ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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27.5.07
João Silva e a mulher vivem no Montijo. Ele trabalha em Lisboa, a mulher é funcionária da autarquia e fica na localidade onde habita. Vamos deixar para já a mulher, e a filha de cinco anos, na sua terra e na sua vida, e acompanhemos João Silva num dos seus dias.
João Silva vive no Montijo porque a Ponte Vasco da Gama existe e ele encontrou lá melhores condições para comprar o seu apartamento e pagar o seu empréstimo à habitação. O banco pediu-lhe imensos papéis e ele contou ao banco sobre o que ganhava, a sua saúde, a sua família, o seu emprego. Tudo normal. João Silva até é um homem moderno, não acabou o seu curso numa universidade privada, mas há-de acabar. Há-de ser advogado, ou melhor, jurista. Não será assim tão difícil e ele, que já é um homem do seu tempo, justificou a casa no Montijo por razões "ecológicas", o Tejo, o campo, etc., etc. João Silva faz um bocado de auto-estrada e a ponte. Hoje atrasou-se, mas também já há menos trânsito. Acelera um pouco e o seu carro foi fotografado pela polícia. Foi também observado por uma câmara que controla a auto-estrada. Bom, mais uma multa. À chegada às portagens, travou muito. Ele leu nos jornais que a polícia agora vai controlar os tempos de passagem entre as portagens e a hora a que passou fica registada na Via Verde. O parque de estacionamento que vai usar no Parque Eduardo VII (João é funcionário num dos tribunais do Palácio da Justiça) tem também Via Verde e regista o tempo da sua entrada e o da sua saída e a matrícula do carro. Normalmente ele estacionaria em cima de qualquer passeio, mas hoje está atrasado. Senta-se à sua secretária e vai ler os jornais, os desportivos e os do serviço, que foram três (tivera um chefe em tempos de vacas gordas que achava que o serviço devia comprar o Correio da Manhã, o Público e um diário económico), mas agora só há o Correio da Manhã. Entre o jornal que já lhe chega quase desfeito, alguém cortou um cupão para um concurso, outro roubou a página do sudoku, e a Internet, ele lê distraído uma notícia sobre a criação de uma base de dados de perfis de ADN "ao serviço da investigação criminal" com "dados de pessoas condenadas a penas de prisão iguais ou superiores a três anos", a que se soma "um ficheiro para dados de investigação civil (...) "alimentado" por voluntários que quiserem depositar ali os seus dados pessoais". Ele acha muito bem e passa adiante. João Silva, quando chega à hora do almoço, já deixou os seus dados em fotografia, vídeo e em várias bases de dados da polícia, do Multibanco e do Estado. Daqui a uns dias, com as novas câmaras de videovigilância que António Costa quer instalar em Lisboa se ganhar as eleições, vai ser filmado na rua várias vezes. Costa tem uma longa tradição de introdução de instrumentos de vigilância. Veja-se esta notícia no Diário de Notícias de 26 de Setembro de 2005: Fez também uns telefonemas com o telemóvel, devidamente registados numa base de dados, e andou pela Internet... O tipo de informação existente nas bases de dados dos serviços telefónicos pode dar uma ideia do seu potencial para vigilância. O serviço de facturação detalhada da TMN fornece os sequintes dados:O seu computador, ligado a um servidor do Ministério da Justiça - não esqueçamos que ele é funcionário judicial -, regista todo o seu "passeio" pela Internet, os seus e-mails, incluindo as graçolas ao primeiro-ministro, a leitura de um sítio sobre desporto, uns blogues "engraçados", e, em particular, um blogue anónimo, A Chama da Justiça, que ele sabe que é feito por um funcionário da sala ao lado e que tem uns boatos e umas "revelações" sobre os seus chefes. João Silva, que assina uns comentários anónimos com o nickname de "Leão Castigador", costuma deixar lá umas frases pouco abonatórias sobre os seus colegas e umas "revelações" de sua lavra sobre quem anda com quem. Quando assina "Castigador", fica feliz com a sua obra. Com os colegas homens e a cumplicidade sorridente das colegas mulheres, vão todos os dias religiosamente ver as "gajas" ao Hi5 Porcas, onde ele já tinha encontrado as fotos de uma vizinha com as amigas numa discoteca de Almada. Tudo como deve ser, e é, em milhares de escritórios públicos e privados. Com os amigos, vai almoçar e combinam ir depois do emprego "beber uns copos" a uma espécie de bar que tem striptease. Ele pensava que essas casas só funcionavam à noite escura, mas descobriu que não muito longe dali, em Campolide, o fim da tarde era animado pelo tropel de funcionários e uns jovens yuppies duns escritórios, que iam divertir-se numa espécie de alterne mitigado num bar com música muito alta, onde batiam com as mãos nas costas uns dos outros, diziam umas piadas e bebiam uns uísques. Nada que multidões de homens sós não fizessem desde os tempos das legiões romanas. Só que, pensando bem, tinha que pagar a dinheiro, porque a mulher podia ver as despesas do bar no cartão de crédito e já basta de maçadas. À saída, já vai um pouco mais feliz, mas há que voltar ao Montijo, o que o torna mais infeliz. Dá por si a dar razão mental ao ministro Mário Lino, aquilo de facto é um deserto e eu quero lá saber do Tejo e do campo para alguma coisa! Fica contente por ser "politicamente incorrecto" durante uns segundos, talvez abra um blogue. Depois passa pela farmácia a comprar uns medicamentos para a asma da filha, com a receita que lhe passaram. O registo da compra fica no recibo, que irá dar às Finanças, no Multibanco, na Segurança Social, no ficheiro do médico que o passou. Todos podem saber que ele comprou aquele medicamento, e o mesmo se passava se fosse um tratamento "vergonhoso", ou a pílula do dia seguinte, ou Viagra. As Finanças, em particular, estão cada vez mais curiosas sobre tudo e "cruzam" muitos dados. Quando João Silva volta a casa, passa de novo pela Via Verde, matrícula, local, hora e velocidade ficam registadas por comparação. As câmaras da ponte continuam a gravá-lo no caminho, até que seja o olhar da mulher, que desconfia do atraso e do vago perfume misturado com o tabaco, a gravá-lo com ainda maior intensidade. Um olhar humano é ainda mais perfeito do que o das câmaras, ela "vê" o bar do fim da tarde, com grande nitidez, mas sabe bastante menos do que o Estado. À noite, com a mulher deitada e a filha a dormir, quando ele vê um filme na sua TV Box, ele está a ser registado e fichado, mesmo que a empresa lhe prometa que não manda a discriminação dos filmes na sua factura, por razões óbvias. A TV Cabo sabe que há esposas e pais e vizinhos que às vezes apanham a carta errada. Mas isso é para enganar os papalvos. Numa qualquer base de dados, numa qualquer ficha real ou potencial, a vida de João Silva cabe toda, em particular sexo e dinheiro, os grandes fautores da curiosidade alheia, as marcas da fragilidade, as Grandes Mentiras. O Estado sabe que todas estas coisas podem vir a ser úteis. Um dia. João Silva está longe de o saber. (No Público de 26 de Maio de 2007) * Comentando o artigo que hoje publica no seu blogue é curioso que ainda hoje pensei precisamente nesse tema. Fui consultar junto de um quiosque num centro comercial as condições para ter televisão via ligação de internet com o meu fornecedor, e só precisei de dar o meu nº de contribuinte para a assistente do quiosque ficar a saber, sem eu lhe ter de relatar em pormenor, os dados necessários sobre a minha ligação. Se fosse no banco seria a mesma coisa, nos impostos idem, no supermercado idem, na água, na energia eléctrica, no gás, idem. Se assim não fosse teria óbviamente de perder tempos infindos cada vez que necessitasse de dialogar com qualquer organização que me fornece um serviço regular. Eles sabem o que eu sei sem precisar de lhes dizer, precisamente o que você faz aqui no seu blogue. Isto apenas para dizer que existe uma comissão nacional de protecção de dados e legislação que regulam estas coisas. (url)
© José Pacheco Pereira
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