ABRUPTO

24.5.07


OS LIVROS DA MINHA VIDA 6
(OS PROPRIAMENTE DITOS, OS VERDADEIROS, OS DA BAYER)

Não eram tanto os livros, mas a colecção. A verdadeira Feira do Livro, então na Avenida dos Aliados, começava quando o meu pai me comprava mais um livro desta colecção. Li-os por volta dos anos da campanha de Delgado, as minhas primeiras vagas memórias de que havia conflito político. Era um tempo em que o mais breve sinal de agitação nas ruas levava, numa cidade que mantinha memórias difusas da "revolução" de 1927, ao armazenamento de mantimentos de emergência. Conservas, arroz, massas, eram comprados e colocados na despensa. Quando a despensa ficava cheia, para além do consumo imediato, eu sabia que havia "revolução" nas ruas. Delgado neste caso, como tinha sido Norton e 1927, e como o meu avô se recordava, tinha sido a Monarquia do Norte. Convém lembrar que é o Porto e foi sempre no Porto que estas coisas foram mais sérias.

Mantimentos e livros. Nesta colecção nunca me interessei pela biografia de Florence Nightingale, capa roxa, porque tinha o coração já empedernido, mas sim pelas de Pasteur e pela Madame Curie, capa amarela. Curioso este "madame", para Maria Skłodowska, que me introduziu ao mundo da pechblenda, no seu armazém-laboratório, onde ela, uma noite, viu luzir um tubo de ensaio. O Pasteur começava pelo olhar pelas tanoarias do vizinho, passava pelo leite estragado e tinha o seu clímax na história do rapaz enjaulado com raiva. A raiva não era como agora uma inexistência, ainda metia medo, como o tétano, tão próximos ainda estavamos do mundo dos campos. Cães com raiva, pregos enferrujados, medos, lendas rurais.

Li também estas Grandes Invenções, a História da Electricidade e muitos outros, introduzindo-me à lâmpada e ao fonógrafo de Edison, ao radar, à televisão, a Marconi experimentando as suas antenas. Nestes livros foi a "biografia" da descoberta que aprendi, mais do que a física ou a química das coisas. Essas aprendi-as numa outra colecção que se chamava... "Nunca é Tarde para Aprender". Infelizmente perdi esses livros não sei como, com muita pena. Eram muito pequenos, mais pequenos do que um bolso, e penso que de produção nacional. Eram diálogos sobre as coisas do mundo, sobre os "mistérios" da natureza e a sua explicação. Sobre os terramotos, por exemplo. Destas duas colecções fui Leitor Ávido, por isso foram de facto "livros da vida". Sem eles seria diferente, saberia menos no tempo certo. Porque nos livros há sempre um tempo certo, que, quando se perde, nunca se recupera.

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Pacheco Pereira deve ser uns dez anos mais velho do que eu (tenho 46). Isto, na adolescência, representa uma eternidade. Muito mais, quando a diferença é vivida na transição do salazarismo para o marcelismo e deste para a democracia; da escola primária e do liceu, para a universidade. As minhas primeiras memórias com uma componente política reportam-se à inauguração da ponte sobre o Tejo (cujas fotografias vi nas páginas do "Diário de Notícias" que a minha avó espalhou pelo chão recém-encerado da sala de jantar), à invasão da Checoslováquia, à ida à Lua, à doença e morte de Salazar, às deventuras da "Apolo XIII", aos atentados no Jogos Olímpicos de Munique, às conversas em família de Marcello Caetano e ao golpe de estado de Pinochet no Chile, de que o programa "Semana 7" (acho que era assim que se chamava. Ou seria "TV 7"?), de João Coito, e a educação numa família adapatada ao regime, me fizeram fiel apoiante. E às mensagens de Natal dos soldados na colónias, claro.

Apesar de coetâneo, provavelmente por causa da censura, não tenho ideia absolutamente nenhuma do Maio de 68. As eleição de Humberto Delgado, o seu homicídio, o início da guerra colonial, o desvio do Santa Maria são acontecimentos que não me dizem nada e que só conheço dos livros e programas de História. Natural é, portanto, que nunca me tenha identificado com o passado e com as experiências de Pacheco Pereira. Hoje, porém, o post dedicado aos livros juvenis da colecção da Livraria Civilização, uniu a sua geração à minha.

Também eu e a minha geração crescemos com a Madame Curie, o Louis Pasteur e o Thomas Alva Edison da "Civilização". No meu caso, os livros da minha vida foram os "Pioneiros da Aviação", de autor que não recordo, e "Os Portugueses no Brasil", de Elaine Sainceau. A leitura do primeiro representou um dos grandes choques culturais da minha vida. Gago Coutinho e Sacadura Cabral - que eu na escola tinha aprendido serem portuguesíssimos e os maiores aviadores de todos os tempos - no livro, só figuravam num capítulo aditado à versão portuguesa, da autoria de Sarmento Beires. Na edição original, em inglês, à travessia aérea do Atlântico Sul (o maior feito da História da aviação, imaginava eu) não era dedicada uma única linha.
Gostei sempre mais de Samuel Cody do que de Charles Lindbergh.

(António Conceição)

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O leitor António Conceição comentou o facto de ter em comum com JPP a leitura juvenil do livro "Grandes Invenções" e a sua coleção, apesar de os separarem cerca de 10 anos. Eu tenho 37, por isso levo de atraso outra década e, no entanto, nos livros da minha infância lá figuraram as biografias de Madame Curie, de Edison e, temo-o bem, a minha preferida, de Florence Nightingale. Assim como figuraram os livros da
Condessa de Ségur: o preferido era precisamente o "Coração" mas também o "O pequeno Lord", "A Pricesinha", e tantos outros. Eram livros dos meus avós mas que eu lia avidamente, de resto como tudo o que me chegasse às mãos. Lembro-me que já estranhava alguns pormenores de época, como o facto de os casais se tratarem por "caro amigo/a" e, claro, os açoites na Sofia. O resto, as carruagens, os vestidos compridos, os chás, eram comuns aos contos de fadas e, por isso, familiares. Depois vieram os Cinco, os Sete e, sendo menina, as Gémeas e as Quatro Torres. Cenários ingleses, colégios ingleses, lanches com sandes de pepino e salsichas fritas. Nada estranhei, tudo me seduzia.

É espantosa esta força que os livros têm de unir assim gerações e imaginários. Vou tentar dar os mesmos livros às minhas filhas mas receio que a "generation gap" seja agora maior ou mais formal ou mais estética e não permita a compreensão do outro mundo.

(Helena Mota)

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Eu tenho menos 9 anos do que a sua leitora Helena Mota e da Condessa de Ségur só li um livro, do qual não me lembro absolutamente nada. O gosto pela leitura ganhei-o graças à Ana Maria Magalhães e à Isabel Alçada, com a excelente colecção "Uma Aventura" (e também graças à minha mãe, que me impingiu o "Uma Aventura no Algarve"). Dos meus irmãos, "herdei" os livros de Enid Blyton. Lembro-me da minha irmã me dizer, vendo-me agarrada a um livro de "Uma Aventura", "Tens de ler Os Cinco, são muito melhores". Não sei se devido a esta injusta competição, a minha colecção preferida de Enid Blyton foi "O Mistério", com apenas 15 livros, com os astutos "cinco descobridores e o seu cão", os scones e o polícia Arreda (que alcunha teria a personagem no original?). Depois veio a "Patrícia", colecção americana "para meninas", apesar de se centrar nos mesmos temas, com a novidade de haver algum romance à mistura.

(Ana Mouta)

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