ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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17.6.06
LUIS FILIPE CASTRO MENDES - PORTUGAL E O BRASIL : ATRIBULAÇÕES DE DUAS IDENTIDADES Como foi que temperaste, Portugal, meu avôzinho, Esse gosto misturado De saudade e de carinho? MANUEL BANDEIRA Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram. PAULO PRADO I DA INFELICIDADE DE SER IBÉRICO… Um preconceito histórico, persistente no nosso universo cultural desde o Século das Luzes, enfatiza o atraso e a barbárie dos desgraçados povos ibéricos, afastados pelo obscurantismo político e religioso das luzes da civilização, um degrau apenas acima dos mouros e dos cafres, culpados de não serem protestantes, norte-europeus e, consequentemente, trabalhadores, individualistas e empreendedores. Durante os séculos XVIII e XIX, Portugal e a Espanha são vistos pelo mundo civilizado (isto é, o mundo organizado conforme os interesses das potências dominantes) como qualquer coisa de intermédio entre a civilização e o exotismo, não tão estranhos que coubessem nos estudos dos orientalistas, mas suficientemente bizarros para despertarem a ironia superior dos viajantes e o fascínio erótico dos poetas e novelistas. Ironia da História: esta unidade de destino entre portugueses e espanhóis decorre mais da rejeição de que os dois países foram alvo por parte dos novos centros de poder mundial emergentes no limiar da modernidade, isto é, no fim da idade barroca, do que de uma real identidade de projectos históricos. No século XVI, portugueses e espanhóis, ciosos das suas soberanias e rivais na expansão marítima, sentiam-se, não obstante, partilhar uma cultura comum. Mas esta identidade cultural ibérica, bem visível em Gil Vicente ou Camões, quebrou-se no século XVII, com a tentativa filipina de unificação política sob hegemonia castelhana, que veio determinar um persistente divórcio político e cultural entre os dois países, de que só hoje começamos, felizmente, a sair. Eduardo Lourenço, no seu ensaio Nós e a Europa ou as Duas Razões, contrapõe à razão cartesiana, que funda a nossa modernidade, uma outra razão, ibérica, contra-reformista, barroca, de que o expoente seria Gracián, o da Agudeza e Arte de Engenho. Nessa razão barroca participaram espanhóis e portugueses, mas também o que, a partir dos espanhóis e dos portugueses, se formava do outro lado do Atlântico: não são Sor Juana Inés de la Cruz e o Padre António Vieira expressões maiores do barroco universal, como o virá a ser, num genial anacronismo, a escultura do Aleijadinho? Não foi a Ratio Studiorum dos jesuítas uma matriz fundadora da cultura no Brasil? Mas a verdade é que esta rejeição da cultura ibérica foi assumida por um grande número de historiadores brasileiros como a chave que explicaria todos os atrasos, injustiças e opressões sofridos pelo Brasil. A colonização portuguesa seria o pecado original desta terra, o que lhe vedara o acesso ao paraíso ou os caminhos da modernidade. Esta ideia encontra-se formulada exemplarmente na obra clássica de Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasil. Todos os obstáculos ao desenvolvimento do Brasil derivariam dos traços de carácter herdados do colonizador português, reconstruídos como um tipo-ideal, à maneira de Max Weber, e contrapostos (sempre seguindo a lição de Weber) àqueles que fundamentam o espírito moderno, essencialmente derivados da ética do protestantismo. Daí o grande confronto, obsessivo na cultura brasileira, entre o Brasil e os Estados Unidos, encarados estes, mesmo quando demonizados, como o supremo paradigma. Bandeirantes e Pioneiros de Vianna Moog é a triste elegia a um Brasil que poderia ter sido, um Brasil que se poderia vir a identificar com os Estados Unidos. Conhecemos a grande obra de interpretação do Brasil antagónica desta visão, que foi a de Gilberto Freyre. Para o autor de Casa Grande e Senzala foi da colonização portuguesa e da escravidão africana que provieram toda a originalidade e a inovação da civilização brasileira, através do processo de miscigenação. Freyre não idealiza o processo colonizador, mas escreve de uma história olhada sem ressentimentos, com o amor fati nietzscheano e a permanente gula dos sentidos que o tornam o mais moderno de todos os seus contemporâneos. Com a notável excepção de Vamireh Chacon, as correntes dominantes do pensamento social brasileiro de tendências mais progressistas tenderam a identificar as teses de Gilberto Freyre com o conservadorismo e a nostalgia de uma sociedade patriarcal e pré-moderna, colocando assim as ideias do mestre de Apicucos como mais um obstáculo ao progresso e à emancipação dos brasileiros. Uma rejeição global que José Guilherme Merquior, grande desmistificador, qualificou um dia de “suprema burrice”. Sem querer intervir neste debate (porque penso, como Alfredo Bosi, que é uma questão ociosa escolher agora quem teriam sido os melhores colonizadores), julgo necessário integorrarmo-nos em que medida as duas correntes de interpretação aqui demarcadas partilhariam um terreno comum, uma visão que da imagem construída do passado histórico deriva para um olhar intemporal sobre o Outro, o português, e em que medida nós, os portugueses, nos confrontamos ainda e sempre com essa imagem intemporal que de nós foram tecendo os brasileiros no processo de construção da sua própria identidade (a piada de português é apenas a manifestação mais superficial e inocente dessa imagem estereotipada). II …À DESGRAÇA DE SER PORTUGUÊS O facto é que Portugal hoje aparece no Brasil, de forma inédita, e para surpresa e desconcerto de alguns brasileiros, como um país exportador de investimentos produtivos, alguns em sectores de elevada tecnologia, e não mais como um mero exportador de mão-de-obra pouco qualificada para pequenas empresas de comércio e serviços. Esta mudança da base material da presença portuguesa no Brasil, embora custe muito a ser digerida por alguns (para o historiador Luís Felipe de Alencastro, por exemplo, o investimento português seria apenas um braço subordinado do capital espanhol, esse sim o verdadeiro actor da História), não deixou de trazer mudanças sensíveis à percepção de Portugal do outro lado do Atlântico. Acresce que a imagem de Portugal como persistência de uma sociedade de Antigo Regime encravada na modernidade europeia, tão cultivada também pela intelectualidade brasileira, mesmo quando solidariamente a denunciava, dificilmente se sustenta face à realidade actual de um país democrático, moderno e integrado na União Europeia. Convém não esquecer que a imagem de Portugal para os brasileiros foi durante muito tempo a de um país atrasado, arcaico, imune à mudança, ancorado no tempo como uma nau de pedra silenciosa. Para os conservadores autêntico guardião das tradições de que nasceu o Brasil, para os progressistas resumo de tudo o que o Brasil deveria destruir dentro de si para ser verdadeiramente moderno e autenticamente justo, Portugal só era tratado pelos brasileiros como um antepassado. A recente comemoração dos 500 anos do “descobrimento” ou “achamento” ou “encontro” dividiu o Brasil. De um lado os que aceitam a herança portuguesa como uma matriz fundadora da identidade brasileira; do outro aqueles que, não podendo negar essa realidade, não se conformam com ela, porque pensam sinceramente que todos os atrasos e as injustiças do Brasil derivaram em linha directa da colonização portuguesa. Para dar um exemplo, entre os mais notáveis, um livro como Os Donos do Poder de Raymundo Faoro, na sua visão fixista da sociedade brasileira (tudo se joga na sociedade estamental herdada da colonização portuguesa, que se mantém metafisicamente incorrupta através dos séculos), vem tornar mais compreensível a dificuldade que os brasileiros sentem em reconhecer no antigo país colonizador mudanças que muitas vezes não conseguem ver no seu próprio país. É que o Brasil nunca será “um imenso Portugal”, como cantava Chico Buarque, pela simples razão de que há quase 200 anos que vivemos separados. Na verdade, para um português é mais claro e mais saudável este sentimento de separação do Brasil do que para um brasileiro. Para nós, o colonialismo português jogou-se no nosso tempo nos dramas de África e há muito já que reconhecemos o Brasil como uma outra nação. Não assim no Brasil, que, de um certo modo, introjectou Portugal, incorporou-o a si mesmo (antropofagicamente, como diriam os modernistas de 1922), olhando-o quase como um capítulo do seu passado, como uma referência incontornável (para o bem e para o mal) da afirmação da sua própria identidade, mas que, por isso mesmo, se tornou estranhamente invisível aos brasileiros enquanto realidade existente e país actual, como diagnosticava Eduardo Lourenço na sua lúcida Nau de Ícaro. Como se para os brasileiros o único sentido de ser português fosse vir a tornar-se brasileiro… Acresce que à escala mundial vivemos hoje tempos de uma curiosa ofensiva ideológica anti-europeia, fomentada por algum pensamento “politicamente correcto”. Através do conceito de “pós-colonial”, concebe-se por vezes uma estranha frente entre os Estados Unidos, o antigamente chamado Terceiro Mundo e os países industrializados exteriores à Europa (Japão, Canadá, Austrália), opostos em bloco aos europeus por esta nova construção ideológica, que foi denunciada, entre outros, pelo marxista Perry Anderson. Toda a ideia (já veiculada em 1992, quando do quinto centenário da viagem de Cristóvão Colombo) de que “comemorar os 500 anos é comemorar a violência e a rapina do colonialismo” vem hoje dessa matriz ideológica “pós-colonial”, bem mais do que do velho marxismo, que sempre soube que a violência é parteira da História e nunca simpatizou excessivamente com etnias e sociedades tradicionais. E vem também muitas vezes (e particularmente no caso que nos ocupa) daqueles que, na esteira de certas leituras de Max Weber, atribuem todas as virtudes civilizatórias aos Estados Unidos e aos colonizadores brancos, anglo-saxões e protestantes e todos os estigmas aos colonizadores ibéricos, por acreditarem ingenuamente nas histórias piedosas que os norte-americanos contam sobre si próprios. Assim, se por um lado os preconceitos anti-portugueses estão conhecendo hoje no Brasil um evidente recuo, registando-se da parte dos intelectuais e dos jovens brasileiros uma nova curiosidade pela nossa cultura, hoje reconhecida nas manifestações da sua novidade e não mais como expoente de manifestações arcaizantes, não deixou algum velho anti-lusitanismo de ressurgir por ocasião das comemorações dos 500 anos, como por exemplo quando o insigne brasilianista inglês Leslie Bethell veio escrever que foi a meu ver um grande erro do Brasil permitir que os portugueses praticamente sequestrassem a celebração do 500 aniversário do Brasil com a ênfase dada ao descobrimento pelos portugueses. A virtude anglo-saxónica vela sobre o Brasil… Contudo, se atentarmos na mais recente geração brasileira de estudos históricos, sociológicos e até estéticos e literários, não poderemos deixar de ficar impressionados por uma nova ideia de Portugal por eles trazida, bem mais objectiva, crítica e isenta das grandes visões de “tipo-ideal” que os famosos “intérpretes do Brasil” quiseram introduzir afinal como “ideologias do Brasil”. A investigação fez-se menos sequiosa de grandes sínteses de interpretação do destino nacional e mais atenta à rigorosa impiedade dos factos. Face a este quadro, parece-nos evidente que uma política cultural externa portuguesa para o Brasil deveria ousar trazer a este país as manifestações mais vivas e actuais da nossa cultura e não continuar a responder à sede de tradições conhecidas e requentadas, que apenas confirmam no brasileiro a imagem de um Portugal instalado para sempre nas brumas do passado. Este é o desafio da nossa geração. Mais do que continuar a mostrar como soubémos bem navegar no século XVI, há que demonstrar como sabemos hoje dominar e praticar as linguagens e as tecnologias do nosso tempo. III – TEMOS TODOS A MESMA IDADE Mas afinal a História foi sempre feita de paixão e de violência, de sonho e de furor. Quem se lembra de negar o que é, porque a sua origem não é a que desejaria, é como a bela alma hegeliana, incapaz de se inserir no curso da História: um anjo torto. Porque envergonhar-se da própria origem é a atitude típica do homem do ressentimento, manifestação daquilo a que Freud chama romance familiar, o desejo frustrado de ter pais mais ricos e poderosos. A América foi um sonho dos europeus. Os portugueses sonharam tanto com o Brasil como todos os outros europeus sonharam com a América. Por isso do que deixámos podemos orgulhar-nos, sem ilusões idílicas nem remorsos tardios (ter remorsos, dizia Espinoza, é pecar segunda vez), porque a violência da História foi para nós, como para todos, o quinhão da mesma humanidade. E Portugal são os portugueses e as portuguesas de hoje, não esse país obscuro e de antanho, convidado de pedra no tempo e na memória, que tantas vezes os brasileiros identificam com Portugal, projectando em nós a imagem do seu próprio passado. Desse passado vimos, mas também contra esse passado nos fizémos no que somos hoje, para o bem e para o mal. Desmentindo o belo poema de Manuel Bandeira, os portugueses não podem ser os avózinhos dos brasileiros, pelas simples razão de que nós, as gerações de hoje, temos afinal a mesma idade. (url)
© José Pacheco Pereira
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