de uma base de dados de perfis de ADN "ao serviço da investigação criminal" com "dados de pessoas condenadas a penas de prisão iguais ou superiores a três anos", a que se soma "um ficheiro para dados de investigação civil (...) "alimentado" por voluntários que quiserem depositar ali os seus dados pessoais". Ele acha muito bem e passa adiante. João Silva, quando chega à hora do almoço, já deixou os seus dados em fotografia, vídeo e em várias bases de dados da polícia, do Multibanco e do Estado. Daqui a uns dias, com as novas câmaras de videovigilância que António Costa quer instalar em Lisboa se ganhar as eleições, vai ser filmado na rua várias vezes.
Costa tem uma longa tradição de introdução de instrumentos de vigilância. Veja-se esta notícia no Diário de Notícias de 26 de Setembro de 2005:

O Governo vai aprovar amanhã a utilização do sistema de vídeo-vigilância nas estradas portuguesas para efeitos de fiscalização rodoviária. O decreto-lei será aprovado em Conselho de Ministros e deverá entrar em vigor antes do final do ano, confirmou ontem António Costa. O ministro da Administração Interna anunciou ainda que a PSP e a GNR vão receber novos equipamentos para uma maior eficácia na fiscalização dos condutores, nomeadamente computadores que permitem aceder ao cadastro do condutor e a inserção directa da multa no sistema da Direcção-Geral de Viação (DGV).

Até ao final do ano, as forças de segurança vão poder utilizar os dados captados por sistemas de vigilância para multar os condutores que infringirem o Código da Estrada. Segundo António Costa, o sistema vai funcionar através da "rede de câmaras instaladas nas estradas portuguesas, que permitem monitorizar o que acontece na via. Esse equipamento permite detectar algumas infracções e outras não, mas as que forem detectadas serão autuadas. Estas imagens terão o mesmo valor probatório da visão directa de um agente da autoridade", garantiu.

Fez também uns telefonemas com o telemóvel, devidamente registados numa base de dados, e andou pela Internet...
O tipo de informação existente nas bases de dados dos serviços telefónicos pode dar uma ideia do seu potencial para vigilância. O serviço de facturação detalhada da TMN fornece os sequintes dados:

- Data e hora das chamadas efectuadas
- Data e hora da chamadas recebidas (quando em Roaming)
- N.º chamado
- Duração e custo das chamadas
- Tipo de serviço: Voz, Fax, Dados, Sms, transferência de chamadas, etc.
- Código do operador (quando em Roaming).
O seu computador, ligado a um servidor do Ministério da Justiça - não esqueçamos que ele é funcionário judicial -, regista todo o seu "passeio" pela Internet, os seus e-mails, incluindo as graçolas ao primeiro-ministro, a leitura de um sítio sobre desporto, uns blogues "engraçados", e, em particular, um blogue anónimo, A Chama da Justiça, que ele sabe que é feito por um funcionário da sala ao lado e que tem uns boatos e umas "revelações" sobre os seus chefes. João Silva, que assina uns comentários anónimos com o nickname de "Leão Castigador", costuma deixar lá umas frases pouco abonatórias sobre os seus colegas e umas "revelações" de sua lavra sobre quem anda com quem. Quando assina "Castigador", fica feliz com a sua obra. Com os colegas homens e a cumplicidade sorridente das colegas mulheres, vão todos os dias religiosamente ver as "gajas" ao Hi5 Porcas, onde ele já tinha encontrado as fotos de uma vizinha com as amigas numa discoteca de Almada. Tudo como deve ser, e é, em milhares de escritórios públicos e privados.

Com os amigos, vai almoçar e combinam ir depois do emprego "beber uns copos" a uma espécie de bar que tem striptease. Ele pensava que essas casas só funcionavam à noite escura, mas descobriu que não muito longe dali, em Campolide, o fim da tarde era animado pelo tropel de funcionários e uns jovens yuppies duns escritórios, que iam divertir-se numa espécie de alterne mitigado num bar com música muito alta, onde batiam com as mãos nas costas uns dos outros, diziam umas piadas e bebiam uns uísques. Nada que multidões de homens sós não fizessem desde os tempos das legiões romanas. Só que, pensando bem, tinha que pagar a dinheiro, porque a mulher podia ver as despesas do bar no cartão de crédito e já basta de maçadas.

À saída, já vai um pouco mais feliz, mas há que voltar ao Montijo, o que o torna mais infeliz. Dá por si a dar razão mental ao ministro Mário Lino, aquilo de facto é um deserto e eu quero lá saber do Tejo e do campo para alguma coisa! Fica contente por ser "politicamente incorrecto" durante uns segundos, talvez abra um blogue. Depois passa pela farmácia a comprar uns medicamentos para a asma da filha, com a receita que lhe passaram. O registo da compra fica no recibo, que irá dar às Finanças, no Multibanco, na Segurança Social, no ficheiro do médico que o passou. Todos podem saber que ele comprou aquele medicamento, e o mesmo se passava se fosse um tratamento "vergonhoso", ou a pílula do dia seguinte, ou Viagra. As Finanças, em particular, estão cada vez mais curiosas sobre tudo e "cruzam" muitos dados.

Quando João Silva volta a casa, passa de novo pela Via Verde, matrícula, local, hora e velocidade ficam registadas por comparação. As câmaras da ponte continuam a gravá-lo no caminho, até que seja o olhar da mulher, que desconfia do atraso e do vago perfume misturado com o tabaco, a gravá-lo com ainda maior intensidade. Um olhar humano é ainda mais perfeito do que o das câmaras, ela "vê" o bar do fim da tarde, com grande nitidez, mas sabe bastante menos do que o Estado. À noite, com a mulher deitada e a filha a dormir, quando ele vê um filme na sua TV Box, ele está a ser registado e fichado, mesmo que a empresa lhe prometa que não manda a discriminação dos filmes na sua factura, por razões óbvias. A TV Cabo sabe que há esposas e pais e vizinhos que às vezes apanham a carta errada.

Mas isso é para enganar os papalvos. Numa qualquer base de dados, numa qualquer ficha real ou potencial, a vida de João Silva cabe toda, em particular sexo e dinheiro, os grandes fautores da curiosidade alheia, as marcas da fragilidade, as Grandes Mentiras. O Estado sabe que todas estas coisas podem vir a ser úteis.

Um dia.

João Silva está longe de o saber.

(No Público de 26 de Maio de 2007)

*
Comentando o artigo que hoje publica no seu blogue é curioso que ainda hoje pensei precisamente nesse tema. Fui consultar junto de um quiosque num centro comercial as condições para ter televisão via ligação de internet com o meu fornecedor, e só precisei de dar o meu nº de contribuinte para a assistente do quiosque ficar a saber, sem eu lhe ter de relatar em pormenor, os dados necessários sobre a minha ligação. Se fosse no banco seria a mesma coisa, nos impostos idem, no supermercado idem, na água, na energia eléctrica, no gás, idem. Se assim não fosse teria óbviamente de perder tempos infindos cada vez que necessitasse de dialogar com qualquer organização que me fornece um serviço regular. Eles sabem o que eu sei sem precisar de lhes dizer, precisamente o que você faz aqui no seu blogue. Isto apenas para dizer que existe uma comissão nacional de protecção de dados e legislação que regulam estas coisas.

(António Fonseca)

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Se o João Silva visse isto

http://video.google.co.uk/videoplay?docid=8372545413887273321

http://video.google.co.uk/videoplay?docid=-7849982478877371384 (episódio 2)

http://video.google.com/videoplay?docid=3291992041130722257

http://video.google.com/videoplay?docid=-121006630030775636

http://video.google.com/videoplay?docid=1343199130780182696&hl=en

(The Trap por Adam Curtis, exibido na BBC no inicio do ano)

em vez da TVCabo, se calhar também começava a pensar, mas, como se sabe, isso é um perigo para a sociedade ...

A meio do episódio 2 (min 36:50 até 46:50) podemos encontrar um dos mais demolidores ataques ao governo britânico que tenho memória, ridicularizando nomeadamente Gordon Brown, putativo sucessor de Tony Blair. Tudo isto exibido num canal secundário da BBC em horário nobre. Sintomático ...

Igualmente sintomático que se esteja a passar o mesmo em Portugal neste momento, com uma imitação barata de Tony Blair. Como é sabido, "when you pay peanuts, you get monkeys"

(Daniel Polónia)

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Quando há uns anos optei por diminuir as operações com cartão Multibanco e não utilizar a Via Verde, fui visto como alarmista por alguns colegas, os mesmo que hoje cabisbaixos comentam “eles cruzam todos os dados”…

Mas mesmo assim há o outro lado da medalha, o lado em que o estado e suas várias faces se recusam a cruzar dados. Após morte de um familiar, vi-me face a uma parede de burocracias/obrigações que remontam ainda para o velho século XX. Descobri que, apesar de toda a máquina do estado, uma viúva, após a morte do cônjuge, só terá direito à sua pensão cerca de 4/5 meses após declarar o óbito. O dinheiro a que tem direito virá sob a forma de retroactivos, mas ninguém explica quais os meios financeiros a que terá de recorrer durante esse período.

Pasmei também ao saber que um prédio devidamente registado nas finanças, que paga o IMI devido, para mudar de dono – leia-se passar do marido falecido para a agora viúva – precisa de um longo processo burocrático que envolve levantar cópias da planta original na câmara – mesmo já havendo uma caderneta predial urbana – e que esbarra no imobilismo de uma máquina mastodôntica e ultrapassada.

Em conclusão, temos um estado que cada vez mais cruza dados para proveito próprio, e raramente para bem do cidadão. Um estado que cria serviços e taxas que o engordam, fazem aumentar os seus funcionários, e que em nada serve aos cidadãos e até os afasta de cumprir as suas obrigações.

Uma última observação: ao longo de todo este processo de transição de bens, tenho ido a bancos e a serviços camarários, levo uns papeis que ninguém lê e tenho obtido dados sobre uma pessoa e suas contas bancárias. Foi-me possível obter a planta de uma habitação particular sem que em momento algum tivesse de mostrar um simples bilhete de identidade a comprovar o parentesco, quanto mais uma certidão de óbito que justificasse os meus actos…

(Emanuel Ferreira)

(url)

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