Uma reflexão sobre os museus e memoriais do comunismo ( Terror Haza, Parque das estátuas, em Budapeste: a casa em Checkpoint Charlie em Berlim, etc.). E por que razão não há museus do fascismo e do nazismo?
Parece haver uma correlação (pelo menos na Europa) entre o isolamento da língua e a qualidade das livrarias com livros estrangeiros. Budapeste tem excelentes livrarias, alfarrabistas, antiquários, e naturalmente muitos livros em inglês, alemão, e francês. Numa livraria especializada em Filosofia (a Atlantisz) vi pela primeira vez um dicionário de tibetano, e outro de caldeu, uma colecção de Judaica muito actualizada, e noutra (a Best Sellers) uma estante de ciência política comparável às melhores livrarias americanas.
Em breve imagens e os pequenos detalhes das livrarias de Budapeste, onde está o Diabo.
A casa da rua Andrássy 60, foi a sede da polícia política húngara, depois de ter sido a sede de uma organização nazi. Hoje é um museu, meio repositório da memória histórica, meio exposição de horrores, verdadeiros neste caso. Visitei-o com mixed feelings, porque me desagrada a espectacularização do terror, que leva à trivialização da história, embora reconheça que a geração que o viveu tem direito a este memorial. A exposição é melhor do que se podia esperar, sóbria, muito copiada dos museus do holocausto, mas impressiva na reconstituição das celas e nas salas de interrogatórios. O carro e o gabinete do chefe da polícia são também objectos que falam, que pela sua mera existência nos dizem muito sobre o que aconteceu. A repressão aos revolucionários de 1956 é lembrada por um depoimento detalhado sobre as execuções, feito pelo responsável pela limpeza do local onde se colocavam as forcas. Um filme de propaganda comunista sobre o julgamento de Imre Nagy devia ser mostrado a todos os que tem ilusões sobre o que foi o "socialismo real".
As cidades húngaras são as cidades das placas, não há rua, casa, muro, que não tenha uma. Os nomes dirão alguma coisa aos húngaros, mas, vistas de fora (de fora do "nemzeti", do que é nacional, do que pertence à comunidade dos húngaros) revelam a vontade de consolidar uma memória, uma história, um sentimento de nação. Para além da ferida da ocupação turca, da anexação aos "alemães" no Império, das injustiças do Tratado de Trianon, da traição ocidental à Revolução Húngara de 1956.
No Budapest Times lê-se o lamento dos húngaros com a classificação que o Departamento de Estado deu à dificuldade da sua língua: grau 2, como o russo ou o grego. Mais fácil do que o grau 3, que inclui o árabe, o cantonês e o japonês. Os húngaros gostam de ter uma língua difícil e não ficaram contentes com a mediania.
István Bart, Hungary and the Hungarians. The Keywords. A Concise Dictionary of Facts and Beliefs, Customs, Usage and Myths, Budapeste, Corvina, 1999
Este é o livro, sem ser de história ou de literatura, em que aprendi mais sobre a Hungria. Lê-se, como os dicionários, para a frente e para trás, sempre com proveito.
Por exemplo, na entrada “magyar nyelv”, a “língua húngara” percebe-se que mais do que nós, os húngaros podem dizer “a minha pátria é a língua húngara ”. Com 15-17 milhões de falantes, uma pequena língua muito difícil de aprender, o húngaro é, mais do que o território, a “pátria”. Daí a importância simbólica dos escritores no nacionalismo húngaro, e a sua presença obsessiva por todo o lado, nos nomes das ruas, das escolas, nas placas comemorativas que enchem todas as cidades e aldeias húngaras.
ficamos todos multiculturalistas. De manhã, modas e bordados na PESC TV, limpeza do zoo, idem, concurso de puzzles, idem. Na TV5 Monde, o orçamento canadiano, explicado naquele francês cantado e único. O espectador, português, tão estranho como tudo o resto.
Quem conheceu a Europa do Centro e do Leste nos anos terminais do sistema soviético, apercebe-se de imediato do enorme salto em frente que vários países deram com o fim das ditaduras do partido comunista. Os processos de transição não são idênticos mas há casos onde se foi mais longe e o rastro físico do comunismo começa a desvanecer-se. Se tudo correr bem, a próxima geração já verá o comunismo como arqueologia. Tudo indica que será o caso da Hungria.
Talvez isso se deva ao facto de os húngaros terem pago muito caro, mais caro que os outros países subjugados pela URSS. A revolta húngara de 1956 foi a mais importante de todas as tentativas de libertação, paga com muito mais sangue derramado que as revoltas alemãs, polacas e checas.
Mas a revolta húngara ficou isolada num tempo em que a crise do comunismo ainda não era evidente para muita da ”esquerda”, mesmo a não-comunista e continuavam as ilusões sobre o “socialismo real”. Basta comparar o impacto da invasão húngara, e dos eventos sangrentos a que deu origem, e o da invasão da Checoslováquia, menos violenta nas suas consequências, mas com um muito maior impacto político, para se perceber a diferença. A reacção popular, das ruas, nas principais capitais das democracias europeias não foi muito distinta, foi mesmo equivalente á dimensão dos acontecimentos. A diferença esteve nos intelectuais e na “esquerda” que se sentiu mais livre de se indignar com a Checoslováquia do que com a Hungria. Não foi por razões muito gloriosas, mas porque lhe era mais aceitável um comunista que se considerava reformista como Dubcek, e uma “Primavera” que se apresentava como de “esquerda”, do que uma revolução claramente anticomunista e nacionalista, que envolvia a Igreja católica.
Poucas línguas têm a estranheza do húngaro. Na ópera de Budapeste, as Bodas de Fígaro. Em cima, num painel electrónico, passam as traduções em húngaro. Não consigo deixar de olhar para as mais bizarras palavras. Se fosse mandarim, sentiria menos a estranheza.
(Num país sem acentos, embora haja alguns que não são habituais nas terras anglo-sax?nicas, como este que aparece como um ponto de interrogação.)