ABRUPTO

30.6.06


INTENDÊNCIA



Parece, sublinho, parece, que os problemas de migração dos computadores vão ser resolvidos, sem qualquer recurso à ajuda e assistência da HP. A solução veio-me dos leitores do Abrupto que já tinham tido que resolver problemas idênticos, também sem qualquer ajuda da HP, revelando sérias incompatibilidades da instalação original do software feita pelo fabricante. É uma solução trabalhosa e com outro tipo de dificuldades, mas que me parecem (talvez) mais fáceis de resolver. Seja como for, se acabar por ficar com o computador, este será o último HP que compro.

Em breve darei pormenores.

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EARLY MORNING BLOGS

806 -"I bear a burden that might well try / Men that do all by rule"

Two Songs Of A Fool (I)

A speckled cat and a tame hare
Eat at my hearthstone
And sleep there;
And both look up to me alone
For learning and defence
As I look up to Providence.

I start out of my sleep to think
Some day I may forget
Their food and drink;
Or, the house door left unshut,
The hare may run till it's found
The horn's sweet note and the tooth of the hound.

I bear a burden that might well try
Men that do all by rule,
And what can I
That am a wandering-witted fool
But pray to God that He ease
My great responsibilities?

(William Butler Yeats)

*

Bom dia!

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29.6.06


A ÚNICA OPOSIÇÃO POSSÍVEL É A LIBERAL



Estamos num desses momentos em que mais é necessária política no espaço público, e o que acontece é o contrário, ela praticamente não existe, obscurecida por uma mistura anestesiante de circo, de conveniências, falsos consensos e maus hábitos do poder. Não havendo crítica nem alternância, gera-se um feito de obscuridade, não havendo ânimo crítico, o espaço público mirra.
Os tempos que vivemos recordam-me, e a memória é uma maldição, de outro tempo recente muito semelhante: os primeiros anos do engenheiro Guterres. Nesses anos de glória, quando o engenheiro apesar de não ter maioria absoluta governava como se a tivesse, era um escândalo suscitar dúvidas, interrogações, críticas ao seu magnífico desempenho. Lembro-me de ter escrito então que me sentia uma espécie de ET quando mesmo os meus mais próximos me diziam que era impossível criticar Guterres. Havia dinheiro por todo o lado, a bolsa dava, a cada pequena esquina uma pequena fortuna, todos estavam felizes.

Hoje sabemos que muitos dos erros trágicos, que se estão a pagar caro uma década depois, foram cometidos nessa altura, quando uma excepcional conjuntura favorável nos dava a última oportunidade de arrancar e a malbaratamos sem resultados. O governo de Guterres é hoje visto como a grande "oportunidade perdida", mas quem o percebeu e disse na altura? Contavam-se pelos dedos de uma só mão os críticos do engenheiro, isolados e ignorados, pelo mesmo "consenso" que hoje considera o seu governo um desastre. É assim e continuará a ser - em Portugal quando um consenso de rebanho, entre elites, políticos e jornalistas, se instala, tem muita força, abafa quase tudo.

Hoje passa-se o mesmo, com a grande diferença que estamos em tempo de vacas magras e o Governo, em vez de nos prometer abundância, promete-nos dificuldades. É interessante verificar que é exactamente esta diferença que alicerça o consenso de hoje, com a mesma força acrítica do consenso do passado. O consenso assenta na ideia de que o país está mal e de que o Governo defronta esses males com coragem, pelo que merece o abater de todos os pendões. Muito pouca gente se pergunta se não era possível não apenas fazer melhor, mas fazer muito diferente e se essa diferença faz, afinal, toda a diferença. Banhados em milhares horas de circo e gladiadores, na anomia generalizada de todos a fazerem a sua vidinha como se nada fosse, e no escapismo, who cares?

Como é que se chegou aqui? Pela combinação da vitória de duas pessoas, Manuela Ferreira Leite e José Sócrates. Num certo sentido, Manuel Ferreira Leite é a grande vencedora política da actualidade. Com a ironia habitual da história, para se ver a sua razão, foi necessária a sua queda e a do governo que se preparava para a afastar do cargo, por pensar que queria mais vida para além do défice. Também o governo que se lhe seguiu queria dar mais folga aos portugueses e descobriu uma "retoma" que nunca houve. Ambos, Durão Barroso e Santana Lopes, com o PSD profundo às palmas, queriam ver-se livre da "antipática" ministra que lhes dava cabo das sondagens. Mas Manuela Ferreira Leite tinha convencido os portugueses a aceitar sacrifícios para pôr a casa em ordem e, como estes desconfiavam das facilidades e da competência que Santana Lopes lhes prometia, foi procurar no outro lado, no PS.

Sócrates apanhou a boleia desta ideia da necessidade de austeridade que o PS e ele próprio tanto tinham criticado. Ele começou a falar a linguagem apropriada ao sentimento da opinião pública que Manuela Ferreira Leite lhe tinha deixado. Como se apercebeu de imediato, isso tinha sucesso e ele conseguiu um consenso legitimador que se estende muito para além do PS. Com condições políticas excepcionais, maioria absoluta de um só partido, fragilidade extrema da oposição e agora um Presidente "cooperador", aproveitou com perfeição o "ar do tempo", revelando o seu estilo desde o primeiro minuto. O seu governo tem feito algumas coisas bem, mas não é o governo que serve para defrontar os problemas com que Portugal se defronta. Esta percepção reforça-se todos os dias e só a acefalia actual do espaço público tem deixado sem discussão medidas sobre medidas, sempre apresentadas, inclusive pela comunicação social, como inevitáveis. Eu, como já vi muitas coisas "inevitáveis" serem evitadas, como por exemplo a Constituição europeia, pouco me conformo com este ambiente de inevitabilidade.

Pode-se, sobre o governo Sócrates, fazer dois tipos de críticas: ou dizer que faz bem mas faz pouco (que é a linha que de alguma maneira a própria Manuela Ferreira Leite sugeriu no congresso do PSD); ou entender que o que é necessário é fazer de outro modo, muito diferente. Só haverá verdadeira oposição quando se combinarem os dois termos, com preponderância do segundo.

Os não socialistas esquecem-se muitas vezes de que Sócrates é socialista, ou seja, acredita no Estado como protector e corrector social, não concebe vida fora de um jacobinismo económico, social e cultural deslavado e modernizado, que é o socialismo dos dias de hoje. Acrescenta a isso um remake de positivismo cientista, crendo com deslumbramento que as tecnologias mudam a sociedade e não vice-versa, como se percebe no chamado "choque tecnológico", investindo-se em tecnologias de ponta sem se cuidar das literacias necessárias ao seu uso.

O que Sócrates tem feito é defrontar a crise do Estado-providência propondo remédios que atrasam o seu colapso. Não o põe em causa, nem contesta a sua forma, concorda com ele por razões ideológicas. Várias vezes afirmou que essas medidas de austeridade têm como objectivo último garantir a "segurança social" para os portugueses e, com uma oposição que não contesta o essencial da sua atitude, faz o mal e a caramunha, ou seja, governa como governaram Barroso e Lopes e, mesmo aos olhos de muitos opositores do PS, com a vantagem de o fazer melhor do que os seus imediatos antecessores sociais-democratas.

Ora, que eu saiba, não foi Deus que fez o Estado-providência, nem a História chegou ao fim com ele. Foram os homens, numa época, numa circunstância, em determinadas partes do mundo. Resultou, como todas as coisas na sociedade, de uma complexa interacção entre interesses e vontades, entre conflitos sociais e decisões políticas. Adequou-se às sociedades europeias do pós-guerra, geradas pelo Plano Marshall e pela integração europeia e beneficiando das circunstâncias excepcionais de não terem de fazer avultadas despesas militares, porque estavam cobertas pelo guarda-chuva nuclear americano. Só que esse mundo acabou e acabou de vez e poucas dúvidas me sobram de que, mantendo os seus fundamentos iniciais e programáticos, não se fará outra coisa do que gerir nas próximas décadas o empobrecimento e as tensões sociais em Portugal e na Europa, sempre presos nas mesmas políticas de esticar até ao limite o "modelo social", deixando para as gerações futuras uma herança cada vez mais ingerível.

Há alternativas a esta política dos socialistas e elas podem ser socialmente muito mais justas do que as políticas actuais. As medidas de austeridade que o Governo está a tentar implementar, tímidas mas mesmo assim passos de gigante em relação aos governos anteriores, apenas adiam a crise estrutural do Estado-providência e têm custos muito mais gravosos para os mais pobres do que para os ricos. Mais: a seguir-se esta política, a crise tornar-se-á endémica e, com intervalos de pequenos surtos de prosperidade, continuar-se-á a ter de pedir novos sacrifícios e o problema de fundo permanecerá na mesma. Por isso, a prazo, o Estado-providência está condenado, pelas mesmas razões que lhe deram o sucesso. Não sobreviverá nem à globalização nem ao bem-estar adquirido, que não é reproduzível de geração para geração com a composição etária das sociedades ocidentais.

Este é o custo de querer manter sistemas de segurança social universais que não têm outra razão de ser que não seja a ideologia do "modelo social europeu", que os socialistas consideram ser o último reduto do seu "socialismo". A reconfiguração do modelo do nosso Estado devia apenas garantir uma protecção social mínima para quem realmente a exige, limitar a esse mínimo de solidariedade social básica o carácter distributivo dos impostos, assim libertando para cada um a gestão da parte da sua "segurança" que está para além do mínimo garantido e para a economia recursos de que o Estado tem vindo a apropriar-se numa espiral cada vez maior.
O que significa que a única oposição possível é a liberal. Sem este tipo de oposição, não há oposição a não ser a comunista e a do BE, que é uma variante da comunista. Só uma oposição liberal reformista e moderada pode mudar este estado de coisas. O consenso acéfalo dos dias de hoje é favorecido pela inexistência ou debilidade desta oposição.

(No Público de hoje.)

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O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES:
ANUNCIA-SE, LEGISLA-SE, ...QUANDO SE PUDER FAZ-SE




Hoje, o Diário da República, presenteia-nos com mais um choque tecnológico:

Portaria n.º 657-A/2006 de 29 de Junho - Aprova o Regulamento do Registo Comercial

Preâmbulo:

“O Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, procedeu a uma profunda alteração do Código do Registo Comercial, designadamente com (…) a criação de condições para a plena utilização dos sistemas informáticos e a reformulação de actos e procedimentos internos.

Simultaneamente, procedeu à revogação do Regulamento do Registo Comercial, pelo que se torna necessário aprovar uma nova regulamentação daquele Código, desenvolvendo as novas soluções nele previstas.

Artigo 2.º

Disposições transitórias

1 - Enquanto não se verificar a informatização do serviço de registo, são aplicáveis a este as disposições do Regulamento do Registo Comercial, aprovado pela Portaria n.º 883/89, de 13 de Outubro, que respeitem a livros, fichas e verbetes ou que pressuponham a sua existência.”

Ou seja, a nova lei entrou em vigor, salvo nos seus aspectos principais, em que se aplica a legislação anterior.

Continua-se a fazer tudo como dantes, porque não há condições materiais para implementar a lei. Primeiro anuncia-se e legisla-se. Se e quando se puder, faz-se. Dito, mas não feito. (Estamos a criar condições, dizem no preâmbulo ….)

Valia a pena contabilizar os casos como este. Suspeito que íamos ter uma surpresa.

(RM)

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RETRATOS DO TRABALHO EM MONTREAL, CANADÁ


(Ricardo Prata)

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LENDO
VENDO
OUVINDO

ÁTOMOS E BITS

de 29 de Junho de 2006


Continuam as palavras a revelar as posições. No noticiário da RTP1 sobre a manifestação da FRETILIN em Dili, várias interessantes distinções entre "nós" e "eles", inscritas na escolha das palavras. A favor de Xanana e contra o Governo são os "timorenses", a favor do Governo são "os apoiantes da FRETILIN". De um lado os "jovens", do outro os "manifestantes". Uns são contados para sugerir que são poucos e finitos; outros, nunca são contados para serem os "timorenses", a nação, o povo.

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INTENDÊNCIA



O caminho para a devolução à origem (a FNAC) do HP Pavilion Dual core continua a passo acelerado. Pelo meio, ficam muitas horas de trabalho perdidas. A assistência da HP após uma longa navegação entre "prima 1 e "prima 2", remete-me para outro número de telefone. No segundo número, um técnico informa-me que é "normal" que não se possa instalar o Windows XP Professional, sobre o Home de origem, devido á configuração especial do software feita na fábrica. Excelente! Depois quando lhe digo que o computador bloqueia sempre que acede à Internet em banda larga, apesar de fazer a ligação, - que o seu irmão HP mais velho ao lado faz na perfeição -, diz que nunca soube da existência desse problema e que deve ser um problema com o modem da Telepac, o mesmo modem que deve existir em milhares de casas. Excelente! O computador liga, não liga? Liga, com alguma dificuldade depois dos bloqueios, mas liga. O software arranca normalmente, não arranca? Arranca, depois de ser reconfigurado de raiz n vezes. O computador liga à Internet não liga? Liga, e funciona entre trinta segundos e um minuto antes de bloquear exigindo ser desligado. Então o problema não é com a HP.

PS. - Agradeço aos meus amigos leitores que me aconselham... a mudar para um Macintosh.

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EARLY MORNING BLOGS

805 -
"La vieille crut qu'on la méprisait, et grommela quelques menaces entre ses dents."


Il était une fois un Roi et une Reine, qui étaient si fâchés de n'avoir point d'enfants, si fâchés qu'on ne saurait dire. Ils allèrent à toutes les eaux du monde; voeux, pèlerinages, menues dévotions, tout fut mis en oeuvre, et rien n'y faisait. Enfin pourtant la Reine devint grosse, et accoucha d'une fille: on fit un beau Baptême; on donna pour Marraines à la petite Princesse toutes les Fées qu'on pût trouver dans le Pays (il s'en trouva sept), afin que chacune d'elles lui faisant un don, comme c'était la coutume des Fées en ce temps-là, la Princesse eût par ce moyen toutes les perfections imaginables. Après les cérémonies du Baptême toute la compagnie revint au Palais du Roi, où il y avait un grand festin pour les Fées. On mit devant chacune d'elles un couvert magnifique, avec un étui d'or massif, où il y avait une cuiller, une fourchette, et un couteau de fin or, garni de diamants et de rubis. Mais comme chacun prenait sa place à table, on vit entrer une vieille Fée qu'on n'avait point priée parce qu'il y avait plus de cinquante ans qu'elle n'était sortie d'une Tour et qu'on la croyait morte, ou enchantée. Le Roi lui fit donner un couvert, mais il n'y eut pas moyen de lui donner un étui d'or massif, comme aux autres, parce que l'on n'en avait fait faire que sept pour les sept Fées. La vieille crut qu'on la méprisait, et grommela quelques menaces entre ses dents.

(Charles Perrault, La belle au bois dormant)

*

Bom dia!

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28.6.06


COISAS SIMPLES



Jean-Léon Gérôme, Les pigeons

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INTENDÊNCIA



Continuo enredado na tarefa, que devia ser simples e se torna cada vez mais complicada, de mudar de um computador para outro, ambos da mesma marca, HP. O meu primeiro encontro com a assistência técnica da HP foi prometedor: tudo o que funciona mal é, pelos vistos, suposto funcionar mal e eu devo resignar-me a essa realidade. Para um computador de topo de gama, é meio caminho andado para ser devolvido à procedência. Vamos ver se consigo evitar o outro meio do caminho, pelos meus meios. Darei notícias para prevenir os incautos.

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EARLY MORNING BLOGS

804 - IT SURE WAS PLEASANT TO SPEND A DAY IN THE COUNTRY

Farm Implements and Rutabagas in a Landscape

The first of the undecoded messages read: "Popeye sits
in thunder,
Unthought of. From that shoebox of an apartment,
From livid curtain's hue, a tangram emerges: a country."
Meanwhile the Sea Hag was relaxing on a green couch: "How
pleasant
To spend one's vacation en la casa de Popeye," she
scratched
Her cleft chin's solitary hair. She remembered spinach

And was going to ask Wimpy if he had bought any spinach.
"M'love," he intercepted, "the plains are decked out
in thunder
Today, and it shall be as you wish." He scratched
The part of his head under his hat. The apartment
Seemed to grow smaller. "But what if no pleasant
Inspiration plunge us now to the stars? For this is my
country."

Suddenly they remembered how it was cheaper in the country.
Wimpy was thoughtfully cutting open a number 2 can of spinach
When the door opened and Swee'pea crept in. "How pleasant!"
But Swee'pea looked morose. A note was pinned to his bib.
"Thunder
And tears are unavailing," it read. "Henceforth shall
Popeye's apartment
Be but remembered space, toxic or salubrious, whole or
scratched."

Olive came hurtling through the window; its geraniums scratched
Her long thigh. "I have news!" she gasped. "Popeye, forced as
you know to flee the country
One musty gusty evening, by the schemes of his wizened,
duplicate father, jealous of the apartment
And all that it contains, myself and spinach
In particular, heaves bolts of loving thunder
At his own astonished becoming, rupturing the pleasant

Arpeggio of our years. No more shall pleasant
Rays of the sun refresh your sense of growing old, nor the
scratched
Tree-trunks and mossy foliage, only immaculate darkness and
thunder."
She grabbed Swee'pea. "I'm taking the brat to the country."
"But you can't do that--he hasn't even finished his spinach,"
Urged the Sea Hag, looking fearfully around at the apartment.

But Olive was already out of earshot. Now the apartment
Succumbed to a strange new hush. "Actually it's quite pleasant
Here," thought the Sea Hag. "If this is all we need fear from
spinach
Then I don't mind so much. Perhaps we could invite Alice the Goon
over"--she scratched
One dug pensively--"but Wimpy is such a country
Bumpkin, always burping like that." Minute at first, the thunder

Soon filled the apartment. It was domestic thunder,
The color of spinach. Popeye chuckled and scratched
His balls: it sure was pleasant to spend a day in the country.

(John Ashbery)

*

Bom dia!

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27.6.06


CORREIO / INTENDÊNCIA

Uma mudança de computador, com as habituais complicações, tem afectado o correio mais do que ele já estava com um infinito e irrecuperável atraso nas respostas. As minhas desculpas.

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LENDO
VENDO
OUVINDO

ÁTOMOS E BITS

de 27 de Junho de 2006


Os defensores do nosso omnipresente Estado devem estar contentes: conforme declarações do Secretário de Estado do Desporto à TSF uma das coisas de que cuida com desvelo o nosso Governo é escolher (neste caso manter) o selecionador nacional do futebol. É certamente uma questão de Estado...

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26.6.06


COISAS DA SÁBADO: A FRAGMENTAÇÃO DE ESPANHA

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Existe uma velha máxima da nossa política externa que considera sempre positivas as dificuldades do poder central de Castela face às suas periferias bascas, catalãs e galegas. Qualquer reforço da unidade do estado espanhol é visto como perigoso para Portugal, a única “região” que ficaria de fora da pulsão centralizadora de Madrid e do seu olhar capcioso para um Portugal independente. Desde 1640 agradecemos à Catalunha o puro facto desta existir e assim nos ajudar também a existir. De Espanha, como todos sabemos, não vem nem bom vento, nem bom casamento.

Sei tudo isto e … no entanto, não deixo de ver com preocupação a tendência para a fragmentação do estado espanhol que deu a semana passada outro passo com a aprovação referendária do novo estatuto da Catalunha. É um caminho perigoso, trilhado por Zapatero também no País Basco, abrindo as portas à negociação com a ETA terrorista. É daquelas coisas que hoje parecem pacíficas e benignas, mas que começam a revelar um caminho sem retorno para a independência da Catalunha e do Pais Basco, sob o olhar apaziguador, mas bem pouco espanhol, de Zapatero. Não será nos dias mais próximos, mas língua, impostos, polícias, órgãos de comunicação regionais e proximidades a outros lugares centrais que não Madrid, darão à Espanha dias quentes e isso não é bom para Portugal.

*
Lembro-me de ter lido no Abrupto, aquando duma visita a Budapeste,o seguinte comentário: "A descentração étnica, linguística, cultural e religiosa significa toda uma «história» por resolver (por exemplo, a importante população que fala húngaro e que ficou na Roménia, como se vê no mapa [...])" (Abrupto, 15.5.06) Tenho dificuldade em compreender a posição do Abrupto: por um lado, a aprovação referendária do novo estatuto da Catalunha é considerada "um caminho perigoso", por outro lado, os conflictos étnicos latentes na longínqua Transilvania representam "uma história por resolver". Tentar resolver essa história não seria um caminho perigoso ? Por quê ? Só porque a Espanha está mais perto ? Só porque eventuais "dias quentes" na Hungria e na Roménia não chegariam a ter influência em Portugal ?

(Cristian Barbarosie)

*

Não posso deixar de considerar o seu texto uma manifestação de conservadorismo, no mau sentido do termo. Um medo de mudar nem que seja para se sair de uma situação de injustiça, neste caso a opressão secular de várias nações por um estado imperialista administrativa, culturalmente, etc. Dá-lhe medo que se cumpra um dos princípios consagrado pelas Nações

Unidas, o direito à autodeterminação dos povos. E parece ser um sentimento tão forte e irracional que lhe chega para tirar a conclusão ilógica de que essa independência é prejudicial a um terceiro país, neste caso a nós, Portugal; a conclusão absurda de que quanto maior e mais forte for o vizinho de um pequeno país, melhor será para este último. Isto já não se trata de um julgamento de valor, do direito à autodeterminação dos povos, mas um julgamento de conveniência prática que a ser verdadeira teria levado durante a história a todos os pequenos países desejarem que os seus vizinhos fossem grandes e poderosos.

(Henrique Oliveira)

*

Já em tempos tinha tomado a liberdade de lhe escrever focando o problema que constituía a ausência de qualquer debate estratégico (pelo menos público), em Portugal, sobre a questão das nacionalidades e autonomias de Espanha (e da Península, já agora). Infelizmente, penso o assunto tem sido quase sempre tratado como uma mera questão interna de Espanha e da luta contra o terrorismo da ETA e, mesmo assim, de um modo demasiado emocional: à direita, a sua ala mais radical é quem tem liderado o debate, decalcando as suas posições, de forma imediatista, das posições dos sectores mais conservadores, e também mais emocionais, do PP de Espanha, influenciados pela "Associação de Vítimas da ETA"; à esquerda, demasiado ausente na análise, a emoção ainda remete para a associação da unidade do estado espanhol ao império castelhano, à ditadura franquista e à monarquia do início do século XX. Tudo isto influenciado, por um lado, por uma certa frustração latente no centro-direita em Portugal pelos fracassos dos governos Barroso e Santana Lopes, tentando cavalgar os indiscutíveis sucessos do PP de Espanha durante o governo Aznar; por outro, pelo peso que o pensamento republicano tradicional e as memórias da guerra civil ainda têm em alguns sectores da esquerda e pela associação que sempre se fez das burguesia basca e catalã ao desenvolvimento e ao "progressismo". Em ambos os casos, a ausência de qualquer visão estratégica para Portugal está infelizmente ausente, esquecendo-se que a luta pela unidade/fragmentação da península tem sido uma constante em toda a sua história e que muito pouco distingue um português de um castelhano (muito menos de um galego). Muito menos, certamente, do que o que distingue um basco de um castelhano ou de um catalão... Filho de um madrileno, embora sem sangue espanhol mas com fortes ligações culturais e sentimentais a Espanha, devo ter sido dos poucos portugueses que não foi educado no "ódio a Castela". Por isso, sempre acompanhei a questão das nacionalidades e autonomias peninsulares com um interesse redobrado, mais tarde ainda mais acentuado por contactos profissionais e por um dos meus filhos ter feito parte do seu curso na Universidade Politécnica da Catalunha e uma filha viver e trabalhar actualmente em Madrid. Devo dizer, do ponto de vista estratégico para Portugal, que tenho tudo menos certezas, sendo bem necessário lançar a discussão ignorando o "politicamente correcto" e as emoções. Tenho, contudo, uma certeza: a necessidade de tornar obrigatório o ensino do castelhano na escola portuguesa como segunda língua estrangeira. Sem "ódio a Castela" e sem medo de "perder a pátria" - e antes que se acorde tarde como aconteceu com o Inglês. Quanto a Espanha, o caminho das "nacionalidades" trilhado por Zapatero parece-me inelutável, e só a História dirá até onde. Até porque a direita espanhola não me parece alguma vez ter tido para a questão uma estratégia sustentável, que, com maior ou menor grau de centralismo, fosse muito para além, no limite, da "España Una, Grande Y Libre".

(João Cilia)

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COISAS DA SÁBADO: XADREZ



Nestas alturas de futebolite aguda, volto ao xadrez. Ouço os berros habituais ao longe, muito ao longe, com o “intelectualismo livresco” deste pobre autor que cometeu o crime de lesa-pátria de não saber quem era o Quaresma… Pois eu respondo aos berros anti-livrescos com o xadrez, venham cá pedir meças, num jogo onde nada se esconde, tudo se vê e não é possível fazer batota. Em poucos jogos é mais evidente o carácter, a psicologia do jogador, a sua agressividade ou calma, a sua racionalidade ou criatividade, a sua teimosia ou ousadia. Mas cuidado, porque o xadrez é, num certo sentido, o mais violento dos jogos. No tabuleiro, o que se passa é uma batalha e quem lá está são soldados, cavaleiros, oficiais, fortalezas e uma tenebrosa rainha, O rei é o penhor da soberania mas, por si, pode pouco.

Está lá tudo, no silêncio, naquela aparente suspensão do mundo que torna os jogadores de xadrez figuras míticas, travando uma batalha épica, isolados no meio de um mundo que lhes passa ao lado. Introspectivo e sem a grande teatralização do espectáculo moderno de massas, o xadrez é ainda um dos pináculos das virtudes da inteligência matemática, posicional, territorial, táctica e estratégica.

Valia a pena haver mais xadrez e muito menos futebol. Por um átomo do que estão a gastar no futebol, estado e privados, podiam colocar centenas de escolas a jogar xadrez, milhares de jovens e crianças a pensar com a cabeça e não com os pés. Fica o país melhor? Fica, fica. Não faz mal nenhum usar os neurónios.

*

Sem colocar em causa o ponto capital do seu artigo "Xadrez", devo dizer que não concordo consigo quando defende que o desporto a que o mesmo se refere é "um jogo onde nada se esconde, tudo se vê e não é possível fazer batota." De facto, já no tempo da União Soviética, Bobby Fisher - histórico jogador norte-americano - se queixava de que os soviéticos combinavam resultados entre si, de forma a terem maior disponibilidade mental para o derrotar. Tal facto levou-o mesmo a afirmar, em 1963, que não voltaria a participar em
torneios da FIDE.

Por outro lado, o "doping" também existe no xadrez. A título meramente indicativo chamaria atenção para o artigo "O 'doping' inteligente para jogadores de xadrez" publicado no Diário de Notícias a vinte e quatro de Janeiro do presente ano.

(Frederico dos Santos Silva)

*

Então V. acredita que estas pobres gentes, mesmo 36 anos depois de Abril, iriam promover o jogo nacional dos patifes dos bolchevistas? E ainda por cima um jogo que estimula o intelecto? Claro que concordo consigo e que me aflijo com um país que vai desbaratando alegrementeo o bem mais precioso de qualquer sociedade: a INSTRUÇÃO.

(José Manuel Calazans)

*

Tem razão quando refere que seria mais útil colocar xadrez nas escolas e daí, gastar efectivamente dinheiro nas escolas (a isso chama-se investimento, não?). Mas sabe, isso é pouco mediático, não dá o show do qual o nosso ministro revela dependência, não é imediato. Moldar uma sociedade leva muito tempo, é um trabalho “silencioso” feito nas escolas, e com efeitos para outros tantos mais anos. O continuar a apostar na bola é continuar a adiar o trabalho dos neurónios (como disse). Como fica bem o povo entretido com a bola; assim não pensa! Esta estratégia qual muleta de regimes passados autoritários, continua preocupantemente actual. Parece-me que afinal, desde que partimos do 25 de Abril, o nosso percurso tem sido um círculo, que está prestes, prestes a fechar-se. Se é que me faço entender.

(Sofia Ávila da Silveira)

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RETRATOS DO TRABALHO



P. S. Kroyer, Três Pescadores

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803 - THE BOND OF THE SEA

The Nellie, a cruising yawl, swung to her anchor without a flutter of the sails, and was at rest. The flood had made, the wind was nearly calm, and being bound down the river, the only thing for it was to come to and wait for the turn of the tide.

The sea-reach of the Thames stretched before us like the beginning of an interminable waterway. In the offing the sea and the sky were welded together without a joint, and in the luminous space the tanned sails of the barges drifting up with the tide seemed to stand still in red clusters of canvas sharply peaked, with gleams of varnished sprits. A haze rested on the low shores that ran out to sea in vanishing flatness. The air was dark above Gravesend, and farther back still seemed condensed into a mournful gloom, brooding motionless over the biggest, and the greatest, town on earth.

The Director of Companies was our captain and our host. We four affectionately watched his back as he stood in the bows looking to seaward. On the whole river there was nothing that looked half so nautical. He resembled a pilot, which to a seaman is trustworthiness personified. It was difficult to realize his work was not out there in the luminous estuary, but behind him, within the brooding gloom.

Between us there was, as I have already said somewhere, the bond of the sea.

(Joseph Conrad, Heart of Darkness)

*

Bom dia!

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25.6.06


LENDO
VENDO
OUVINDO

ÁTOMOS E BITS

de 25 de Junho de 2006


Solidariedade na Futebolândia: estamos sempre muito preocupados com Timor, muito solidários, mas é só depois do futebol. Hoje, que há notícias importantes sobre Timor, em todos os noticiários dos canais de televisão, esperaram vinte minutos (na Sic a mais rápida), para aparecer. Antes disso havia a não-notícia: o espectáculo da bola antes da bola. É assim, prioridades. E a televisão pública deu o exemplo, continuou com o futebol já a SIC dava notícias.

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802 - "O HOMEM SÓ É SUPERIORMENTE FELIZ QUANDO É SUPERIORMENTE CIVILIZADO"

Ora nesse tempo Jacinto concebera uma idéia... Este Príncipe concebera a idéia de que o “homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. E pôr homem civilizado o meu camarada entendia aquele que, robustecendo a sua força pensante com todas as noções adquiridas desde Aristóteles, e multiplicando a potência corporal dos seus órgãos com todos os mecanismos inventados desde Terâmenes, criador da roda, se torna um magnífico Adão, quase onipotente, quase onisciente, e apto portanto a recolher dentro duma sociedade, e nos limites do Progresso (tal) como ele se comportava em 1875) todos os gozos e todos os proveitos que resultam de Saber e Poder... Pelo menos assim Jacinto formulava copiosamente a sua idéia, quando conversávamos de fins e destinos humanos, sorvendo bocks poeirentos, sob o toldo das cervejarias filosóficas, no Boulevard Saint-Michel.

Este conceito de Jacinto impressionara os nossos camaradas de cenáculo, que tendo surgido para a vida intelectual, de 1866 a 1875, entre a batalha de Sadova e a batalha de Sedan e ouvindo constantemente, desde então, aos técnicos e aos filósofos, que fora a Espingarda-de-agulha que vencera em Sadova e fora o Mestre-de-escola quem vencera em Sedan, estavam largamente preparados a acreditar que a felicidade dos indivíduos, como a das nações, se realiza pelo ilimitado desenvolvimento da Mecânica e da erudição. Um desses moços mesmo, o nosso inventivo Jorge Carlande, reduzira a teoria de Jacinto, para lhe facilitar a circulação e lhe condensar o brilho, a uma forma algébrica:

Suma ciência X Suma potência= Suma felicidade

E durante dias, do Odeon à Sorbona, foi louvada pela mocidade positiva a Equação Metafísica de Jacinto.

Para Jacinto, porém, o seu conceito não era meramente metafísico e lançado pelo gozo elegante de exercer a razão especulativa: - mas constituía uma regra, toda de realidade e de utilidade, determinando a conduta, modalizando a vida. E já a esse tempo, em concordância com o seu preceito – ele se surtira da Pequena Enciclopédia dos Conhecimentos Universais em setenta e cinco volumes e instalara, sobre os telhados do 202, num mirante envidraçado, um telescópio. Justamente com esse telescópio me tornou ele palpável a sua idéia, numa noite de Agosto, de mole e dormente calor. Nos céus remotos lampejavam relâmpagos lânguidos. Pela Avenida dos Campos Elísios, os fiacres rolavam para as frescuras do Bosque, lentos, abertos, cansados, transbordando de vestidos claros.

- Aqui tens tu, Zé Fernandes (começou Jacinto, encostado à janela do mirante), a teoria que me governa, bem comprovada.


(Eça de Queirós)

*

Bom dia!

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24.6.06


LENDO
VENDO
OUVINDO

ÁTOMOS E BITS

de 24 de Junho de 2006


O primeiro retrato, a nossa fragilidade na pedra, por uma mão (ou duas, ou três) com 27.000 anos. Não mudamos nada.

Cave art, France

*

Ribeira no S. JoãoA RTP1 ontem transmitiu em directo o "S. João" do Porto. Mas para poder ter programa, o S. João da televisão não é o S. João do Porto. A televisão transmitiu uma festa organizada para ela própria e o fogo de artifício, mas nem uma coisa nem outra são o S. João do Porto.

O S. João do Porto não se presta a passar na televisão, é uma festa única, absoluta e democrática como nada neste país. Na noite de S. João o Porto sai à rua, para estar na rua e andar na rua. Atrás daquelas festas para a televisão milhares e milhares de pessoas estão pura e simplesmente a andar pelas ruas e a bater na cabeça umas das outras com um alho-porro (cada vez menos) e com uns abomináveis martelos de plástico, que cada vez parecem ser maiores. Em quase todas as casas, ricas e pobres, depois do jantar, as famílias juntas, ou os jovens para um lado e os mais velhos para outro, fecham a casa e vêm para a rua. No S. João do Porto não há lugares centrais, não é uma festa dos bairros populares, é uma festa que se estende por toda a cidade, embora as Fontaínhas e a Ribeira fossem pólos de atracção. Mas eram apenas sítios onde havia alguma coisa mais do que a rua, nas Fontainhas uns carrosséis e farturas e na Ribeira uns bailes. Na Ribeira havia um baile, que penso único nos anos da ditadura, em que homens dançavam com homens e onde pontificava o célebre "Carlinhos da Sé". Os populares da Ribeira impediam qualquer provocação ou incidente, considerando que aquela noite era de todos e da liberdade de todos. Era a noite em que se podia fazer tudo e não havia polícia nas ruas. (Antes do 25 de Abril era também uma noite aproveitada para distribuir panfletos, a que a PIDE estava cada vez mais vigilante embora evitasse dar nas vistas porque com a multidão nada era seguro…).

O ambiente democrático da rua, em que ninguém se livrava de levar com o alho na cabeça, e onde completos desconhecidos trocavam cumprimentos e piropos, revelava o carácter muito especial da única cidade verdadeiramente “burguesa” do país. Trabalhava duro durante o ano e depois tinha a sua Saturnalia, que tomava tão a sério como o trabalho. No Porto, não havia (e não há) essa coisa de “bairros populares” versus “avenidas novas”, nem nobres marialvas e fadistas que depois dos touros vão para as “casas de tabuinhas” conviver com apaches e severas, isto para usar os nomes antigos e poupar os ouvidos sensíveis. No Porto todos, menos os “ingleses” que nunca se viam, estavam na rua. Ora isso não cabe na televisão, só num IMAX e mesmo assim transborda.

Já há uns anos que lá não estou no S. João. Espero que tudo continue assim. Espero.


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EARLY MORNING BLOGS

801 - CALL ME ISHMAEL

Call me Ishmael. Some years ago- never mind how long precisely- having little or no money in my purse, and nothing particular to interest me on shore, I thought I would sail about a little and see the watery part of the world. It is a way I have of driving off the spleen and regulating the circulation. Whenever I find myself growing grim about the mouth; whenever it is a damp, drizzly November in my soul; whenever I find myself involuntarily pausing before coffin warehouses, and bringing up the rear of every funeral I meet; and especially whenever my hypos get such an upper hand of me, that it requires a strong moral principle to prevent me from deliberately stepping into the street, and methodically knocking people's hats off- then, I account it high time to get to sea as soon as I can. This is my substitute for pistol and ball. With a philosophical flourish Cato throws himself upon his sword; I quietly take to the ship. There is nothing surprising in this. If they but knew it, almost all men in their degree, some time or other, cherish very nearly the same feelings towards the ocean with me.

(Herman Melville)

*

Bom dia!

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23.6.06


LENDO
VENDO
OUVINDO

ÁTOMOS E BITS

de 23 de Junho de 2006 (2ª série)


Scary news: Confirmado primeiro caso de transmissão de gripe das aves entre seres humanos.

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800 EARLY MORNING E OUTRAS EFEMÉRIDES



O primeiro da série era assim:

4.7.03

10:20 (JPP)

VALE A PENA : EARLY MORNING BLOGS


O Comprometido Espectador acrescenta novos elementos sobre a situação italiana por quem a conhece em primeira mão. E propõe um “Ver outra vez” a acrescentar ao “Ler outra vez” . Primeira menção : o Pinóquio de Disney
ou seja era o que é hoje o LENDO / VENDO / OUVINDO, uma revista de blogues. Depois tombou o "VALE A PENA" e ficou apenas o EARLY MORNING BLOGS, ambos sem negrito. A maioria dos blogues citados nos primeiros cinquenta EARLY MORNINGs já desapareceram, embora nalguns casos os seus autores tenham aberto outros, fechados de novo e aberto uma terceira vaga.

A blogosfera era então muito diferente e estava a mudar muito depressa. O grande surto dos blogues era contemporâneo desta nota. Vinha de ser mais pequena, estava a democratizar-se. Era polémica, mas ainda era amável. Estava a tornar-se ácida tão rapidamente quanto se estava a democratizar. Nos EARLY MORNING BLOGs tentou acompanhar-se essas mudanças dando origem àquilo que se veio a chamar "metabloguismo". Recorde-se para a memória que o meta-bloguismo foi recebido com muita hostilidade, em particular pelos autores de blogues pioneiros. Exemplos de metabloguismo nos primeiros cinquenta EARLY MORNING BLOGs:
5 de Julho de 2003: EARLY MORNING BLOGS 2: O mundo continua lá fora e quanto mais vozes se ouvirem melhor. Eu sou um liberal, acredito na lei dos grandes números, na “mão invisível”. Há virtudes na cacofonia, cada voz a menos empobrece.

15 de Julho de 2003: EARLY MORNING BLOGS 9

Quando se lê um número suficiente de blogues e, esforçando-me por sair da rede mais densa do mainstream, – aquele círculo de blogues que estão intensamente “linkados” uns com os outros e tem uma massa crítica suficiente para impor temáticas e aparecer como a face da blogosfera fora dela – apercebem-se as tendências e apercebe-se, acima de tudo, a enorme revolução do meio em Portugal nos últimos meses. Por isso é que o meta-bloguismo é natural, é uma reacção de auto-compreensão e auto-definição compreensível em tempos de tumulto.

Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo como é habitual numa revolução. Cito Lenine, já que os nossos amigos à esquerda tem grande pudor em o fazer, - e permito mais umas brincadeiras humorísticas comigo inteiramente previsíveis - porque a frase aplica-se bem ao momento actual da blogosfera :

“Só quando os "de baixo" não querem e os "de cima" não podem continuar vivendo à moda antiga é que a revolução pode triunfar.”

O que se está a dar é a democratização da blogosfera com a entrada de muita gente no duplo sentido: novos blogues e novos leitores. Por outro lado, a exposição exterior dos blogues introduziu diferentes critérios de avaliação que não coincidiam com os dominantes no seu interior.

Este efeito acabou com a blogosfera cosy , fortemente estratificada entre blogues a quem ninguém ligava nenhuma e blogues que através de um permanente diálogo, do auto-elogio, de um espírito de elite que ultrapassava claramente qualquer barreira ideológica, se apresentavam como primus inter pares. A distinção esquerda - direita era menos importante do que a distinção entre os amigos e os desconhecidos, entre “nós, os bons” e eles a turba ignara de mau gosto. A lista de “blogues de serviço público” no Blogo era o retrato desse mundo fechado que explodiu.

Era também natural que a maioria das pessoas se conhecessem umas às outras e fossem amigos. Quando, num meio de comunicação qualquer, todos se conhecem, ou todos tem a mesma idade, ou todos tem a mesma formação, ou todos lêem os mesmos livros, ou frequentam todos os mesmos restaurantes, é porque esse meio está na infância.

Tudo isto gera muitas tensões e uma certa irritação era inevitável (“os "de cima" não podem continuar vivendo à moda antiga”). Nalguns blogues mais antigos há uma clara evolução do blogue-optimismo para o blogue-cepticismo, que nada justifica, porque só um cego é que pensa que a blogosfera está pior porque não é um clube de vinte amigos. É natural que tenham vontade de migrar e para isso, por razões psicológicas, desvalorizam o que deixam para trás.

Um dos aspectos mais saudáveis da democratização da blogosfera é que hoje é mais difícil “competir” (tomem a palavra com a latitude que quiserem), ter influência, já há muitas vozes qualificadas, muito saber em muitas áreas, uma diversificação temática, de opiniões e de escritas, que a capacidade para se afirmar já não depende do elogio mútuo, mas de se ter ou não uma voz própria e persistência. Este último factor é o que mais falta na blogosfera, onde um mês é um século e se chega a conclusões taxativas lendo cinco ou seis blogues de um dia para o outro.

Eu sou liberal no sentido antigo, prezo a chuva e o mau tempo, a fúria e a calma das discussões, e gosto de ouvir muitas vozes diferentes. Como já disse e repito, na blogosfera, a “mão invisível” está dentro da cacofonia e para exercer o seu efeito positivo é suposto ser mesmo “invisível”. A blogosfera portuguesa passou de ter uma mão “visível” para ter uma “invisível” e foi, em primeiro lugar, o número que provocou esse efeito. Mais gente, mais vozes, tudo mais árduo. Esta é a revolução.


19 de Julho: EARLY MORNING BLOGS 12

Nos blogues …

… as pessoas zangam-se muito, são muito piegas, são malcriadas, são gentis, são espertas, são espertinhas, são parvas, copiam, fazem de conta que não copiam, irritam-se, reconciliam-se, cuidam muito da sua identidade, dão-se todas aos estranhos, representam, representam-se, são azedas, são poucas vezes alegres, são tristes, são tristonhas, são fúteis, são totalmente fúteis, têm interesse, têm interesses, têm egos gigantescos, têm egos pequeninos, têm que “dizer-qualquer-coisismo” , deixam cair muitos nomes, deixam cair muitos livros, parece que lêem muito, lêem muito, não lêem quase nada, nunca vêem televisão, tem graça, são engraçadinhas, têm tribos, têm fúrias, têm territórios, estão sozinhas, estão tanto mais sozinhas quanto mais acompanhadas, têm alguns pais, começam a ter filhos, têm maridos, não têm amantes, têm “o que escrevo é para ti”, têm “o que escrevo é só para ti”, têm “o que escrevo é só para ti”, mas é só para mim , ou para o outro(a), não têm muita paciência, têm pressa de chegar a algum lado, têm a esperança de chegar a qualquer lado, estão convictos que não vão chegar a lado nenhum, têm quereres, têm birras, são meli-melo, são assim …

… porque se calhar é assim na vida toda.

Como os blogues não têm editor, a vida aparece sem ser editada.
Engano, puro engano. Funciona aqui um gigantesco editor, o monstro que está dentro.

19 de Julho EARLY MORNING BLOGS 13

Eu sou um adepto do meta-bloguismo, embora pense que o excesso do dito levaria a uma esterilidade completa. O meu meta-bloguismo vem de não conseguir usar um meio sem me esforçar por o perceber. Num primeiro tempo, este olhar “tira” liberdade, condiciona, “prende” e por isso o meta-bloguismo gera sempre um certo mal-estar. Mas há um segundo olhar, que se calhar também vem com o primeiro, que acaba por nos dar uma ainda maior liberdade. Eu sou da escola de quem pensa que conhecer liberta. Não há provavelmente maior ilusão nos últimos duzentos anos, do que achar que as “luzes” alumiam, mas eu prefiro um mundo em que se proceda (eu disse proceda e não acredite) segundo essa ilusão.

28 de Julho: EARLY MORNING BLOGS 19

Matérias que não entram nos blogues: pobreza, desemprego, levar os filhos à escola às oito da manhã, cozinhar (sem ser por prazer), trabalhos domésticos, trabalho de um modo geral com excepção de algum trabalho intelectual, doenças, quase todas as formas de escassez. Lugares que não entram: locais de trabalho fora de universidades, escolas, firmas de informática, telecomunicações, e jornais, nove décimos de Portugal e muito mais ainda.

Pelo contrário, os caminhos do Magnólia à FNAC do Chiado, do Lux ao Algarve ou ao Alentejo, estão tão trilhados nos Moleskines que até deixam um sulco como os carros de bois nas pedras antigas.Nesta matéria não há distinções nem políticas, nem ideológicas, nem esquerda , nem direita.

Não é um julgamento de valor, porque também não entram no Abrupto, é uma constatação, chamemos-lhe assim, social. Para que não percamos a nossa (a minha) medida.

No dia 13 de Setembro, no EARLY MORNING BLUES 39, já a negrito, publica-se o primeiro poema:
Foram os “Early Morning Blues” que deram o nome aos “Early Morning Blogs”. Há vários e em várias versões. Aqui está uma dos The Monkees:

A distant night bird mocks the sun.
I wake as I have always done,
To freshly scented sycamore
And cold bare feet on hardwood floor.

My steaming coffee warms my face
I'm disappointed in the taste.
But there's a peace the early brings
The morning world of growing things.

I feel the moments hurry on
It was today, it's died away,
And now it is forever gone.

And I will drink my coffee slow
And I will watch my shadow grow
And disappear in firelight
And sleep alone again tonight.
e a fórmula foi-se consolidando. Ainda houve um EARLY MORNING BLOGS / BLUES 45, um EARLY MORNING BLOGS / BOOKS 47, um EARLY MORNING BLOGS / SONGS 48. Só bastante depois do cinquenta é que esta parte do Abrupto se tornou o que é hoje. "A poem a day keeps boredom at bay".

(Devo a uma leitora de sempre a gentileza de ter feito uma antologia dos EARLY MORNINGS que me surpreendeu pelas diferenças - de "tom" , como se diz no Miniscente, o que nunca se repete -, embora não com as continuidades, porque eu sou da escola teimosa em matéria do pensamento e opinião.)

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LENDO
VENDO
OUVINDO

ÁTOMOS E BITS

de 23 de Junho de 2006


The image “http://www.correspondance-voltaire.de/assets/images/mahomet_voltaire.jpg” cannot be displayed, because it contains errors. fac-similé encyclopédie Larousse en 7 volumes des environs de 1905
Em França, no meio do incómodo geral e de muitos silêncios (uma excepção em La République des Livres) , republica-se Le Fanatisme ou Mahomet et le prophète de Voltaire, uma peça de teatro, como o nome indica, contra o fanatismo e a utilização da religião para fomentar o assassinato . Voltaire dizia : « Mahomet n’est ici autre chose que Tartuffe les armes à la main

*

Muito, muito interessante a análise e os exemplos (via Frescos) com que o (ou a? é masculino ou feminino?) Slate examina as críticas dos seus leitores e o problema de uma publicação na Rede corrigir junto da nota original, uma vez esta colocada num arquivo. O modo como no texto em linha se circula entre os tempos do presente e do passado, particularmente quando o passado é tornado presente por novos dados e pelas rectificações dos erros, ainda não está resolvido.
Veja-se este exemplo de uma crítica de um leitor:

"So, if, for instance, you think you've nailed President Bush in an error, link to the whole speech, so people can see the context. That way, when you're mocking Bush for saying, "I'm honored to shake the hand of a brave Iraqi citizen who had his hand cut off by Saddam Hussein," readers can easily go to the full quote, and see that it says

I'm honored to shake the hand of a brave Iraqi citizen who had his hand cut off by Saddam Hussein. … I appreciate Joe Agris, the doctor who helped put these hands on these men. … These men had hands restored because of the generosity and love of an American citizen …

Bush was shaking the prosthetic hands of people whose real hands had been cut off by Hussein. In context, there's nothing risible about his statement (as Spinsanity also noted; for similar examples, see here, here, and here).

Because of this, I think the Bushisms column shouldn't have run this statement. But I realize that others may disagree. That's why, rather than the impossible first-best world of "always quote accurate sources, and in context," I prefer the second-best world in which writers try their hardest to be accurate, but also provide the sources so readers can judge for themselves."

*

Por falar em Timor, está na altura de os órgãos de comunicação social começarem a preparar outra ida e volta dos seus enviados. Até para se saber o que está lá a fazer a GNR, e que timorenses mandam nela, Xanana ou o governo do país. A não ser que tudo isso seja uma ficção e sejam as autoridades portuguesas a decidir quais os timorenses que têm legitimidade para dar ordens à GNR, ou seja, tomem partido. Então, nesse caso, um governo democrático (o nosso) devia ir à Assembleia explicar as suas opções, e uma oposição a sério devia exigi-las. A não ser assim temos que ler os jornais australianos para saber o papel de Portugal na crise de poder em Timor.

*

A doença dos títulos: "Timorenses solidários com Xanana". Todos? A maioria? A resposta certa é "alguns" que até podem ser muitos, os que são trazidos "em camiões e autocarros à capital timorense e juntaram-se às cerca de 700 pessoas que passaram a noite diante do Palácio do Governo." Mais do que isto, o jornalista não sabe e provavelmente não pode saber.

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EARLY MORNING BLOGS

800

Soneto

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

(Carlos de Oliveira)

*

Bom dia!

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22.6.06


OS BLOGUES ANTES DOS BLOGUES


"Tenho o fragmento no sangue."
(Cioran)

A escrita que se encontra hoje nos blogues é velha como o tempo, embora o tempo pregue partidas, transformando as coisas noutras muito diferentes. O tempo é aquilo a que hoje se chama os "suportes", no caso da escrita na Rede, a forma dos blogues.

Repito, a tecnologia do software em que assentam os blogues tem um papel ao moldar a sua forma. Vimos no artigo anterior como ela valoriza o presente, presentificando a escrita, obrigando-a à actualidade. Agora podemos ver como ela acentua aspectos da escrita: favorece o texto contido, aquilo que na linguagem da blogosfera se chama o "post curto". O "post curto" gera uma tensão sobre o espaço das palavras, acentua a utilização estética da frase, em combinação com o título e com outros elementos gráficos. O facto de os blogues poderem usar simultaneamente texto e imagens, sons e vídeo está a dar origem à primeira grande vaga de um novo tipo de textos, nascidos na Rede e para serem lidos na Rede.

Os blogues revelam e geram novas normas de leitura na Rede que são distintas dos livros, acentuando a não-linearidade da leitura. Esta segue não apenas a frase, mas as ligações, ganha em espessura ao deslocar-se entre as diferentes páginas associadas pelo hipertexto ( mais em Hypertext). Move-se não apenas no texto, mas também pelas imagens e sons ligados ao texto, em detrimento da leitura sequencial, habitual no livro e nos jornais. A leitura num ecrã raras vezes anda para trás, tende a andar para o lado antes de andar para a frente. A escrita nos blogues é moldada por estas características físicas do novo texto electrónico e, no seu conjunto, está a ensinar a uma geração um novo cânone de leitura e escrita que poucos exploram conscientemente, mas que molda a todos.

Ora nem todo o tipo de texto, nem todos os conteúdos se prestam a esta nova forma que despedaça legibilidades antigas a favor de novas. No "post curto" a escrita vai desde a mera frase com uma ligação, ou seja, uma porta, um caminho que nos leva para longe daquela página, daquele ecrã até à entrada diarística, impressionista ou faceta, até ao mini-ensaio, pouco mais do que o aforismo. É uma escrita que favorece, comunicando quer com os títulos de jornais, quer com o aforismo, a utilização de mecanismos poéticos, mas também humorísticos e sarcásticos. Nesse sentido os blogues caem sob a crítica que Lukács fazia aos textos de Nietzsche - a de serem, pela sua forma, naturalmente irracionalistas, valorizando a metáfora, a sedução estética, em detrimento da argumentação.

Que textos têm esta qualidade de serem protoblogues? Toda a escrita moldada pelo tempo, ou pela "construção" da personagem (ou da obra) pelo tempo. Os diários, ou uma forma muito francesa de diários, os "cadernos". Mas também alguma correspondência e ensaios. Textos que colocados em blogues parecem ser escritos para blogues encontram-se no Para Além do Bem e do Mal de Nietzsche, em anotações de Kafka,

Image 1. Franz Kafka, Journal.

nos "propos" de Alain, nos diários de Morand, nos "cadernos" de Camus, Valery e Cioran. Noutros casos, o tempo e a história "partiram" os textos originais, dando-lhe essa qualidade de escrita de blogues, como acontece com os fragmentos dos pré-socráticos, restos de textos mais compridos, de tratados e de livros. E muito do que encontramos em dicionários de citações, frases que vivem por si próprias, são matéria-prima de blogues.

B. A. Pudliner No plano gráfico, muitos "cadernos" de desenhos, a começar pelos desenhos de Leonardo da Vinci com anotações, muito dos moleskines de artistas, em que o esboço e o texto manuscrito se entrelaçam, alguma banda desenhada, alguns livros de viagens. A fotografia deu origem a fotoblogues, mas está longe de revelar as suas potencialidades na construção narrativa dos blogues, para onde transporta, em imagem, tudo o que valoriza o texto curto: a impressão, o fragmento da realidade, o "olhar" no tempo. No vídeo, o sketch, o pequeno filme caseiro do género dos "apanhados", alguns filmes publicitários. O som é o menos explorado nos blogues, mas a sua utilização, por exemplo no Kottke.org como complemento de viagem - o som dos semáforos de Singapura, o ruído de um mercado, o barulho de uma fábrica -, acentua a fragmentação da narrativa ou da ilustração que está no âmago da escrita dos blogues.

Muito significativamente, todo este tipo de material é favorito na actividade de "cópia-colagem" que também a forma blogue e a Rede favorecem, apropriando-se cada um das citações, de textos e imagens que servem de reforço da sua identidade em linha. Nalgumas experiências com sucesso na blogosfera, diários foram colocados na Rede, como o de Samuel Pepys, que foi transformado num blogue, com o texto original e ligações, dando uma nova legibilidade ao texto original do século XVII.

Seria possível fazer o mesmo com muitos "cadernos" de Cioran, Camus e Valery, muito diferentes entre si, mas todos passando o teste do blogue. O facto de, no caso de Cioran, este não ter a intenção de os divulgar e inclusive ter pedido para que fossem destruídos, não retira aos seus textos a pulsão fragmentária que os aproxima do registo dos blogues. Aliás, Cioran, autor dos Silogismos da Amargura é um cultor de uma forma de escrita muito adaptada ao "post curto".

Valery passava o teste e os seus cadernos ganhariam muito com o uso de hipertexto e ligações. Um aspecto fundamental, nos cadernos de Valery, é a sua utilização como instrumento para a construção da obra, como meio de treinar o pensamento, mas também de o desenvolver, experimentar, testar, deixando-o aparecer sem a responsabilidade do ensaio final, do livro a publicar. Valery usava os seus cadernos, que escreveu ininterruptamente (no final eram cerca de 261 com 28.000 páginas), como um instrumento para pensar, fazendo uso não só da escrita, mas também do desenho, e escrevendo sobre tudo: arte, filosofia, poesia, matemática. E escreveu sobre como o "eu", como o "seu cogito" "funcionava", matéria de blogues, como se sabe.

http://oran2.free.fr/PHOTOS%20MERS%20EL%20KEBIR/slides/Mers%20el%20Kebir%20Saint%20Andre.jpgCamus é, de todos, quem, sem dúvidas, faria um blogue excepcional. A escrita, umas vezes mais tensa e outras mais solta, curta e imagética, intercalando fragmentos de diálogos, recordações de paisagens e de encontros, notas de leitura, revela o olhar de Camus sobre a sua geografia africana peculiar, a Argélia, e sobre os acontecimentos que está a viver. Os cadernos de Camus não só suportariam o formato do blogue, como ganhariam com a imagem na sua dimensão mediterrânica. Ganhariam também com o hipertexto, embora menos que Valery ou Cioran, que quase o exigem para serem devidamente lidos.

Em todos os casos que referi, a legibilidade dos textos na actualidade ganharia com a forma blogue, pela representação mais perfeita do tempo que a Rede permite. Os cadernos de Camus são os que melhor se lêem, enquanto os de Valery e de Cioran só são legíveis, na sua forma livro, em antologias depuradas. O de Cioran tem centenas de páginas de um grosso volume e os de Valery estendem-se por dez volumes na edição da Gallimard. Mesmo em Portugal foram os únicos divulgados numa edição barata e popular, de há muito esgotada.

Por tudo isto, valia a pena, e acabará com certeza por ser feito, o teste prático de colocar todas estas escritas na Rede usando modelos iguais ou próximos dos blogues. A blogosfera terá então ao seu lado Nietzsche, Valery, Camus, Cioran e tantos outros, como autores de blogues.

(No Público.)

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LENDO
VENDO
OUVINDO

ÁTOMOS E BITS

de 22 de Junho de 2006


Eu bem sei que a vida está difícil para os jornais, mas o que é que leva o Público a pensar que dedicar as suas primeiras dezassete páginas ao futebol, antes de começar o jornal propriamente dito, lhe acrescenta alguma coisa que os seus leitores não encontram noutro lado? Quem é que vai comprar o Público para ler sobre futebol? E quem é que vai deixar de comprar o Público porque ele não embarca (não embarcava) no reino da Futebolândia?

*

Sobre as teorias da conspiração ver os "professores da paranoia".

*

Várias danças com pares e trios e quartetos muito especiais. Um usa muitos anéis, outro é muito frio, outro faz pela vida no meio dos grandes, outro respira uma atmosfera muito especial.

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EARLY MORNING BLOGS

799

Just Keep Quiet and Nobody Will Notice

There is one thing that ought to be taught in all the colleges,
Which is that people ought to be taught not to go around always making apologies.
I don't mean the kind of apologies people make when they run over you or borrow five dollars or step on your feet,
Because I think that is sort of sweet;
No, I object to one kind of apology alone,
Which is when people spend their time and yours apologizing for everything they own.
You go to their house for a meal,
And they apologize because the anchovies aren't caviar or the partridge is veal;
They apologize privately for the crudeness of the other guests,
And they apologzie publicly for their wife's housekeeping or their husband's jests;
If they give you a book by Dickens they apologize because it isn't by Scott,
And if they take you to the theater, they apologize for the acting and the dialogue and the plot;
They contain more milk of human kindness than the most capacious dairy can,
But if you are from out of town they apologize for everything local and if you are a foreigner they apologize for everything American.
I dread these apologizers even as I am depicting them,
I shudder as I think of the hours that must be spent in contradicting them,
Because you are very rude if you let them emerge from an argument victorious,
And when they say something of theirs is awful, it is your duty to convince them politely that it is magnificent and glorious,
And what particularly bores me with them,
Is that half the time you have to politely contradict them when you rudely agree with them,
So I think there is one rule every host and hostess ought to keep with the comb and nail file and bicarbonate and aromatic spirits on a handy shelf,
Which is don't spoil the denouement by telling the guests everything is terrible, but let them have the thrill of finding it out for themselves.

(Ogden Nash)

*

Bom dia!

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20.6.06



LENDO / VENDO /OUVINDO

(BLOGUES, JORNAIS, TELEVISÕES, IMAGENS, SONS, PAPÉIS, PAREDES)
(20 de Junho de 2006)


"Ver" o Pólo Norte em tempo real: uma Web Cam num dos sítios mais bizarros da terra. Na realidade, no meio do mar.

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EARLY MORNING BLOGS

798

Enfin quelle apparence de pouvoir remplir tous les goûts si différents des hommes par un seul ouvrage de morale?

Les uns cherchent des définitions, des divisions, des tables, et de la méthode: ils veulent qu'on leur explique ce que c'est que la vertu en général, et cette vertu en particulier; quelle différence se trouve entre la valeur, la force et la magnanimité; les vices extrêmes par le défaut ou par l'excès entre lesquels chaque vertu se trouve placée, et duquel de ces deux extrêmes elle emprunte davantage; toute autre doctrine ne leur plaît pas. Les autres, contents que l'on réduise les moeurs aux passions et que l'on explique celles-ci par le mouvement du sang, par celui des fibres et des artères, quittent un auteur de tout le reste.


Il s'en trouve d'un troisième ordre qui, persuadés que toute doctrine des moeurs doit tendre à les réformer, à discerner les bonnes d'avec les mauvaises, et à démêler dans les hommes ce qu'il y a de vain, de faible et de ridicule, d'avec ce qu'ils peuvent avoir de bon, de sain et de louable, se plaisent infiniment dans la lecture des livres qui, supposant les principes physiques et moraux rebattus par les anciens et les modernes, se jettent d'abord dans leur application aux moeurs du temps, corrigent les hommes les uns par les autres, par ces images de choses qui leur sont si familières, et dont néanmoins ils ne s'avisaient pas de tirer leur instruction.

Tel est le traité des Caractères des moeurs que nous a laissé Théophraste.

(La Bruyère, Les caractères ou Les moeurs de ce siècle )

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Bom dia!

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19.6.06


EARLY MORNING BLOGS

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Me voici donc seul sur la terre, n'ayant plus de frère, de prochain, d'ami, de société que moi-même. Le plus sociable et le plus aimant des humains en a été proscrit par un accord unanime. Ils ont cherché dans les raffinements de leur haine quel tourment pouvait être le plus cruel à mon âme sensible, et ils ont brisé violemment tous les liens qui m'attachaient à eux. J'aurais aimé les hommes en dépit d'eux-mêmes. Ils n'ont pu qu'en cessant de l'être se dérober à mon affection. Les voilà donc étrangers, inconnus, nuls enfin pour moi puisqu'ils l'ont voulu. Mais moi, détaché d'eux et de tout, que suis-je moi-même? Voilà ce qui me reste à chercher. Malheureusement cette recherche doit être précédée d'un coup d'oeil sur ma position. C'est une idée par laquelle il faut nécessairement que je passe pour arriver d'eux à moi.

(Jean-Jacques Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire)

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Bom dia!

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FUTEBOLÃNDIA

Obrigado por este presente.

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18.6.06


NUNCA É TARDE PARA APRENDER OU " EU BEM SABIA QUE DEVIA HAVER ALGO DE DEMONÍACO NOS TELEMÓVEIS" 2

http://www.hha.com.au/imagesweb/0340921455.jpg
Stephen King, Cell
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.Há coisas que Stephen King faz sempre bem: é um mestre da Surpresa. Não há suspense nos seus livros, mas sim pura Surpresa. Depois começa sempre de uma maneira que, à segunda página, já não se larga o livro. Lá para a frente, esmorece um pouco, escreve demais, repete-se, mas percebe-se sempre a capacidade de domínio sobre o leitor, fundamental em livros que usam o terror, o medo, como sedução. Não é arte é ofício, mas é excelente ofício, profissional, capaz. Não admira que venda mais do que qualquer outro autor popular.

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EARLY MORNING BLOGS 796


Alice was beginning to get very tired of sitting by her sister on the bank, and of having nothing to do: once or twice she had peeped into the book her sister was reading, but it had no pictures or conversations in it, 'and what is the use of a book,' thought Alice 'without pictures or conversation?'

So she was considering in her own mind (as well as she could, for the hot day made her feel very sleepy and stupid), whether the pleasure of making a daisy-chain would be worth the trouble of getting up and picking the daisies, when suddenly a White Rabbit with pink eyes ran close by her.

There was nothing so very remarkable in that; nor did Alice think it so very much out of the way to hear the Rabbit say to itself, 'Oh dear! Oh dear! I shall be late!' (when she thought it over afterwards, it occurred to her that she ought to have wondered at this, but at the time it all seemed quite natural); but when the Rabbit actually took a watch out of its waistcoat-pocket, and looked at it, and then hurried on, Alice started to her feet, for it flashed across her mind that she had never before seen a rabbit with either a waistcoat-pocket, or a watch to take out of it, and burning with curiosity, she ran across the field after it, and fortunately was just in time to see it pop down a large rabbit-hole under the hedge.

In another moment down went Alice after it, never once considering how in the world she was to get out again.

(Lewis Carroll)

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Bom dia!

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17.6.06


COISAS SIMPLES



(Marie Kroyer)

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NUNCA É TARDE PARA APRENDER OU " EU BEM SABIA QUE DEVIA HAVER ALGO DE DEMONÍACO NOS TELEMÓVEIS"

http://www.hha.com.au/imagesweb/0340921455.jpg
Stephen King, Cell
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O fim do mundo chega pelos telemóveis.

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LUIS FILIPE CASTRO MENDES - PORTUGAL E O BRASIL : ATRIBULAÇÕES DE DUAS IDENTIDADES

http://www.comyon.com/bandeira%20do%20brasil.jpg Bandeira Nacional

Como foi que temperaste,
Portugal, meu avôzinho,
Esse gosto misturado
De saudade e de carinho?


MANUEL BANDEIRA

Numa terra radiosa vive um povo
triste. Legaram-lhe essa melancolia
os descobridores que a revelaram ao
mundo e a povoaram.


PAULO PRADO

I DA INFELICIDADE DE SER IBÉRICO…

Um preconceito histórico, persistente no nosso universo cultural desde o Século das Luzes, enfatiza o atraso e a barbárie dos desgraçados povos ibéricos, afastados pelo obscurantismo político e religioso das luzes da civilização, um degrau apenas acima dos mouros e dos cafres, culpados de não serem protestantes, norte-europeus e, consequentemente, trabalhadores, individualistas e empreendedores. Durante os séculos XVIII e XIX, Portugal e a Espanha são vistos pelo mundo civilizado (isto é, o mundo organizado conforme os interesses das potências dominantes) como qualquer coisa de intermédio entre a civilização e o exotismo, não tão estranhos que coubessem nos estudos dos orientalistas, mas suficientemente bizarros para despertarem a ironia superior dos viajantes e o fascínio erótico dos poetas e novelistas.

Ironia da História: esta unidade de destino entre portugueses e espanhóis decorre mais da rejeição de que os dois países foram alvo por parte dos novos centros de poder mundial emergentes no limiar da modernidade, isto é, no fim da idade barroca, do que de uma real identidade de projectos históricos. No século XVI, portugueses e espanhóis, ciosos das suas soberanias e rivais na expansão marítima, sentiam-se, não obstante, partilhar uma cultura comum. Mas esta identidade cultural ibérica, bem visível em Gil Vicente ou Camões, quebrou-se no século XVII, com a tentativa filipina de unificação política sob hegemonia castelhana, que veio determinar um persistente divórcio político e cultural entre os dois países, de que só hoje começamos, felizmente, a sair.

Eduardo Lourenço, no seu ensaio Nós e a Europa ou as Duas Razões, contrapõe à razão cartesiana, que funda a nossa modernidade, uma outra razão, ibérica, contra-reformista, barroca, de que o expoente seria Gracián, o da Agudeza e Arte de Engenho. Nessa razão barroca participaram espanhóis e portugueses, mas também o que, a partir dos espanhóis e dos portugueses, se formava do outro lado do Atlântico: não são Sor Juana Inés de la Cruz e o Padre António Vieira expressões maiores do barroco universal, como o virá a ser, num genial anacronismo, a escultura do Aleijadinho? Não foi a Ratio Studiorum dos jesuítas uma matriz fundadora da cultura no Brasil?

Mas a verdade é que esta rejeição da cultura ibérica foi assumida por um grande número de historiadores brasileiros como a chave que explicaria todos os atrasos, injustiças e opressões sofridos pelo Brasil. A colonização portuguesa seria o pecado original desta terra, o que lhe vedara o acesso ao paraíso ou os caminhos da modernidade.

Esta ideia encontra-se formulada exemplarmente na obra clássica de Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasil. Todos os obstáculos ao desenvolvimento do Brasil derivariam dos traços de carácter herdados do colonizador português, reconstruídos como um tipo-ideal, à maneira de Max Weber, e contrapostos (sempre seguindo a lição de Weber) àqueles que fundamentam o espírito moderno, essencialmente derivados da ética do protestantismo. Daí o grande confronto, obsessivo na cultura brasileira, entre o Brasil e os Estados Unidos, encarados estes, mesmo quando demonizados, como o supremo paradigma. Bandeirantes e Pioneiros de Vianna Moog é a triste elegia a um Brasil que poderia ter sido, um Brasil que se poderia vir a identificar com os Estados Unidos.

Conhecemos a grande obra de interpretação do Brasil antagónica desta visão, que foi a de Gilberto Freyre. Para o autor de Casa Grande e Senzala foi da colonização portuguesa e da escravidão africana que provieram toda a originalidade e a inovação da civilização brasileira, através do processo de miscigenação. Freyre não idealiza o processo colonizador, mas escreve de uma história olhada sem ressentimentos, com o amor fati nietzscheano e a permanente gula dos sentidos que o tornam o mais moderno de todos os seus contemporâneos.

Com a notável excepção de Vamireh Chacon, as correntes dominantes do pensamento social brasileiro de tendências mais progressistas tenderam a identificar as teses de Gilberto Freyre com o conservadorismo e a nostalgia de uma sociedade patriarcal e pré-moderna, colocando assim as ideias do mestre de Apicucos como mais um obstáculo ao progresso e à emancipação dos brasileiros. Uma rejeição global que José Guilherme Merquior, grande desmistificador, qualificou um dia de “suprema burrice”.

Sem querer intervir neste debate (porque penso, como Alfredo Bosi, que é uma questão ociosa escolher agora quem teriam sido os melhores colonizadores), julgo necessário integorrarmo-nos em que medida as duas correntes de interpretação aqui demarcadas partilhariam um terreno comum, uma visão que da imagem construída do passado histórico deriva para um olhar intemporal sobre o Outro, o português, e em que medida nós, os portugueses, nos confrontamos ainda e sempre com essa imagem intemporal que de nós foram tecendo os brasileiros no processo de construção da sua própria identidade (a piada de português é apenas a manifestação mais superficial e inocente dessa imagem estereotipada).

II …À DESGRAÇA DE SER PORTUGUÊS

O facto é que Portugal hoje aparece no Brasil, de forma inédita, e para surpresa e desconcerto de alguns brasileiros, como um país exportador de investimentos produtivos, alguns em sectores de elevada tecnologia, e não mais como um mero exportador de mão-de-obra pouco qualificada para pequenas empresas de comércio e serviços. Esta mudança da base material da presença portuguesa no Brasil, embora custe muito a ser digerida por alguns (para o historiador Luís Felipe de Alencastro, por exemplo, o investimento português seria apenas um braço subordinado do capital espanhol, esse sim o verdadeiro actor da História), não deixou de trazer mudanças sensíveis à percepção de Portugal do outro lado do Atlântico. Acresce que a imagem de Portugal como persistência de uma sociedade de Antigo Regime encravada na modernidade europeia, tão cultivada também pela intelectualidade brasileira, mesmo quando solidariamente a denunciava, dificilmente se sustenta face à realidade actual de um país democrático, moderno e integrado na União Europeia.

Convém não esquecer que a imagem de Portugal para os brasileiros foi durante muito tempo a de um país atrasado, arcaico, imune à mudança, ancorado no tempo como uma nau de pedra silenciosa. Para os conservadores autêntico guardião das tradições de que nasceu o Brasil, para os progressistas resumo de tudo o que o Brasil deveria destruir dentro de si para ser verdadeiramente moderno e autenticamente justo, Portugal só era tratado pelos brasileiros como um antepassado.

A recente comemoração dos 500 anos do “descobrimento” ou “achamento” ou “encontro” dividiu o Brasil. De um lado os que aceitam a herança portuguesa como uma matriz fundadora da identidade brasileira; do outro aqueles que, não podendo negar essa realidade, não se conformam com ela, porque pensam sinceramente que todos os atrasos e as injustiças do Brasil derivaram em linha directa da colonização portuguesa.

Para dar um exemplo, entre os mais notáveis, um livro como Os Donos do Poder de Raymundo Faoro, na sua visão fixista da sociedade brasileira (tudo se joga na sociedade estamental herdada da colonização portuguesa, que se mantém metafisicamente incorrupta através dos séculos), vem tornar mais compreensível a dificuldade que os brasileiros sentem em reconhecer no antigo país colonizador mudanças que muitas vezes não conseguem ver no seu próprio país. É que o Brasil nunca será “um imenso Portugal”, como cantava Chico Buarque, pela simples razão de que há quase 200 anos que vivemos separados.

Na verdade, para um português é mais claro e mais saudável este sentimento de separação do Brasil do que para um brasileiro. Para nós, o colonialismo português jogou-se no nosso tempo nos dramas de África e há muito já que reconhecemos o Brasil como uma outra nação. Não assim no Brasil, que, de um certo modo, introjectou Portugal, incorporou-o a si mesmo (antropofagicamente, como diriam os modernistas de 1922), olhando-o quase como um capítulo do seu passado, como uma referência incontornável (para o bem e para o mal) da afirmação da sua própria identidade, mas que, por isso mesmo, se tornou estranhamente invisível aos brasileiros enquanto realidade existente e país actual, como diagnosticava Eduardo Lourenço na sua lúcida Nau de Ícaro. Como se para os brasileiros o único sentido de ser português fosse vir a tornar-se brasileiro…

Acresce que à escala mundial vivemos hoje tempos de uma curiosa ofensiva ideológica anti-europeia, fomentada por algum pensamento “politicamente correcto”. Através do conceito de “pós-colonial”, concebe-se por vezes uma estranha frente entre os Estados Unidos, o antigamente chamado Terceiro Mundo e os países industrializados exteriores à Europa (Japão, Canadá, Austrália), opostos em bloco aos europeus por esta nova construção ideológica, que foi denunciada, entre outros, pelo marxista Perry Anderson.

Toda a ideia (já veiculada em 1992, quando do quinto centenário da viagem de Cristóvão Colombo) de que “comemorar os 500 anos é comemorar a violência e a rapina do colonialismo” vem hoje dessa matriz ideológica “pós-colonial”, bem mais do que do velho marxismo, que sempre soube que a violência é parteira da História e nunca simpatizou excessivamente com etnias e sociedades tradicionais. E vem também muitas vezes (e particularmente no caso que nos ocupa) daqueles que, na esteira de certas leituras de Max Weber, atribuem todas as virtudes civilizatórias aos Estados Unidos e aos colonizadores brancos, anglo-saxões e protestantes e todos os estigmas aos colonizadores ibéricos, por acreditarem ingenuamente nas histórias piedosas que os norte-americanos contam sobre si próprios.

Assim, se por um lado os preconceitos anti-portugueses estão conhecendo hoje no Brasil um evidente recuo, registando-se da parte dos intelectuais e dos jovens brasileiros uma nova curiosidade pela nossa cultura, hoje reconhecida nas manifestações da sua novidade e não mais como expoente de manifestações arcaizantes, não deixou algum velho anti-lusitanismo de ressurgir por ocasião das comemorações dos 500 anos, como por exemplo quando o insigne brasilianista inglês Leslie Bethell veio escrever que foi a meu ver um grande erro do Brasil permitir que os portugueses praticamente sequestrassem a celebração do 500 aniversário do Brasil com a ênfase dada ao descobrimento pelos portugueses. A virtude anglo-saxónica vela sobre o Brasil…

Contudo, se atentarmos na mais recente geração brasileira de estudos históricos, sociológicos e até estéticos e literários, não poderemos deixar de ficar impressionados por uma nova ideia de Portugal por eles trazida, bem mais objectiva, crítica e isenta das grandes visões de “tipo-ideal” que os famosos “intérpretes do Brasil” quiseram introduzir afinal como “ideologias do Brasil”. A investigação fez-se menos sequiosa de grandes sínteses de interpretação do destino nacional e mais atenta à rigorosa impiedade dos factos.

Face a este quadro, parece-nos evidente que uma política cultural externa portuguesa para o Brasil deveria ousar trazer a este país as manifestações mais vivas e actuais da nossa cultura e não continuar a responder à sede de tradições conhecidas e requentadas, que apenas confirmam no brasileiro a imagem de um Portugal instalado para sempre nas brumas do passado. Este é o desafio da nossa geração. Mais do que continuar a mostrar como soubémos bem navegar no século XVI, há que demonstrar como sabemos hoje dominar e praticar as linguagens e as tecnologias do nosso tempo.

III – TEMOS TODOS A MESMA IDADE

Mas afinal a História foi sempre feita de paixão e de violência, de sonho e de furor. Quem se lembra de negar o que é, porque a sua origem não é a que desejaria, é como a bela alma hegeliana, incapaz de se inserir no curso da História: um anjo torto.

Porque envergonhar-se da própria origem é a atitude típica do homem do ressentimento, manifestação daquilo a que Freud chama romance familiar, o desejo frustrado de ter pais mais ricos e poderosos. A América foi um sonho dos europeus. Os portugueses sonharam tanto com o Brasil como todos os outros europeus sonharam com a América. Por isso do que deixámos podemos orgulhar-nos, sem ilusões idílicas nem remorsos tardios (ter remorsos, dizia Espinoza, é pecar segunda vez), porque a violência da História foi para nós, como para todos, o quinhão da mesma humanidade.

E Portugal são os portugueses e as portuguesas de hoje, não esse país obscuro e de antanho, convidado de pedra no tempo e na memória, que tantas vezes os brasileiros identificam com Portugal, projectando em nós a imagem do seu próprio passado. Desse passado vimos, mas também contra esse passado nos fizémos no que somos hoje, para o bem e para o mal. Desmentindo o belo poema de Manuel Bandeira, os portugueses não podem ser os avózinhos dos brasileiros, pelas simples razão de que nós, as gerações de hoje, temos afinal a mesma idade.

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© José Pacheco Pereira
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