ABRUPTO

24.6.06


LENDO
VENDO
OUVINDO

ÁTOMOS E BITS

de 24 de Junho de 2006


O primeiro retrato, a nossa fragilidade na pedra, por uma mão (ou duas, ou três) com 27.000 anos. Não mudamos nada.

Cave art, France

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Ribeira no S. JoãoA RTP1 ontem transmitiu em directo o "S. João" do Porto. Mas para poder ter programa, o S. João da televisão não é o S. João do Porto. A televisão transmitiu uma festa organizada para ela própria e o fogo de artifício, mas nem uma coisa nem outra são o S. João do Porto.

O S. João do Porto não se presta a passar na televisão, é uma festa única, absoluta e democrática como nada neste país. Na noite de S. João o Porto sai à rua, para estar na rua e andar na rua. Atrás daquelas festas para a televisão milhares e milhares de pessoas estão pura e simplesmente a andar pelas ruas e a bater na cabeça umas das outras com um alho-porro (cada vez menos) e com uns abomináveis martelos de plástico, que cada vez parecem ser maiores. Em quase todas as casas, ricas e pobres, depois do jantar, as famílias juntas, ou os jovens para um lado e os mais velhos para outro, fecham a casa e vêm para a rua. No S. João do Porto não há lugares centrais, não é uma festa dos bairros populares, é uma festa que se estende por toda a cidade, embora as Fontaínhas e a Ribeira fossem pólos de atracção. Mas eram apenas sítios onde havia alguma coisa mais do que a rua, nas Fontainhas uns carrosséis e farturas e na Ribeira uns bailes. Na Ribeira havia um baile, que penso único nos anos da ditadura, em que homens dançavam com homens e onde pontificava o célebre "Carlinhos da Sé". Os populares da Ribeira impediam qualquer provocação ou incidente, considerando que aquela noite era de todos e da liberdade de todos. Era a noite em que se podia fazer tudo e não havia polícia nas ruas. (Antes do 25 de Abril era também uma noite aproveitada para distribuir panfletos, a que a PIDE estava cada vez mais vigilante embora evitasse dar nas vistas porque com a multidão nada era seguro…).

O ambiente democrático da rua, em que ninguém se livrava de levar com o alho na cabeça, e onde completos desconhecidos trocavam cumprimentos e piropos, revelava o carácter muito especial da única cidade verdadeiramente “burguesa” do país. Trabalhava duro durante o ano e depois tinha a sua Saturnalia, que tomava tão a sério como o trabalho. No Porto, não havia (e não há) essa coisa de “bairros populares” versus “avenidas novas”, nem nobres marialvas e fadistas que depois dos touros vão para as “casas de tabuinhas” conviver com apaches e severas, isto para usar os nomes antigos e poupar os ouvidos sensíveis. No Porto todos, menos os “ingleses” que nunca se viam, estavam na rua. Ora isso não cabe na televisão, só num IMAX e mesmo assim transborda.

Já há uns anos que lá não estou no S. João. Espero que tudo continue assim. Espero.


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© José Pacheco Pereira
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